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Hermias de Alexandria In Platonis Phaedrum Scholia 164-167: dois mergulhos e uma pergunta
Hermias of Alexandria In Platonis Phaedrum Scholia 164-167: two dives and one question
Hermias de Alexandria In Platonis Phaedrum Scholia 164-167: dois mergulhos e uma pergunta
Classica - Revista Brasileira de Estudos Clássicos, vol. 35, núm. 2, pp. 1-16, 2022
Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos
Recepción: 07 Febrero 2022
Aprobación: 01 Abril 2022
Resumo: Hermias de Alexandria em Platonis Phaedrum Scholia 164,16-167,12 apresenta algumas certezas e algumas dúvidas acerca de como interpretar a escala das almas encontradas no Fedro 248c-d. Hermias é o comentador sistemático mais antigo desse diálogo (séc. V. d.C.), mas as duas soluções interpretativas que ele apresenta, apesar de agregar elementos interessantes, não abarcam uma explicação plena nem definitiva do trecho. Hermias apresenta duas interpretações possíveis, cada uma delas de acordo com parâmetros distintos. Ao cabo desse percurso, põe em dúvida como Platão harmonizava, ou punha em sinfonia, os nove níveis das vidas apresentadas na escala. Apresentaremos também a tradução completa do trecho estudado.
Palavras-chave: neoplatonismo, escala das almas, Hermias.
Abstract: Hermias of Alexandria in Platonis Phaedrum Scholia 164,16-167,12 presents some certainties and some doubts about how to interpret the scale of souls found in Phaedrus 248c-d. Hermias is the oldest systematic commentator on this dialogue (5th century AD), but the two interpretative solutions he presents, despite adding interesting elements, do not include a full or definitive explanation of the passage. Hermias presents two possible interpretations, each according to different parameters. At the end of this journey, he calls into question how Plato harmonized, or put into symphony, the nine levels of lives presented in the scale. We will also present the complete translation of the studied excerpt.
Keywords: neoplatonism, scale of the souls, Hermias.
Introdução: a escala das almas
Giovanni Casadio (1991, p. 119-23), ao reunir alguns documentos relevantes para o entendimento da doutrina da metempsicose, observa a dificuldade na atribuição segura desses preceitos, seja ao filósofo Pitágoras, seja ao poeta Orfeu. Destaca ainda, entre as fontes provenientes de Platão, o trecho do Fedro 248c-d como exemplar das manifestações das doutrinas órficas, único trecho aliás, segundo ele, que disputa em importância com o Fédon (Phd. 70c-d) com relação às doutrinas da metempsicose. Impregnado do campo semântico dos mistérios e de diversos aspectos entrecruzados da religiosidade grega, o trecho de Platão não se presta a uma leitura definitiva, embora Hermias de Alexandria tenha se esforçado em interpretá-lo de dois modos não excludentes entre si. O Fedro 248c-d, que muitas vezes também serviu como exemplo das doutrinas da transmigração das almas (Kern, 1922; Bernabé, 2003, 2011), traz também uma escala tipológica das vidas, ou ciclo das almas, apresentada em nove níveis verticais, os quais em alguns dos casos também são tripartidos e bipartidos horizontalmente, sendo que em apenas um deles há um nível isolado de modo unitário.
Usamos o termo “níveis” designando essas etapas da escala, sem que haja nele qualquer valor intrínseco, sendo apenas uma maneira de referir os diferentes graus dessa escala de tipos de vidas ou de almas. O termo então se aplica aos nove graus da escala de 1 a 9 em seu sentido vertical, lembrando que ela será entrecortada também por uma divisão horizontal que não terá um número fixo, variando de três a um lugar. As divisões de tipos horizontais são assimétricas e diminuem na medida em que se aproximam de seu último nível.
De modo geral, o trecho de Platão incide na teoria da reminiscência (anamnese), além de ter elementos de intersecção com as suas concepções de alma (psukhê), especialmente quando trata das suas escolhas, das suas partes e dos seus destinos, sempre, evidentemente, ligados a outros trechos das obras de Platão. Dialoga, por exemplo, com a República (R. 441a; 580d-581e), em que se evidencia a tripartição da alma, também com o Fédon (Phd. 64c-67c-d), em que se evidencia a natureza imortal da alma, e mesmo com o Timeu, quando trata não apenas das almas particulares (Tim. 69c-70b), mas também da alma do mundo (Tim. 34b-37d). Hermias herda a discussão desse tema platônico provavelmente atrelado à leitura de Plotino, quando esse trata da descida da alma no corpo (Plot. IV,8,4), e possivelmente conheceu também as reflexões de Porfírio (Porph. Sent. 7-13), sem que, entretanto, nenhum desses textos aborde diretamente o problema de Hermias, que era o de encontrar uma interpretação válida para a escala tipológica das almas.
Vejamos primeiramente o texto original de Platão. Não apenas referente ao ciclo das almas, como apresenta Casadio, mas acrescido de um trecho anterior e outro posterior ao ciclo propriamente dito, ampliando um pouco o alcance da passagem em questão:
Eis a lei de Adrasteia: A alma que tenha se tornado acompanhante do deus (theôi sunopadòs) e que tenha visto algo das verdades (katídei ti tôn alethôn) fica ilesa (apémona) até o outro percurso, e se puder fazer isso sempre, fica sempre intacta (ablabê). Quando não lhe é possível gerir-se, não se vale da visão nem do sucesso, e, ao aplicar muito peso, perde as asas, despencando por terra em função do fardo do esquecimento (léthês) e da maldade. Então é lei, na primeira geração, não nascer em nenhuma natureza de fera [248d]. Os que viram o máximo1 do gênero humano tornar-se-ão filósofos, amigos do belo, músicos ou algum dentre os eróticos. Em segundo lugar estão o rei na lei, o guerreiro ou o comandante; no terceiro lugar um político, economista2 ou administrador; na quarta posição um amigo das fadigas, da ginástica ou alguém para curar o corpo; na quinta um adivinho ou alguém que pode cuidar das iniciações; [248e] na sexta um poeta, alguém que se ocupa da mimese ou outras [atividades] concordes; na sétima um demiurgo ou homem do campo; na oitava um sofista ou aquele que fere o povo (dêmokopikós); e na nona um tirano. Em todas elas, os que se conduzem com justiça tomam o melhor destino, os que o fazem injustamente, o pior. Cada uma das almas não chega ao mesmo ponto de onde saiu antes de dez mil anos, pois não criam asas antes desse tempo, exceto aquela que foi, de maneira honrada, amante do saber (philosophésantos) ou [249a] amante dos jovens de acordo com a filosofia. Estas, na terceira volta de mil anos, se conduziram este tipo de vida por três vezes seguidas, no terceiro milênio se afastam de modo alado. Quanto as outras, há as que ao término da primeira vida ocorre uma separação e há julgamento no tribunal subterrâneo, no qual elas prestam contas, ao passo que há também as que chegam a algum lugar do céu, elevam-se pela justiça e são levadas à dignidade da vida humana que tiveram. [249b] Tanto umas como outras, no milésimo ano, sorteiam (klérosín) e escolhem (aíresin) a próxima vida, sendo que cada uma escolhe (airoûntai) a que quiser. Ali mesmo, os homens que foram feras serão novamente homens, e se a alma não atingir tal figura é por não ter visto a verdade (mépote idoûsa ten alétheian). (Phdr. 248c2-249b6)3
O primeiro mergulho de Hermias
Hermias, ao interpretar esses nove níveis, utiliza as três partes da alma, descritas pelo próprio Platão (Phdr. 248c-d, R.441a; 580d-581e), como padrão de análise aplicado à escala tipológica das almas, não apenas em seu sentido vertical, mas também, como veremos, em seu sentido horizontal. Cada um desses quatro níveis superiores da escala se divide em três vidas ou tipos de almas no sentido horizontal preenchendo 12 tipos distintos. A tripartição é uma medida válida aplicada à escala, mas Hermias acaba inserindo uma quarta categoria adicional à sua análise, que ele identifica e denomina por “natureza” (phúsis). Seu modo de interpretar é surpreendente, pois não encontramos em Platão indícios claros dessa maneira de compreender a alma, o qual repete quase sem exceções o pattern tripartido.4
Hermias observa os quatro níveis superiores da escala como atrelados a três lugares horizontais, pois, nessa leitura, eles estariam “completos” horizontalmente, havendo ocupações de tipos de vidas nos três lugares. Então, no primeiro nível encontramos horizontalmente divididos: (1) filósofos, (2) amigos do belo e (3) músicos. Assim ocorre até o quarto nível, que são apresentados como superiores, e se opõem, nessa interpretação, aos cinco níveis inferiores, por estes estarem “incompletos”, ou seja, não apresentam a “completude” dos três lugares ou tipos horizontais. Os cinco níveis inferiores permanecem atrelados a dois lugares horizontais e, no último nível, a um lugar apenas.
Hermias introduz esse quarto nível que designa como natureza (phúsis) de acordo com a completude horizontal das vidas, explicitando o seu critério classificatório. Parece enigmático que esse termo, tão importante e multifacetado, apareça nesse contexto indicando uma espécie de complemento à tripartição da alma, funcionando também como um instrumento de análise. É evidente que “razão, ira e apetite” (lógou, thumoû, epithumías) responderiam exatamente àquele parâmetro tripartite de Platão, enquanto essa categoria de natureza (phúseôs) complementa algo dentro da interpretação de Hermias. Essa natureza (phúseôs) em Hermias parece cumprir um papel de demarcação entre dois lugares distintos da escala, visto que ele precisa de uma categoria adicional para descrever as almas e seus destinos. A inclusão dessa quarta categoria, além de se adequar à abordagem horizontal da escala, encontra exatos doze destinos para as almas, tais quais as partes do céu. Essa parece uma razão plausível para essa necessidade e aplicação, uma ambiência original ancorada na religião astral e, por isso, atenta à divisão em doze partes.
Parece que Hermias necessita, em sua interpretação, de uma coerência que apenas esse quarto nível adicional traz, uma categoria complementar para que os “amigos das fadigas, da ginástica e os curandeiros” possam estar no mesmo bloco das vidas completas e destinos nobres. Quanto à aplicação da categoria natureza (phúseôs) como o quarto nível da escala, fica relativamente claro que, nessa faixa, apesar de ser o bloco “completo” das almas, esse seria o nível mais afastado das virtudes da alma em relação aos três superiores níveis. Nesse quarto nível, são as virtudes do corpo que prevalecem, pois esse lugar está abaixo das almas apetitivas (epithumías) na hierarquia criada por Hermias.
Depois desse quarto nível, por outro lado, já não há a completude de tipos horizontais na escala, evidenciando tipos de vidas menos nobres que os quatro primeiros. Assim, completude se diz apenas para os quatro níveis superiores, os quais apresentam, pelo menos, os três tipos de vidas nos lugares horizontais. Fora desse bloco principal, todas as outras vidas ou destinos são considerados incompletos, por não terem três tipos de vidas dentro da perspectiva das completudes horizontais.
Síntese de elementos do próprio platonismo, com acréscimos aristotélicos e estoicos, a interpretação de Hermias não se põe como absoluta, mas procura seguir o próprio Platão, que, segundo ele, também se valeu de outras maneiras de dividir a tipologia das almas, especialmente na tripartição do Filebo (Phlb. 22a9; 43c-d) e em uma partição em cinco na República, em que encontramos apenas uma divisão em cinco tipos de regimes políticos: régio, timocrático, oligárquico, democrático e tirânico (basilikón, timokratikón, oligarkhikón, dêmokratikón, turannikón) (R. 580b3-4). Entretanto, não há certeza de que Hermias esteja se referindo exatamente a essa passagem.
Vejamos como Hermias realiza tal divisão nesses quatro níveis superiores da escala, que ele designa como contemplações (theôrouménôn) da humanidade:
Τεσσάρων οὖν τούτων περὶ τὸν ἄνθρωπον θεωρουμένων, λόγου, θυμοῦ, ἐπιθυμίας, φύσεως, ἡ ψυχὴ ἡ κατελθοῦσα εἰς γένεσιν ἢ κατὰ λόγον μόνον ζῇ, μηδὲν προσποιουμένη τὰ πάθη μηδέ τι ἐξ αὐτῶν πάσχουσα, καὶ ποιεῖ τὸν πρῶτον βίον τὸν φιλόσοφον· ἢ κατὰ θυμὸν ζῇ κρατοῦντος τοῦ λόγου, καὶ ποιεῖ τὸν δεύτερον βίον τὸν <βασιλικὸν> καὶ <πολεμικόν>· ἢ κατὰ ἐπιθυμίαν ζῇ κρατοῦντος πάλιν τοῦ λόγου, καὶ ποιεῖ τὸν τρίτον βίον τὸν <πολιτικὸν> καὶ <χρηματιστικόν> (οὗτος γὰρ τὰς ἀναγκαίας τροφὰς περιποιεῖ τῷ ζῴῳ καὶ τῇ πόλει)· ἢ πάλιν περὶ τὴν φύσιν στρέφεται τοῦ λόγου ἐπιστατοῦντος, καὶ ποιεῖ τὸν <γυμναστικὸν> καὶ <ἰατρικόν>· περὶ γὰρ τὴν φύσιν καὶ τὰ σώματα οὗτος ἀναστρέφεται ἐπιμελούμενος αὐτῶν καὶ ἰώμενος.
São quatro as contemplações (theôrouménôn) da humanidade: razão, ira, apetite e natureza (lógou, thumoû, epithumías, phúseôs), a alma que chegou à geração ou que viveu apenas de acordo com a razão, sem produzir afecções, nem as sofrendo de outros, assim perfaz a primeira vida do filósofo. Ou, segundo a vida da irascibilidade (thumòn), tendo dominado a razão (toû lógou), assim perfaz a segunda vida do “rei” e do “guerreiro”. Ou segundo a vida do apetite (epithumían), tendo dominado mais uma vez a razão (toû lógou), assim perfaz a terceira vida do “político” e do “administrador” (pois assim provê as necessidades dos viventes e da cidade). Ou ainda, mais uma vez, segundo a vida natural (phúseôs) sofre uma conversão da razão (stréphetai toû lógou), e perfaz o “ginasta e o “médico”, pois nessa vida natural os corpos se convertem (anastréphetai) em cuidadores e curandeiros. (Hermias, 164,31-165,21)5
Hermias apresenta quatro tipos de “contemplações” ou níveis possíveis para a natureza humana, seguindo, por um lado, os três impulsos ligados à própria tripartição da alma (lógou, thumoû, epithumías), acrescidos desse quarto tipo, ligado à natureza (phúsis). Nesse nível estão os médicos, os ginastas e os curadores. Hermias aplica essa partição nos quatro níveis superiores da escala, nos quais se observa, como vimos, uma completude tripartida horizontalmente com relação aos tipos de vidas. Hermias segue essa “completude” horizontal, de modo que onde há esses três tipos horizontais está a primeira faixa completa, enquanto os demais níveis inferiores obedecem, nessa primeira maneira que Hermias usou para interpretar a escala, outros modos incompletos.
Hermias aplica essa partição nos quatro níveis superiores da escala, nos quais se observa, como vimos, uma completude tripartida horizontalmente com relação aos tipos de vidas. A primeira faixa completa dos três níveis superiores se destaca, enquanto os demais níveis inferiores seguem como modos de vida incompletos. Assim, Hermias divide a escala entre níveis completos (1, 2, 3 e 4) e incompletos (5, 6, 7, 8 e 9), considerando essas disposições.
Essa menção às vidas dentro de perspectiva da listagem horizontal não possibilita deduzir com precisão porque Platão teria mencionado algumas vidas e não outras de modo “completo”, com três partes. Porque teria aplicado a tripartição horizontal nos quatro níveis superiores da escala, sem explicitar qualquer tipo de justificativa para a assimetria horizontal subsequente dos lugares inferiores e vazios da escala. A partir do quarto nível em direção descendente a escala vai afunilando, ou seja, reduzindo até chegar à vida solitária do tirano. Hermias ressalta que há níveis de imperturbabilidade, enquanto a capacidade em não afetar e nem se deixar afetar está no ápice da sabedoria, havendo uma fusão entre epistemologia e ética com um certo sabor socrático.
Se Hermias seguisse apenas a lógica da tripartição da alma, tal qual o próprio Platão a apresentou, muito provavelmente não incluiria esse quarto nível, essa quarta categoria da phúsis, com a qual “salva” a disposição horizontal e tripartida das doze almas dispostas nessa faixa inicial e completa. Hermias inclui a disposição da natureza (phúsis) indicando doze lugares completos, tais quais as partes do céu constelado, isso talvez tenha sido levado em consideração, estabelecendo uma possível analogia zodiacal entre essas posições ou disposições mais elevadas da escala. Num trecho à frente, não muito distante, Hermias volta a explicar como realiza sua leitura, que, segundo ele, provém do próprio Platão:
καὶ γὰρ διεῖλεν εἰς τρία καὶ τέσσαρα καὶ ἓν, καθὸ τοὺς μὲν πρώτους τέσσαρας τριαδικῶς προηνέγκατο, τοὺς δὲ λοιποὺς τέσσαρας δυαδικῶς, καὶ τὸν τελευταῖον μοναχῶς διεῖλε· καὶ εἰς πέντε καὶ τέσσαρα, καθὸ τοὺς μὲν πρώτους πέντε τῇ αὐτῇ πτώσει προηνέγκατο εἰπών <«πρώτην, δευτέραν, τρίτην, τετάρτην, πέμπτην,»> ἐν δὲ τοῖς ἐφεξῆς ἐνήλλαξε τὴν πτῶσιν, κατὰ δοτικὴν εἰπών <«ἕκτῃ»> καὶ <«ἑβδόμῃ»> καὶ ἐφεξῆς· καὶ εἰς ὀκτὼ καὶ ἓν, καθὸ τοὺς μὲν ἄλλους πάντας διὰ πλειόνων ἐξέθετο, τὸν δὲ τελευταῖον δι’ ἑνός.
(Platão) dividiu em três, quatro e um, de acordo com os quatro níveis das tríades primeiras apresentadas, nos quatro níveis seguintes há bipartição e o último nível termina de modo unitário. Pode-se observar os cinco níveis ou os quatro, de acordo com os cinco primeiros níveis, em cada um dos casos, podemos dizer: “primeiro, segundo, terceiro, quarto e quinto” e nos seguintes, expandindo os níveis, apresentando-os como “sexto”, “sétimo” e, assim por diante, “oitavo e unitário”; para todos os outros havia pluralidade, no final apenas um. (Hermias, 167,25-33. Tradução nossa)
Hermias parece interessado, nesse primeiro momento, nas diferenças entre pluralidade, dualidade e unidade, pelas quais ressalta o nono nível como o mais restrito, os bipartidos como intermediários e os quatro níveis triádicos como superiores, plurais e completos. Hermias interpreta a escala tanto pensando vertical como horizontalmente, uma vez que retém que Platão “dividiu em três” a alma, tripartição que passa a ser pensada também em sua horizontalidade, reaplicada na leitura do próprio filósofo, através dos lugares da escala. Nesse primeiro mergulho, como vimos, isso não ocorre de modo proporcional ou simétrico, mesmo porque seu foco é justamente o desenho assimétrico da escala.
Hermias ensina a referir os níveis da escala, numerando-os também, apresentando sua hermenêutica. Nessa primeira interpretação de Hermias, teremos os cinco níveis inferiores, não no sentido pejorativo do termo, mas por estarem abaixo na escala dos quatro níveis principais. Essa diferença é ressaltada nessa leitura, pois Hermias tem uma leitura pessimista quando trata do oitavo e novo níveis, visto que aí as vidas não são evidentemente agradáveis, sendo sempre possível, entretanto, que haja uma superação dessas condições nas próximas vidas.
No quinto nível está a vida de sacerdote, ou, na linguagem de Platão, dos “adivinhos (mantikón) ou de alguém que pode cuidar das iniciações (telestikón)”. Segundo Hermias essa vida de adivinho e de iniciado dedica-se especialmente à relação dos homens com os deuses, cuidando da parte técnica dessa atividade. Embora não possam ser classificados como entusiasmados, tal qual o filósofo poderá ser, essa vida de tipo sacerdotal, quando bem vivida, pode levar à condição mais nobre da escala. Vejamos como Hermias descreve isso:
Ἐπειδὴ οὖν εἰς τὸ πέρας τῆς κατὰ φύσιν προόδου τῆς ζωῆς κεχωρήκαμεν, λοιπὸν ὁ πέμπτος βίος <ὁ τελεστικὸς>, ἰδίαν οὐκ ἔχων δύναμιν, ἐπιστρέφει εἰς τοὺς θεοὺς, καὶ ἐκεῖθεν βοήθειάν τινα τοῖς πρὸ ἑαυτοῦ βίοις πορίζεται· <μαντικὸν> δὲ καὶ <τελεστικὸν> λαμβάνει οὐ τὸν ἐνθουσιαστικόν (οὗτος γὰρ καὶ φιλόσοφός ἐστιν ἄκρως καὶ ἐπιστήμων καὶ τὸ ὅλον θεῷ κάτοχος), ἀλλὰ τὸν τεχνικὸν τοῦτον καὶ ἱερατικὸν, ὃς διὰ θυσιῶν καὶ εὐχῶν ἐπικουρίαν τινὰ τοῖς ἀνθρώποις πορίζει. Καὶ οὗτοι μέν εἰσιν οἱ πέντε βίοι οἱ κατὰ λόγον ἐπιτελούμενοι ὀρθὸν καὶ τοῖς περὶ τὸ θεῖον ἀπεικασμένοι· καὶ γὰρ ἕκαστος τῶν θεῶν καὶ μένει καὶ πρόεισι καὶ ὑποστρέφει· καὶ ἐνταῦθα οὖν ἢ μένει ἐν τῷ λόγῳ καὶ ποιεῖ τὸν φιλόσοφον, ἢ πρόεισιν ἄχρι φύσεως καὶ ποιεῖ τοὺς ἄλλους τρεῖς, ἢ ὑποστρέφει εἰς τοὺς θεοὺς καὶ ποιεῖ τὸν πέμπτον.
Em seguida, na direção dos limites dos trajetos naturais pelos quais nos afastamos da vida, permanece a quinta modalidade de vida, a dos “ocupados com as iniciações (telestikós)”, sozinhos eles não podem nada, estão voltados (epistréphei) para os deuses e a eles prestam um tipo de auxílio voltado à sua vida passada, “adivinho” (mantikòn) e “homem ocupado com iniciações” (telestikòn) não tomam um lugar entusiástico (pois assim é o filósofo em seu mais elevado lugar, tendo ciência e tomado por tudo que há no deus), mas [cuidam] da parte técnica (tekhnikòn) e sacerdotal (hieratikòn), realizam o cuidado para os homens nos sacrifícios e preces (thusiôn kaì eukhôn). E assim são os do quinto tipo de vida, os que segundo a razão correta são guiados e se assimilam ao divino, pois permanecem, aparentam-se e se devotam a um dos deuses. Nesse caso a [alma] que permanece na razão perfaz o filósofo, ou avança continuamente nessa direção da natureza e assim perfaz outras três [vidas], ou retorna ao deus e perfaz o quinto [nível]. (Hermias, 165,21-34. Tradução nossa)
Essa descrição do quinto nível, do adivinho (mantikón) ou alguém que cuida das iniciações (telestikón), procura mostrar que apesar de ser uma classe honrada pela cidade, seus representantes distam dos melhores destinos, do ponto de vista do ciclo das almas. Os sacerdotes não são exatamente entusiasmados, como os filósofos, mas vivem uma vida isolada, cumprindo tecnicamente (tekhnikòn) esse cuidado para os homens nos sacrifícios e nas preces (thusiôn kaì eukhôn) aos deuses. Na interpretação de Hermias, fica claro que a partir do quinto nível, na direção descendente, até o nono e último, estariam localizados os níveis de vida menos favorecidos pelos sorteios combinados às escolhas dessas almas, especialmente porque segundo ele são caminhos “afastados da vida”.
Descendo ainda mais na escala, encontramos agora os sextos e sétimos níveis, vidas que são as dos miméticos verdadeiros, diferentemente do que ocorre no sexto nível onde estão os “miméticos de palavras” e no sétimo nível os “[miméticos] de ações”, o que em Platão corresponde a “poeta, alguém que se ocupa da mimese ou outras [atividades] concordes”, no sexto nível, e a “demiurgo ou homem do campo”, no sétimo nível. Todos esses serão nomeados, em Hermias, como “miméticos e criadores de ídolos” (eidolikós), especialmente porque esse demiurgo é um artífice, imitador, bem como o poeta, o pintor e o agricultor. Essa primeira subdivisão que adota Hermias, de discursos e ações, nesses níveis distintos, valerá também para os dois níveis subsequentes: “Entre os demais quatro níveis das vidas, estão os miméticos (mimêtikôn) e criadores de ídolos (eidôlikôn), dois deles estão nesse sexto e sétimos [níveis] como miméticos verdadeiros, os primeiros dos discursos e os seguintes das ações” [...] (Hermias, 165,1-3).6
Hermias discerne esses campos da mimese, que diz ser verdadeira, sem deixar de mencionar que a mimese está em todos os níveis e todas as atividades, inclusive observando que o “filósofo” e o “rei” também ensinam através da mimese, só que isso acontece no primeiro nível da escala e da mimese. Hermias universaliza a mimese, assim como Platão, ao descrever que a vida perfeita do filósofo está justamente em saber bem imitar a divindade, a qual já conhecia em seus trajetos anteriores na planície da verdade.
Descendo aos limites inferiores da escala, nas vidas mais detratadas na obra de Platão, encontramos, no oitavo nível, o sofista e o democopta (aquele que lesa o povo), e no nono nível o solitário e infeliz tirano. Hermias fará duas distinções bastante interessantes nesses níveis, comparando, por um lado, sofista e democopta, ao afirmar que “o sofista quer ser professor de leis e virtudes, enquanto o homem que lesa o povo (democopta) quer apenas falar para muitos”, e, por outro lado, realiza uma comparação entre os níveis oitavo e nono, a única delas aliás, ao dizer que sofista age pelo engano, enquanto o tirano age pela força.
Resumidamente, tomando essa primeira interpretação que Hermias faz, é preciso observar que a divisão que ele propõe dos níveis é o central da sua interpretação. Hermias explica, um pouco à frente, seu modo de interpretar o trecho: “Os quatro primeiros níveis de vidas mais sólidas tiveram suas escolhas, em cada uma delas há três [vidas possíveis], enquanto os quatro níveis seguintes são mais penosos, neles há duas [vidas possíveis] e somente o nono nível, o mais extenuante de todos, traz apenas a vida tirânica” (Hermias, 166,27-9).7
Hermias, nesse ponto, é extremamente claro, descrevendo quais são os vinte e um lugares dos destinos, não havendo nenhum lugar vazio. Em seguida, Hermias mostrará uma divisão seguindo um novo parâmetro, seguindo a lógica dos domínios teológicos. Essa segunda abordagem será mais proporcional com relação aos nove níveis, pois dividirá os nove níveis verticais em três grandes blocos de acordo com domínios de divindades respectivas, fazendo com que todas as partes sejam de tamanho proporcional umas em relação as outras.
O segundo mergulho de Hermias
Hermias realiza, na sequência desse comentário, sua segunda interpretação/ divisão da escala, uma interpretação complementar, não exatamente contraditória, mas de acordo com parâmetros estritamente teológicos.8 Hermias fará um novo agrupamento, agora no sentido de tripartir a escala dos nove níveis em três grandes segmentos compostos por três tríades. A ideia será dividir a escala sob o domínio de deuses específicos, desconsiderando agora o antigo bloco dos quatro níveis primeiros, que anteriormente designamos como primeiro escalão ou segmento das completudes. Designaremos essa segunda interpretação da escala platônica como o segundo mergulho de Hermias, uma segunda maneira de interpretar e dividir a escala.
Hermias dividirá a escala em três tríades, realizando um tipo de correspondência entre domínios teológicos de cada esfera de atividade das almas. Hermias abandona a maneira anterior, do modelo 4, 4, 1, e começa a tripartir a escala de nove níveis em três tríades, o que, de fato, parecia mais natural, uma divisão no modelo 3, 3, 3, proporção na qual são atribuídas divindades específicas a domínios das atividades da escala. Hermias dirá agora que Zeus, Hera, Atena e Ares presidem as atividades dos três primeiros níveis, e aqui já há uma pista do porquê serem, na interpretação anterior, quatro os níveis superiores, pelo fato do próprio Platão, no diálogo original, mencionar Zeus, Hera, Apolo e Ares como deuses a quem os homens podem imitar.9 Mas aqui os quatro deuses se dividem entre os três primeiros níveis. Seguindo Hermias, temos ainda Apolo e Hermes que presidem os níveis 4, 5 e 6, e Hefesto que preside as transformações demiúrgicas dos níveis 7, 8 e 9, região cujo domínio seria dos deuses designados por encósmios.10 Zeus, Hera, Atena, Ares, Apolo, Hermes e Hefesto: aqui podemos ver que a escala de nove graus, tem três grandes porções divididas entre sete divindades. Zeus, Hera, Atena e Ares, nos níveis 1, 2, 3; Apolo e Hermes nos níveis 4, 5, 6, e Hefesto nos níveis 7, 8 e 9. Vejamos como Hermias realiza essa segunda interpretação:
Ἐὰν δὲ καὶ τρεῖς τριάδας ποιήσωμεν τὴν μὲν πρώτην δίιον εὑρήσομεν· <φιλόσοφος> γὰρ καὶ <βασιλεὺς ὁ> Ζεὺς καὶ δὴ καὶ ἄριστος <πολιτικὸς> τοῦ κόσμου· εὑρεθεῖεν δ’ ἂν καὶ ἄλλοι θεοὶ ὑπὸ ταύτην τελοῦντες τὴν τριάδα, οἷον καὶ Ἀθηνᾶ διὰ τὸ φιλόσοφον καὶ πολεμικὸν καὶ Ἄρης καὶ Ἥρα διὰ τὸ βασιλικόν. Τὴν δὲ δευτέραν τριάδα ἀπολλωνιακὴν ἂν εἴποιμεν καὶ <μαντικῆς> καὶ <ποιητικῆς>· μουσηγέτης γοῦν λέγεται, πάλιν καὶ Ἑρμοῦ δυναμένου ἐνταῦθα ὑπάγεσθαι διὰ τὸ ἀγωνιστικόν. Τὴν δὲ τρίτην τριάδα Ἡφαιστιακὴν ἂν εἴποιμεν· ὁ γὰρ περὶ τὸ φαινόμενον καὶ τὴν δημιουργίαν ἀναστρεφόμενος ὁ δεσπότης ἐστὶν Ἥφαιστος, τὰς ἐγκοσμίους ἕδρας τοῖς θεοῖς προευτρεπίζων. Ταῦτα μὲν οὖν οὕτως ἡμεῖς διεταξάμεθα·
Se pusermos as três tríades primeiras encontraremos: “filósofo”, “rei”, em que Zeus é o melhor, assim como o “político” do cosmo. Poderíamos encontrar outros deuses nessa tríade completa, como Atena na filosofia, na guerra Ares e no reinado Hera. A segunda tríade podemos dizer que é a apolínea, com “adivinhação” e “poesia” do chamado condutor das Musas, e mais uma vez temos o poder de Hermes nessas atividades agonísticas. A terceira tríade podemos chamar de Hefaística, pois trata dos fenômenos e transformações demiúrgicas cujo mestre é Hefesto, que prepara os tronos dos deuses encósmios. Essa é a maneira pela qual os organizamos. (Hermias, 167,33-8. Tradução nossa)
É difícil avaliar em que medida Hermias, ao dividir novamente a escala segundo esses parâmetros teológicos, de domínios de deuses, considera ainda o papel da divisão anterior. Hermias expõe essas atribuições teológicas segundo essa nova tripartição, e embora pareça uma nova interpretação, segundo critérios teológicos, aparentemente ela não invalida nem contradiz a interpretação/ divisão anterior, posto que tratam de parâmetros diferentes, que podem ser entendidos como complementares. Isso mostra como a hermenêutica de Hermias combina critérios ou parâmetros distintos.
Não é demais observar que a escola de Atenas procurava uma sintonia/ sinfonia entre as tradições teológicas gregas até Platão, esse era um de suas preocupações, realizar a “sinfonia” das tradições teológicas. Um exemplo eloquente disso é um trecho de Damácio, no qual mostra diversas permanências estruturais nas tradições teológicas gregas: orfismo, Homero, Hesíodo, Acusilau, Epimênides, Ferécides (Dam. De principiis, 124-126). Conciliar as tradições teológicas gregas era um objetivo de Hermias e seus colegas. Mas o trecho aqui estudado termina de modo um pouco enigmático, e talvez nele haja ainda elementos que nos permitam seguir reinterpretando Platão:
εἰ δέ τινες ἢ τὸν ἡνίοχον καὶ τοὺς δύο ἵππους τρεῖς ὄντας τριπλασιάζωσιν, ἢ καὶ τὰς τρεῖς ὁλότητας τριπλασιάζωσι, τὴν πρὸ τῶν μερῶν, τὴν ἐν τῷ μέρει, τὴν <ἐκ τῶν μερῶν> καὶ οὕτως οἴονται ποιεῖν ἐννέα τοὺς βίους, οὐχ ὁρῶ πῶς ἂν ἑαυτοῖς ἢ τῷ Πλάτωνι συμφωνήσαιεν.
Se alguns são aurigas e outros ligados aos cavalos, conformando um ser tripartido, nela deve haver três completudes, das partes, nas partes, externos às partes, assim considerando perfazer as nove vidas possíveis, mas não vejo como Platão as tornava sinfônicas consigo mesmas. (Hermias, 167,8-12. Tradução e destaques nossos)
Esse trecho, contíguo à citação precedente, resgata a imagem platônica da biga alada, procurando relacionar a tripartição da alma, pela imagem da biga, com as vidas da escala, mas como Hermias observa que não há completudes (holótêtas) evidentes, ou seja, que não há os três lugares horizontais em todos os nove níveis da escala, ele afirma não ser capaz de ver como Platão as concebia, na linguagem dele, como as tornava “sinfônicas consigo mesmas”. Esse termo é bastante importante e recorrente, uma vez que, como dissemos, essa escola de Atenas da qual Hermias fez parte procurava compatibilizar as doutrinas teológicas gregas mais antigas com as mais recentes, e a expressão “sinfonia” parece ser a predileta entre eles (Saffrey, 2000, p. 157). É interessante reter essa ideia de aplicação da própria tripartição, presente na imagem da biga, na interpretação da escala, algo que de algum modo Hermias nos ensina depois desse segundo mergulho.
As interpretações de Hermias acerca da escala platônica podem ser exemplificadas de modo gráfico, meio pelo qual é possível visualizar justapostos os níveis da matriz platônica e as duas intepretações de Hermias. Do quinto ao oitavo nível, as duas vidas apresentadas foram alocadas à esquerda nesse diagrama, como se o terceiro lugar, que corresponderia à parte apetitiva da alma na distribuição horizontal das tripartições, permanecesse vazio. Assim como no nono nível, o tirano também ficou à esquerda, deixando dois lugares “vagos” à sua direita, entretanto não há de fato nenhuma obrigatoriedade que justifiquem essas posições, imaginando que pudessem eventualmente serem alocadas e/ou distribuídas em outras posições nas mesmas linhas. Como não há indício dessas lacunas em Platão e de seu verdadeiro lugar, sendo esse um dos problemas que Hermias procura resolver, alinhei por convenção os tipos de vidas à esquerda, já que a questão acerca dos valores eventuais dessas posições parece insolúvel. A seguir, apresentamos um diagrama das interpretações de Hermias acerca da escala platônica:
Passagem Nível | Platão (Fedro 248c2-249b6) | Hermias, primeira interpretação (In Platonis Phaedrum Scholia, 164-165) | Hermias, segunda interpretação (In Platonis Phaedrum Scholia, 167) | ||
1º | filósofo | amigo do belo | músico | razão, lógou | Zeus, Hera, Atena e Ares |
2º | rei na lei | guerreiro | comandante | ira, thumos | Zeus, Hera, Atena e Ares |
3º | político | economista | administrador | apetite, epithumías | Zeus, Hera, Atena e Ares |
4º | amigo das fadigas | amigo da ginástica | curandeiro (médico) | natureza phúseôs | Apolo, Hermes |
5º | adivinho (mantikón) | ocupado com iniciações (telestikón) | - | - | Apolo, Hermes |
6º | poeta | alguém que se ocupa da mimese | - | - | Apolo, Hermes |
7º | demiurgo | homem do campo | - | - | Hefesto |
8º | sofista | aquele que lesa o povo (dêmokopikós) | - | - | Hefesto |
9º | tirano | - | - | - | Hefesto |
O empenho de Hermias em ajustar sua interpretação de acordo com parâmetros distintos mostra uma espécie de perspectiva peirástica, de investigação de uma melhor ou mais bem acomodada leitura do trecho. Nesse processo, fica claro como Hermias precisa criar a quarta categoria (nível), que seria aquele da natureza (phúsis), que parece sobretudo se ajustar à exigência da completude entre os níveis principais e mais nobres, entre os quais, as almas puderam escolher: “os quatro primeiros níveis de vidas mais sólidas tiveram suas escolhas”. Essa talvez seja também uma diferença importante entre os quatro níveis principais e os cinco restantes da escala, uma vez que para Hermias aquelas almas tiveram o benefício da escolha na hora da encarnação, enquanto a dos níveis inferiores não. Evidentemente, isso não se depreende do trecho de Platão, para o qual tais escolhas sempre estão presentes em todos os níveis e aparecem combinadas às determinações superiores, como indica também de modo complementar o mito de Er no final da República, imagem que parece compor um quadro interpretativo verossímil junto ao trecho do Fedro.
Hermias já havia realizado a tripartição da escala horizontalmente e, em seguida, repete a tripartição verticalmente de modo simétrico nas correspondências teológicas, concebendo uma lógica que, de fato, não responde completamente suas indagações, como vimos. Talvez o fato de não termos encontrado uma correspondência exata, como bem observou Hermias, não nos deva desencorajar na busca de compreender Platão através de Hermias. Especialmente porque a pergunta segue sendo marcante: como Platão as tornava sinfônicas consigo mesmas? Hermias permanece com essa dúvida de como interpretar o trecho, o que mostra a dificuldade do problema, para além dessa aproximação que realizamos nesse estudo. Procurar entender, depois do trajeto de Hermias, como Platão as tornava sinfônicas consigo mesmas, permanece um enigma e um estímulo para um esforço que se renova, mas que necessariamente foge ao alcance desse percurso.
Hermias aplica um esquema investigativo em torno dessas divisões, as quais ele, aliás, considera que deveriam ser em dez níveis, sem, contudo, explicar essa divisão em dez níveis (164,6), apenas aplicando as duas maneiras que estudamos aqui nesse percurso. Seu objetivo era “a complementação das vidas”, uma vez que, segundo ele, seria possível “dividir essas vidas de outras tantas maneiras, com mais ou menos lugares”.
Outros pesquisadores já enfrentaram questões similares em Hermias (Moreschini, 2009; Longo, 2001, 2009; Lucarini, 2008; Broggiato, 2009; Manolea, 2013; Roskam, 2013), mas nenhum tratou desse trecho e tema específicos. A tradução do trecho de Hermias que aqui apresentamos, de modo complementar, acompanhada de algumas notas, é um dos resultados desse estudo, bem como o gráfico supracitado dos níveis em Platão com a interpretação esquemática de Hermias. Esperamos que ambos, o estudo e a tradução, possam estimular outras abordagens sobre essas antigas interpretações neoplatônicas de textos da era clássica, especialmente porque a tradução de Baltzly e Share (2018, p.47-171) não abarca esse trecho do comentário de Hermias.
Hermias de Alexandria, In Platonis Phaedrum Scholia (164,16-167,12)
<Ἀλλὰ τὴν μὲν πλεῖστα 248d>
<mas os que o máximo [viram] 248d>
É preciso dizer primeiramente como diferem essas nove vidas atribuídas [no Fedro] das que foram atribuídas na República. Dessas nove, algumas eram inaptas,11 enquanto outras poderiam escolher, de acordo com o anterior sorteio das almas, assim tomando cada qual a sua parte de acordo com o valor do privilégio (géra) e da honra (timḕn) na contemplação dos inteligíveis (noêtôn). Aí, ocorre a mudança da alma humana para a alma animal e da alma animal para a humana,12 a qual somente ocorre no gênero masculino, não no gênero feminino. E o mais grandioso disso é que aqui primeiramente partindo do inteligível (apò toû noêtoû) a alma adentra em direção à gênese (eis génesin), assim passando de uma vida para a vida seguinte. E de todo esse fino trabalho é possível descobrir as muitas diferenças entre umas e outras [vidas]. E ainda também é necessário que nos lembremos, porque nelas mesmas estão as formas das vidas anteriores, não todas, assim com as sortes (tas túkhas) e as circunstâncias externas (tàs ektos peristáseis), como soldado ou rei, pois nem todos estavam dispostos com armas e se valeram dessa sorte (tukhêi), mas a forma de vida na qual foram lançados, como a forma da vida do soldado, é herdada na vida do filósofo e nela transparece (emphaínesthai). Na República, Platão trata das mesmas sortes escolhidas (túkhas aireîsthai) e atribuídas (apodídosthai) às almas.13
Para além disso, é preciso investigar todos os níveis possíveis de vida entre aquelas nove que foram divididas, ou se alguma outra foi esquecida nessa divisão, a qual para nós é de dez, ou então façamos a complementação das vidas,14 pois acerca do mesmo tema é possível dividir essas vidas de outras tantas maneiras, com mais ou menos [lugares], como no Filebo15 são três as vidas e na República cinco.16 Mostremos agora todos os níveis de vida nessa divisão em nove tipos.
Então, são quatro as contemplações da humanidade: razão, ira, apetite e natureza (lógou, thumoû,epithumías, phúseôs), a alma que chegou à geração ou que viveu apenas de acordo com a razão, sem produzir afecções, nem as sofrendo de outros, assim perfaz a primeira vida do filósofo. Ou, segundo a vida da irascibilidade (thumòn), tendo dominado a razão (toû lógou), assim perfaz a segunda vida do “rei” e do “guerreiro”. Ou segundo a vida do apetite (epithumían), tendo dominado mais uma vez a razão (toû lógou), assim perfaz a terceira vida do “político” e do “administrador” (pois assim provê as necessidades dos viventes e da cidade). Ou ainda, mais uma vez, segundo a vida natural (phúseôs) sofre uma conversão da razão (stréphetai toû lógou), e perfaz o “ginasta e o “médico”, pois nessa vida natural os corpos assim se convertem (anastréphetai) em cuidadores e curadores. Em seguida, na direção dos limites dos trajetos naturais pelos quais nos afastamos da vida, permanece a quinta modalidade de vida, a dos “ocupados com as iniciações (telestikós)”, sozinhos eles não podem nada, estão voltados (epistréphei) para os deuses e a eles prestam um tipo de auxílio voltado à sua vida passada, “adivinho” (mantikòn) e “homem ocupado com iniciações” (telestikòn) não tomam um lugar entusiástico (pois assim é o filósofo em seu mais elevado lugar, tendo ciência e tomado por tudo que há no deus), mas [cuidam] da parte técnica (tekhnikon) e sacerdotal (hieratikón), realizam o cuidado para os homens nos sacrifícios e preces (thusiôn kaì eukhôn). E assim são os do quinto tipo de vida, os que segundo a razão correta são guiados e se assimilam ao divino, pois permanecem, aparentam-se e se devotam para um dos deuses. Nesse caso, a [alma] que permanece na razão perfaz o filósofo, ou avança continuamente nessa direção da natureza e assim perfaz outras três [vidas], ou retorna ao deus e perfaz o quinto [nível].
Entre os demais quatro níveis das vidas, estão os miméticos e criadores de ídolos (eidôlikós), dois deles estão nesse sexto e sétimos [níveis] como miméticos verdadeiros (alêthôs), os primeiros dos discursos, e os seguintes das ações,17 enquanto no oitavo e no nono [níveis] há uma diferente mimese, inferior (anomoíôsmimoûntai kaì epì tò cheîron), também de discursos e ações. Assim entre os quatro miméticos anteriores, dois deles são miméticos verdadeiros (alêthôs mimoûntai), e os outros dois [são] diferentes (anomoíôs), o sexto e o sétimo [níveis] são miméticos verdadeiros naquilo que se ocupam, porque através da razão o “filósofo” também imita, bem como o “rei” e os restantes, e por meio dela ensina aos homens, o sétimo também o faz através de suas ações – pois ele é um “demiurgo”. O oitavo e o nono [níveis] imitam de modo diferente, através, mais uma vez, das palavras e das ações.
“Poeta” compreende toda a mimese, inclusive a dos pintores, os quais também [Platão] diz na República estarem três pontos “afastados da verdade”.18 “Demiurgo” [é capaz] de levar o não-ser a uma essência qualquer, uma vez que é artífice, modelador, sapateiro, e o “agricultor”, em seu cuidado com as coisas da natureza, conhece como estariam saudáveis e como melhor elas brotam. “Sofista” e “homem que lesa o povo” (dêmokopikòs) são diferentes, porque o sofista quer ser professor de leis e virtudes, enquanto o homem que lesa o povo quer apenas falar para muitos. Não tomemos de modo distorcido “sofista” e “tirano”, mas, valendo-nos da bondade, vejamos como um [age] pelo engano e o outro pela força. Neles há, pois, o bom e o mau uso, na maneira como eles se conduzem.
<Ἐν δὴ τούτοις ἅπασι 248e>
<em todas elas 248e>
Essas foram as nove vidas. É preciso em cada uma escutar esse “tendo visto o máximo” (pleîsta idoûsa), para que sejam assim. Esse conhecer a plenitude é sua condição primeira, ou então ela está em algum corpo, momento seguinte em que conhecer a plenitude será de outra maneira, e ainda uma terceira maneira de conhecer a plenitude, e assim sucessivamente. É por isso que os quatro primeiros níveis de vidas mais sólidas tiveram suas escolhas, em cada uma delas há três [vidas possíveis], enquanto os quatro níveis seguintes são mais penosos, neles há duas [vidas possíveis] e somente o nono nível, o mais extenuante de todos, traz apenas a vida tirânica.19 Passar pelos nove níveis no sentido descendente e em seguida ascender na escala até o nono nível é igualmente possível.20
Podemos concluir que as restantes que contemplaram suficientemente os inteligíveis com a reflexão humana se dirigem para a primeira ou segunda vida, descendendo sucessivamente. Tendo contemplado a beleza, a sabedoria e o bem, em seguida através dessas coisas são levadas dos primeiros aos últimos lugares, até retornarem à primeira vida.21 Pela boa razão, depois da contemplação da sabedoria, há a escolha da vida do “filósofo”, se foi da beleza a vida do “amigo do belo” é escolhida, o qual se divide entre o “músico” e o “erótico”, pois somos capazes de nos lembrarmos da beleza através da visão e do belo inteligível que recebemos pela audição. Toda essa condição está direcionada para o bem.
Aquela [alma] que tendo contemplado o gênero do ser escolhe a vida segunda, pois ali toma acento tudo o que concerne ao rei, o qual nessa posição, por analogia, permanece estático (junto ao rei dizemos que está o fundamento e seu trono, para onde as coisas se dirigem) e move cada uma das coisas que estão dispostas e organizadas, pela analogia do movimento. Amizade e unificação de todas as coisas atribuídas através das leis comuns, o que é a mesmíssima coisa. Ele discerne também cada uma das coisas e afasta as guerras e destruições, o que é um trabalho de outro tipo, e governa tudo, o “guerreiro”, o “governante”, como se diz. Tendo feito todas as coisas, não poderíamos dizer de acordo com a essência que conduziu diretamente cada uma do não-ser ao ser? Há uma parcialidade do gênero do ser e que não propicia uma contemplação completa, a qual ocorre na terceira vida vivida na própria justiça (autodikaiosúne). A justiça converte os que por três vezes receberam e permaneceram nesse tipo de vida. Os que tendo contemplado a própria saúde (autougíeian) e o próprio corpo (autósôma) perfazem o quarto nível de vida. Depois [estão] os que conduzem iniciações e adivinhações divinas. Os quatro demais níveis contemplaram a própria semelhança (autoomoióteta) e a dissemelhança (anomióteta), enquanto os do primeiro nível [contemplam] as semelhanças, terminando nas dissemelhanças.
Em Platão quase todas [as almas] veem de modo parcial. Ele dividiu em três, quatro e em um, de acordo com os quatro níveis das tríades primeiras apresentadas, nos quatro níveis seguintes há bipartição e o último nível termina de modo unitário. Pode-se observar os cinco níveis ou os quatro. De acordo com os cinco primeiros níveis, em cada um dos casos, podemos dizer: “primeiro, segundo, terceiro, quarto e quinto” e, nos seguintes, expandindo os níveis, apresentando-os como “sexto”, “sétimo” e assim por diante. Quanto ao “oitavo e unitário”, vemos que para todos os outros havia pluralidade, no último caso apenas um. Se pusermos as três tríades primeiras, encontraremos: “filósofo”, “rei”, em que Zeus é o melhor, assim como o “político” do cosmo. Poderíamos encontrar outros deuses nessa tríade completa, como Atena na filosofia; na guerra, Ares e no reinado, Hera. A segunda tríade podemos dizer que é a apolínea, com “adivinhação” e “poesia” do chamado condutor das Musas (mousêgétês),e, mais uma vez, temos o poder de Hermes nessas atividades agonísticas. A terceira tríade podemos chamar de Hefaística, pois trata dos fenômenos e transformações demiúrgicos, cujo mestre é Hefesto, que prepara os tronos dos deuses encósmios. Essa é a maneira pela qual os organizamos. Se alguns são aurigas e outros ligados aos dois cavalos, conformando um ser tripartido, nela deve haver três completudes, das partes, nas partes, externos às partes, assim considerando perfazer as nove vidas possíveis, mas não vejo como Platão as tornava sinfônicas consigo mesmas.
μγ' <Ἀλλὰ τὴν μὲν πλεῖστα 248d>
Πρῶτον τοῦτο ῥητέον ὡς [ὅτι] διαφέρουσιν οἱ ἐνταῦθα παραδιδόμενοι ἐννέα βίοι τῶν ἐν <Πολιτείᾳ> παραδεδομένων. Οὗτοι μὲν γὰρ ἐννέα, ἐκεῖνοι δὲ ἄπειροι· καὶ ἐκεῖνοι μὲν κατὰ τὰς αἱρέσεις τῆς ψυχῆς ἀπεκληροῦντο, οὗτοι δὲ κατὰ γέρα καὶ τιμὴν ἀξίως τῆς θέας τῶν νοητῶν ἀπονέμονται· καὶ ἐκεῖ μὲν ἀπὸ ἀνθρώπου εἰς θηρίον καὶἀπὸ θηρίου εἰς ἄνθρωπον ἐγίνετο ἡ μετάβασις τῇ ψυχῇ, ἐνταῦθα δὲ μόνως εἰς ἄνθρωπον καὶ τοῦτον εἰς ἄνδρα (οὐ γὰρ εἰς γυναῖκα)· καὶ τό γε μέγιστον, ὅτι ἐνταῦθα μὲν πρώτως ἀπὸ τοῦ νοητοῦ εἰς γένεσιν εἴσεισιν ἡ ψυχὴ, ἐκεῖ δὲ καὶ ἀπὸ ἄλλου βίου εἰς ἄλλον βίον. Καὶ ὅλως λεπτουργῶν πολλὰς ἂν εὕροις διαφορὰς τούτων τε κἀκείνων· ἔτι δὲ καὶ τοῦτο ἀναγκαῖον ὂν μνημονεύσωμεν, ὅτι ἐνταῦθα αὐτὰ τὰ εἴδη τῶν ζῴων ἐκτίθεται, οὐ πάντως καὶ τὰς τύχας καὶ τὰς ἐκτὸς περιστάσεις, οἷον στρατιωτικὸν ἢ βασιλικὸν, οὐ πάντως τὸν ἐν ὅπλοις ἐξεταζόμενον καὶ τοιᾷδε τύχῃ χρώμενον, ἀλλὰ τὸν εἶδος ζωῆς τοιόνδε προβεβλημένον, ὡς καὶ ἐν φιλοσόφῳ φέρε τὸ εἶδος τῆς στρατιωτικῆς ζωῆς ἐμφαίνεσθαι· ἐν δὲ <Πολιτείᾳ> καὶ αὐτὰς τὰς τύχας αἱρεῖσθαί φησι καὶ ἀποδίδοσθαι αὐταῖς.
Λοιπὸν δὲ τοῦτο ζητητέον πότερον ὅλον τὸ πλάτος τῆς ζωῆς εἰς τούτους τοὺς ἐννέα βίους κατάτέτμηται, ἢ ὑπολέλειπταί τις ἄλλη ἔξωθεν διαίρεσις, ἥτις ἡμῖν δέκα ἢ πλείους ποιήσει τοὺς βίους· τὸ γὰρ αὐτὸ πρᾶγμα κατ› ἄλλας καὶ ἄλλας ἐπιβολὰςδυνατὸν εἰς πλείω καὶ ἐλάττονα τεμεῖν· ὡς ἐν <Φιλήβῳ> μὲν τρεῖς τοὺςβίους, ἐν <Πολιτείᾳ> δὲ πέντε. Ἡμῖν δὲ ἐπιδεικτέον ὅτι νῦν πᾶν τὸ πλάτος τῆς ζωῆς εἰς τούτους τοὺς ἐννέα βίους κατανενέμηται.
Τεσσάρων οὖν τούτων περὶ τὸν ἄνθρωπον θεωρουμένων, λόγου, θυμοῦ, ἐπιθυμίας, φύσεως, ἡ ψυχὴ ἡ κατελθοῦσα εἰς γένεσιν ἢ κατὰ λόγον μόνον ζῇ, μηδὲν προσποιουμένη τὰ πάθη μηδέ τι ἐξ αὐτῶν πάσχουσα, καὶ ποιεῖ τὸν πρῶτον βίοντὸν φιλόσοφον· ἢ κατὰ θυμὸν ζῇ κρατοῦντος τοῦ λόγου, καὶ ποιεῖ τὸν δεύτερον βίον τὸν <βασιλικὸν> καὶ <πολεμικόν>· ἢ κατὰ ἐπιθυμίαν ζῇ κρατοῦντος πάλιν τοῦ λόγου, καὶ ποιεῖ τὸν τρίτον βίον τὸν <πολιτικὸν> καὶ <χρηματιστικόν> (οὗτος γὰρ τὰς ἀναγκαίας τροφὰς περιποιεῖ τῷ ζῴῳ καὶ τῇ πόλει)· ἢ πάλιν περὶ τὴν φύσιν στρέφεται τοῦ λόγου ἐπιστατοῦντος, καὶ ποιεῖ τὸν <γυμναστικὸν> καὶ <ἰατρικόν>· περὶ γὰρ τὴν φύσιν καὶ τὰ σώματα οὗτος ἀναστρέφεται ἐπιμελούμενος αὐτῶν καὶ ἰώμενος. Ἐπειδὴ οὖν εἰς τὸ πέρας τῆς κατὰ φύσιν προόδου τῆς ζωῆς κεχωρήκαμεν, λοιπὸν ὁ πέμπτος βίος <ὁ τελεστικὸς>, ἰδίαν οὐκ ἔχων δύναμιν, ἐπιστρέφει εἰς τοὺς θεοὺς, καὶ ἐκεῖθεν βοήθειάν τινα τοῖς πρὸ ἑαυτοῦ βίοις πορίζεται· <μαντικὸν> δὲ καὶ <τελεστικὸν> λαμβάνει οὐ τὸν ἐνθουσιαστικόν (οὗτος γὰρ καὶ φιλόσοφός ἐστιν ἄκρως καὶ ἐπιστήμων καὶ τὸ ὅλον θεῷ κάτοχος), ἀλλὰ τὸν τεχνικὸν τοῦτον καὶ ἱερατικὸν, ὃς διὰ θυσιῶν καὶ εὐχῶν ἐπικουρίαν τινὰ τοῖς ἀνθρώποις πορίζει. Καὶ οὗτοι μέν εἰσιν οἱ πέντε βίοι οἱ κατὰλόγον ἐπιτελούμενοι ὀρθὸν καὶ τοῖς περὶ τὸ θεῖον ἀπεικασμένοι· καὶ γὰρ ἕκαστος τῶν θεῶν καὶ μένει καὶ πρόεισι καὶ ὑποστρέφει· καὶ ἐνταῦθα οὖν ἢ μένει ἐν τῷ λόγῳ καὶ ποιεῖ τὸν φιλόσοφον, ἢ πρόεισιν ἄχρι φύσεως καὶ ποιεῖ τοὺς ἄλλους τρεῖς, ἢ ὑποστρέφει εἰς τοὺς θεοὺς καὶ ποιεῖ τὸν πέμπτον.
Τῶν δὲ λοιπῶν τεσσάρων βίων τῶν μιμητικῶν καὶ εἰδωλικῶν τῶν πρὸ αὐτῶν, οἱ μὲν δύο ὅ τε ἕκτος καὶ ὁ ἕβδομος ἀληθῶς μιμοῦνται τοὺς πρὸ αὐτῶν, ὃ μὲν διὰ λόγων, ὃ δὲ δι’ ἔργων, ὁ δὲ ὄγδοος καὶ <ὁ> ἔνατος ἀνομοίως μιμοῦνται καὶ ἐπὶ τὸ χεῖρον, ὃ μὲν διὰ λόγων, ὃ δὲ δι’ἔργων· ὥστε οἱ λοιποὶ τέσσαρες μιμητικοί εἰσι τῶν πρὸ αὐτῶν, ἀλλ’ οἱμὲν δύο ἀληθῶς μιμοῦνται, οἱ δὲ δύο ἀνομοίως· ὁ μὲν ἕκτος καὶ <ὁ> ἕβδομος ἀληθινοὶ μιμηταὶ ὄντες ταύτῃ διαφέρουσιν ὅτι ὃ μὲν διὰ λόγων μιμεῖται καὶ φιλόσοφον <καὶ> βασιλέα καὶ τοὺς λοιποὺς, καὶ ταύτῃ τοὺς ἀνθρώπους παιδεύει, ὁ δὲ ἕβδομος δι’ ἔργων (τοιοῦτος γὰρ ὁ<δημιουργικός>)· ὁ δὲ ὄγδοος καὶ <ὁ> ἔνατος ἀνομοίως μιμοῦνται, ὃ μὲν διὰλόγων πάλιν, ὃ δὲ δι’ ἔργων.
<Ποιητικὸν> δὲ λαβὲ πάντα τὸν μιμητικὸν, ἐν οἷς καὶ τὸν ζωγράφον· οὓς καί φησιν ἐν <Πολιτείᾳ τρίτους> εἶναι <ἀπὸ τῆς ἀληθείας· δημιουργικὸν> δὲ τὸν εἰς οὐσίαν τι ἄγοντα ἀπὸ τοῦμὴ ὄντος, οἷον τέκτονας, πλάστας, σκυτοτόμους, καὶ ὁ <γεωργὸς> δὲ καθὸ ἐπιμελεῖται τῆς φύσεως ὅπως ἂν ὑγιὲς καὶ ὡς ἄριστον φύῃ· <σοφιστικὸς> δὲ καὶ <δημοκοπικὸς> ταύτῃ διαφέρουσιν ὅτι ὁ μὲν σοφιστὴς διδάσκαλος βούλεται εἶναι νόμων καὶ ἀρετῆς, ὁ δὲ δημοκόπος ῥητορεύειν ἐνπλήθει· <σοφιστικὸν> δὲ καὶ <τυραννικὸν> μὴ τοὺς διαστρόφους ἤδη λάβωμεν, ἀλλὰ καὶ τοὺς ἐπὶ ἀγαθῷ χρωμένους, τὸν μὲν τῇ ἀπάτῃ, τὸν δὲ τῇ βίᾳ· ἔστι γὰρ αὐτοῖς καὶ εὖ καὶ κακῶς χρήσασθαι, ὡς καὶ αὐτὸς ἐπάγει.
μδ' <Ἐν δὴ τούτοις ἅπασι 248e>
Τοσοῦτοι μὲν οὖν καὶ τοιοῦτοι οἱ ἐννέα βίοι· δεῖ δὲ ἑκάστῳ προσυπακούειν τὸ <πλεῖστα ἰδοῦσα>, ἵν’ ᾖ· ἡ μὲνπρώτως πλεῖστα ἰδοῦσα εἰς τόδε ἢ τόδε εἴσεισιν, ἡ δὲ δευτέρως πλεῖστα ἰδοῦσα εἰς τόδε, ἡ δὲ τρίτως πλεῖστα ἰδοῦσα εἰς τόδε, καὶ ἐφεξῆς οὕτως. Διὸ καὶ οἱ μὲν πρῶτοι τέσσαρες βίοι πλατυτέρας ἔχουσι τὰς αἱρέσεις· ἀπὸ γὰρ τριῶν ἐστιν ἑκάστη· οἱ δὲ ἐφεξῆς τέσσαρες στενοτέρας· ἀπὸ γὰρ δύο· μόνη δὲ ἡ ἐνάτη ἀπεστενωμένον καὶ ἕνα καὶ τυραννικόν. Ἴσως δὲ ἄχρι τοῦἐννέα διὰ τοῦτο προέβη ἐπειδὴ καὶ ἡ αὔξησις τοῦ ἀριθμοῦ μέχρι τοῦ ἐννέαπρόεισι.
Λοιπὸν δὲ ἀνθρωπίνῃ διανοίᾳ συλλογισώμεθα ὁποῖα τῶν νοητῶν θεασαμένη εἰς τὸν πρῶτον ἢ τὸν δεύτερον βίον κάτεισι καὶ τοὺς ἐφεξῆς. Ἡ μὲν οὖν τὸ καλὸν καὶ τὸ σοφὸν καὶ τἀγαθὸν θεασαμένη, ἐπειδὴ διὰ ταῦτα ἀπὸ τῶν πρωτίστων ἀρχῶν ἀρξαμένη μέχρι τῶν ἐσχάτων δίεισιν, εἰς τὸν πρῶτον βίον κάτεισιν· διὸ καὶ εὔλογον τὴν μὲν τὸ σοφὸν θεασαμένην τὸν <φιλόσοφον> αἱρεῖσθαι βίον, τὴν δὲ τὸ καλὸν τὸν <φιλόκαλον>, ὃν διαιρεῖ διχῇ εἰς τὸν <μουσικὸν> καὶ <ἐρωτικόν>· ἢ γὰρ δι’ ὀμμάτων τὸ καλὸν ἢ δι’ ἀκοῆς δεχόμενοι τοῦ νοητοῦ κάλλους ἀναμιμνῃσκόμεθα· πᾶσι δὲ ἡ ἀναγωγὴ ἐπὶ τἀγαθόν.
Ἡ δὲ τὰ γένη τοῦ ὄντος θεασαμένη τὸν δεύτεροναἱρεῖται βίον· καὶ γὰρ ἑδράζει πάντα ὁ βασιλεὺς, ὃ ἀναλογεῖ τῇ στάσει (παρὸ καὶ [ὁ] βασιλεὺς εἴρηται παρὰ τὴν βάσιν καὶ τὸ ἑδραῖον καὶ τὸ βεβηκέναι ἐπ’ αὐτοῦ τὰ πράγματα)· καὶ κινεῖ γὰρ πάντα διατάττων καὶ διακοσμῶν ἕκαστα, ὃ ἀναλογεῖ τῇ κινήσει· καὶ φιλίας καὶ ἑνώσεως πᾶσι μεταδίδωσι διὰ τῶν κοινῶν νόμων, ὅ ἐστι τῆς ταυτότητος· διαιρεῖ δὲ ἕκαστα καὶ ἀναστέλλει τὰ πολέμια καὶ λυμαντικὰ, ὅ ἐστι τῆς ἑτερότητος ἔργον· καὶ κρατεῖ πάντων, διὸ καὶ <πολεμικὸς> καὶ <ἀρχικὸς> εἴρηται· ὡς δὲ πάντα εἶναι ποιῶν, ἆρ’ οὐκ ἂν ῥηθείη κατὰ τὴν οὐσίαν ἀπὸ τοῦ μὴ ὄντος εἰς τὸ εἶναι ἕκαστα ἄγων; Ἡ δὲ τὰ γένη τοῦ ὄντος μερικώτερον καὶ οὐκέτι ὁλικῶς θεασαμένη ἢ καὶ τὴν αὐτοδικαιοσύνην ποιεῖ τὸν τρίτον βίον· περὶ γὰρ τὸ δίκαιον μᾶλλον ἀναστρέφονται οἱ ἐν τῷ τρίτῳ βίῳ παραληφθέντες. Ἡ δὲ τὴν αὐτοϋγίειαν καὶ τὸ αὐτόσωμα θεασαμένη ποιεῖ τὸν τέταρτον. Ἡ δὲ τοὺς ἀναγωγοὺς θεοὺς τὸν <μαντικὸν ἢ τελεστικόν>. Οἱ δὲ λοιποὶ τέσσαρες τὴν αὐτοομοιότητα καὶ ἀνομοιότητα θεῶνται· ἀλλ’ οἱ μὲν πρῶτοι μᾶλλοντὴν ὁμοιότητα, οἱ δὲ τελευταῖοι τὴν ἀνομοιότητα.
Πάσαις δὲ σχεδὸν ταῖς τομαῖς ἐχρήσατο ὁ Πλάτων· καὶ γὰρ διεῖλεν εἰς τρία καὶ τέσσαρα καὶ ἓν, καθὸ τοὺς μὲν πρώτους τέσσαρας τριαδικῶς προηνέγκατο, τοὺς δὲλοιποὺς τέσσαρας δυαδικῶς, καὶ τὸν τελευταῖον μοναχῶς διεῖλε· καὶ εἰς πέντεκαὶ τέσσαρα, καθὸ τοὺς μὲν πρώτους πέντε τῇ αὐτῇ πτώσει προηνέγκατο εἰπών <«πρώτην, δευτέραν, τρίτην, τετάρτην, πέμπτην,»> ἐν δὲ τοῖς ἐφεξῆς ἐνήλλαξε τὴν πτῶσιν, κατὰ δοτικὴν εἰπών <«ἕκτῃ»> καὶ<«ἑβδόμῃ»> καὶ ἐφεξῆς· καὶ εἰς ὀκτὼ καὶ ἓν, καθὸ τοὺς μὲν ἄλλουςπάντας διὰ πλειόνων ἐξέθετο, τὸν δὲ τελευταῖον δι’ ἑνός. Ἐὰν δὲ καὶ τρεῖς τριάδας ποιήσωμεν τὴν μὲν πρώτην δίιον εὑρήσομεν· <φιλόσοφος> γὰρ καὶ <βασιλεὺς ὁ> Ζεὺς καὶ δὴ καὶ ἄριστος <πολιτικὸς> τοῦ κόσμου· εὑρεθεῖεν δ’ ἂν καὶ ἄλλοι θεοὶ ὑπὸ ταύτην τελοῦντες τὴν τριάδα, οἷον καὶ Ἀθηνᾶ διὰ τὸ φιλόσοφον καὶ πολεμικὸν καὶ Ἄρης καὶ Ἥρα διὰ τὸ βασιλικόν. Τὴν δὲ δευτέραν τριάδα ἀπολλωνιακὴν ἂν εἴποιμεν καὶ <μαντικῆς> καὶ <ποιητικῆς>· μουσηγέτης γοῦν λέγεται, πάλιν καὶ Ἑρμοῦ δυναμένου ἐνταῦθα ὑπάγεσθαι διὰ τὸ ἀγωνιστικόν. Τὴν δὲ τρίτην τριάδα Ἡφαιστιακὴν ἂν εἴποιμεν· ὁ γὰρ περὶ τὸ φαινόμενον καὶ τὴν δημιουργίαν ἀναστρεφόμενος ὁ δεσπότης ἐστὶν Ἥφαιστος, τὰς ἐγκοσμίους ἕδρας τοῖς θεοῖς προευτρεπίζων. Ταῦτα μὲν οὖν οὕτως ἡμεῖς διεταξάμεθα· εἰ δέ τινες ἢ τὸν ἡνίοχον καὶ τοὺς δύο ἵππους τρεῖς ὄντας τριπλασιάζωσιν, ἢ καὶ τὰς τρεῖς ὁλότητας τριπλασιάζωσι, τὴν πρὸ τῶν μερῶν, τὴν ἐν τῷ μέρει, τὴν <ἐκ τῶν μερῶν> καὶ οὕτως οἴονται ποιεῖν ἐννέα τοὺς βίους, οὐχ ὁρῶ πῶς ἂν ἑαυτοῖς ἢ τῷ Πλάτωνι συμφωνήσαιεν.
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Notas