Artigo | Article

Musa comissionada a sanar um Funesto Veterno: poesia, filosofia e o cuidado de si – tradução e comentário à Ep. 1.8 de Horácio

Commissioned Muse healing a Funesto Veterno: poetry, philosophy and self-care – translation and commentary to Horace’s Ep. 1.8

Jean Felipe de Assis
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil

Musa comissionada a sanar um Funesto Veterno: poesia, filosofia e o cuidado de si – tradução e comentário à Ep. 1.8 de Horácio

Classica - Revista Brasileira de Estudos Clássicos, vol. 35, núm. 1, pp. 1-15, 2022

Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos

Recepción: 25 Octubre 2021

Aprobación: 06 Enero 2022

Resumo: Em uma breve exposição sobre o gênero epistolar e suas recepções na produção literária de Horácio, apresenta-se uma contextualização para a imitatio, o ingenium e a ars horaciana. A originalidade das propostas desse autor latino manifesta-se nas recepções e nas transformações dos modelos epistolográficos antigos, apresentando termos e temas helênicos, discutindo propostas morais e filosóficas, explorando cadências e ritmos variados em sua utilização do hexâmetro datílico. Uma proposta de tradução interpretativa para a Ep. 1.8 e alguns comentários são exibidos, indicando alguns efeitos métricos e sonoros, as figuras de linguagem, o modo de narrar descritivo e analítico para a sustentação de um argumento, as nuances de tempo e de espaço específicas para um momento da historiografia latina, além de alguns exemplos de intertextualidade dentro do corpus horaciano e, também, em algumas tradições literárias antigas, e.g., textos épicos e o de Rerum Natura de Lucrécio. Na missiva, Horácio personifica sua mensagem na Musa, encarregada de não apenas relatar a condição do emissor, mas também de instilar no destinatário o ânimo, a força e a maneira adequada na condução das coisas públicas e de si. As análises propostas inferem algumas possibilidades de interfaces com as tradições estoicas e epicuristas, sobretudo devido às formas adverbiais recte e suaviter.

Palavras-chave: Horácio, Epístolas, Filosofia Antiga.

Abstract: In a brief exposition on the epistolary genre and its receptions in Horace’s literary production, a contextualization for the imitatio, the ingenium and the ars horaciana is evaluated. Receptions and transformations of ancient epistolography’s models reveal the originality of Horace proposals, by presenting Hellenic terms and themes, discussing moral and philosophical ideas, as well as exploring multiple cadences and rhythms in his use of dactylic hexameter. This essay presents an interpretive translation for Ep. 1.8 together with some commentaries, debating: metric and sound effects; figures of speech; descriptive and analytical ways of narrating to support an argument; particular nuances of time and space specific to a moment in Latin historiography; examples of intertextuality within the Horatian corpus and some ancient literary traditions, e.g., epictexts and Lucretius’ Rerum Natura. In this letter, Horace personifies his message in the Muse, committing her not only to report the sender’s physical and mental conditions, but also instilling in the recipient the animus, strength and proper manners in conducting public affairs and himself. Possible interfaces with the Stoic and Epicurean traditions are in order, mainly due to the adverbial forms recte and suaviter.

Keywords: Horace, Epistles, Ancient Philosophy.

Horácio apresenta, em seu desenvolvimento intelectual e literário, inúmeros elementos biográficos, desvelando em muitos momentos seus intentos, suas aspirações, suas esperanças, assim também como suas decepções e suas desilusões. Desse modo, desde sua infância em um pequeno povoado na Venúsia até suas interações pessoais com Augusto, Tibério e Mecenas, a jornada pessoal do poeta mescla-se com os protagonistas dos regimes políticos romanos e também com as populações mais afastadas dos grandes centros. Demonstrando enorme gratidão ao pai, um liberto que conseguiu propiciar a Horácio condições para uma melhora social e estudos nas terras itálicas e na Grécia, o autor enfatiza a responsabilidade social do poeta, não apenas para com sua família em seus modos de sobrevivência, porém com toda a comunidade civil (Citroni et alii, 2006, p. 499-504). Nesse contexto, em oposição a algumas tendências neotéricas, Horácio busca superar certos contornos individualistas, ressaltando as tensões existentes entre o público e o privado, discutindo criticamente a tradição e apresentando inovações de formas poéticas na língua latina. Todavia, algumas dessas propostas encontram grande resistência do público, resultando na escolha de círculos menores para uma audiência implícita, consequentemente, sustentando uma animosidade e um desdém com algumas práticas literárias do período (Rutherford, 2007, p. 255-7; Citroni et alii, 2006, p. 505-7).

As epístolas de Horácio estão inseridas nas tradições de escrita antigas, perpassando variados estilos e gêneros literários, em especial devido ao modo de apresentação versificada. Embora a prática de escrever cartas em formas poéticas pareça ter sido comum na Antiguidade, em período anterior a Horácio, a reunião em um volume é resultado do engenho desse autor, de acordo com os registros materiais de que dispomos (Günther, 2013, p. 40-2). Ele retorna à Musa pedestris, tema utilizado nas Sátiras (II.6.17), relacionando esses escritos a características mais cotidianas. Associa, portanto, a reunião de sátiras e epístolas ao termo sermo. Todavia, as ambiguidades e as ambivalências são patentes nas propostas de Horácio – embora ele mesmo declare ter se afastado dos escritos lúdicos, atesta sempre ser chamado a essa arena de combate (Ep.1).

As Epístolas horacianas, bem como as Sátiras, propõem algumas meditações sobre o comportamento humano e os modos adequados de conduzir a vida, refletindo a respeito de temas presentes em algumas tradições filosóficas de seu tempo, e.g., epicurismo e estoicismo (Martin; Gaillard, 1990, p. 469-70). A riqueza do gênero epistolar é atestada ao longo do mundo antigo, inclusive, apresentando uma variedade de autores, localidades, tipos, intenções, atos comunicativos e formas de exposição. Há textos enviados a amigos e parentes, missivas oficiais que possuíam funções legislativas, bilhetes que apenas repercutiam uma conversa banal, textos argumentativos, e assim por diante. Torna-se, inclusive, difícil determinar especificamente quando uma carta deveria se tornar pública ou ser endereçada apenas a pessoas em âmbitos privados, existindo uma distinção artificial entre cartas, que são privadas e pessoais, e epístolas, que se utilizam do destinatário apenas como intermediário (Martin; Gaillard, 1990, p. 455). Desse modo, ao adotar critérios estritamente formais, e.g., marcas linguísticas de saudação e de despedidas, o corpus da epistolografia latina antiga é imenso, contendo entre seus autores Cícero, Sêneca, Plínio, o Jovem, Horácio, entre outros (Martin; Gaillard, 1990, p. 456).

Dentre as características literárias destacadas para as epístolas, temos a informalidade na apresentação, existindo uma distinção da gravitas de discursos e tratados públicos, mas também promovendo uma variedade de temas em contraste com a constância estoica; descrições e comentários com elementos de crônica literária, possuindo uma riqueza de dados inestimáveis sobre os períodos históricos e algumas de suas práticas sociais, políticas e linguísticas; diferentes concepções históricas e políticas no desenvolvimento dos regimes e práticas sociais ao longo do tempo, permitindo observar a pluralidade de propostas e as riquezas de debates ao longo de todas as regiões geográficas e também ao longo do tempo; um meio de acolher diferentes tradições, transformá-las e transmiti-las mediante variadas maneiras pedagógicas (Martin; Gaillard, 1990, p. 462-6).

As Epístolas poéticas são vistas como um caso particular da epistolografia, mesclando os tratados em prosa e as poesias didáticas, propiciando a Horácio uma mistura de gêneros, formas e efeitos em diversas manifestações d’ “un phénomène de polymorphisme” (Martin; Gaillard, 1990, p. 467). Evidencia-se, portanto, a questão insolúvel: trata-se de um poema em forma de carta ou uma carta poética (Martin; Gaillard, 1990, p. 468). Seguindo as indicações de Pierre Grimal, Martin e Gaillard conjecturam que o destinatário das cartas de Horácio seja o próprio autor: ao criar diálogos fictícios, em um gênero marcado pela interação social, Horácio discute variadas personalidades, ideias e comportamentos de seu tempo. Nas Epístolas, em particular, referências contínuas ao círculo de amigos, centrados na figura de Mecenas e nas associações com o princeps, Horácio pode ser caracterizado não apenas pelas amizades, mas por suas aspirações e desilusões literárias (Citroni et alii, 2006, p. 504), assumindo em muitos momentos uma posição professoral ante os novos poetas, decorrência de sua fama e de grande aceitação na elite intelectual romana, apresentando suas críticas não apenas aos escritos, mas aos modos de viver de seus contemporâneos.

As Epístolas de Horácio utilizam o hexâmetro datílico em suas metrificações, variando grandemente as posições entre dátilos e espondeus na produção de variados efeitos rítmicos e sonoros. Tomemos os quatro primeiros versos como exemplificação, embora o complemento da parte final somente ocorra nos desenvolvimentos seguintes:



Cēlsō|gaudē|re’tbĕnĕ|remgĕrĕ|rAlbĭnŏ|vānō
Mūsărŏ|gātărĕ| fer, cŏmĭ| tīscrī|baequeNě|rōnis,
sīquae| retquidă| gam, dic| multa’t |pulchrămĭ|nantem
vīvĕrĕ| necrec| tēnec| suavĭtĕ | r’audquiă| grandō

Observa-se, portanto, o esmero na criação desses versos, em especial devido a constantes elisões e posteriores colocações lexicais para a manutenção rítmica, assim também para a produção de efeitos semânticos. Nessa exemplificação da métrica da Ep. 1.8, todos os versos possuem clausura hexamétrica, i.e., terminam com um dátilo e um espondeu. Por outro lado, as cesuras, que ocorrerem normalmente nos terceiros (pentemímeras) e quartos pés (heptemímeras), somente possuem uma pausa clara no último verso exposto acima, evidenciando, portanto, uma mudança clara na tonalidade do discurso para a apresentação temática da epístola e também um dos temas centrais: ainda que desejando, o enunciador não consegue viver retamente e nem prazerosamente.1 Nos versos anteriores, as cesuras podem produzir pausas em diferentes cadências, todavia, no último verso marca-se o ritmo também por uma sequência espelhada de dátilos e espondeus (DSSD).

O hexâmetro datílico é visto como a mais frequente métrica utilizada na poesia grega e latina, sendo predominante na épica, mas perpassando também versos pastoris, e.g., Teócrito e Virgílio; versos “científicos”, e.g., Arato e Manílio; hinos, e.g., homéricos e Calímaco; e também outras composições, e.g., panegíricos (Duckworth, 1969, p. 3). Dentre as inovações de Ênio, em seus experimentos linguísticos, de estilo e de métrica, destacam-se os usos do hexâmetro grego e suas adaptações à língua latina, tais como estudos sobre a escolha vocabular, junção de vogais e o uso de clausuras (Conte, 1978, p. 82). As variedades rítmicas e os diferentes padrões possíveis de serem utilizados propiciam uma multiplicidade de efeitos poéticos em todos os gêneros, por meio dos quais formas literárias gregas, composições helenísticas e produções latinas conservam e transformam tradições literárias. Nesse contexto, há aqueles que buscam um padrão recorrente e outros que buscam uma grande variedade, não existindo, portanto, um desenvolvimento uniforme do hexâmetro datílico, em especial desde o período republicano até a época augustana. Lucrécio e Catulo possuem uma tendência a manter certos padrões rítmicos, em especial devido às características pedagógicas do primeiro e a imitatio de Calímaco pelo segundo. Por outro lado, Virgílio e Horácio buscam variedades e diversidades em suas trajetórias (Duckworth, 1969, p. 42-3).

Nos casos de Virgílio e de Horácio, as variações e as uniformidades métricas são registradas ao longo de toda a produção poética desses autores e contabilizadas estatisticamente: Virgílio utiliza sistematicamente padrões métricos nas Geórgicas, possui maior liberdade nas Éclogas e estabelece normas e procedimentos para a Eneida; por sua vez, Horácio possui uma crescente variação métrica em suas composições com hexâmetros datílicos(Duckworth, 1969, p. 63-70). Nesse contexto, para Peter Knox, Horácio reforça o tom de uma conversa coloquial das Sátiras pela configuração dada aos hexâmetros, os quais adequam algumas normas coloquiais às poesias épica e didáticas em muitos momentos, mas em outros pontos, devido à alocação das palavras, à construção das pausas e aos fechamentos dos versos em suas características prosaicas, evocam, os ritmos e a linguagem cotidiana (Knox, 2013, p. 534). Porphyrio salienta serem as Epístolas tão similares às Sátiras no assunto, na métrica e na dicção que apenas diferem pelos títulos dados. Por outro lado, adequando conteúdo e forma, Horácio modula o estilo dos hexâmetros para uma audiência mais sofisticada, tais como aristocratas, equestres e até mesmo o princeps, e, portanto, apresenta uma composição mais detalhada e refinada (Knox, 2013, p. 543-4). Evidenciam-se, nas Epístolas, um ritmo mais regular – com raras presenças de dicções coloquiais –, presença de neologismos e termos de origem helênica. Conclui Knox que as Epístolas apresentam discursos de homens letrados em assuntos de grande relevância; ao comparar com as Sátiras, o autor indica ainda a dedicação aos detalhes nas composições de Horácio, em especial, suas adaptações aos variados gêneros do discurso (Knox, 2013, p. 545-6).

Constatam-se importantes características dos poemas didáticos que podem se adequar ao gênero epistolar e nos modos de composição de Horácio, i.e., escolha métrica, variedade de propostas, instrução, diálogo entre instrutor e discípulo, além de temas filosóficos-morais. A presença de poemas didáticos no período tardio da república romana mostra a diversidade de possibilidades dessas composições, ao mesmo tempo em que apresenta características estruturais e formais similares (Dalzell, 1996, p.3). As tentativas de taxonomia e de classificações não abarcam as variedades, tampouco as possibilidades desses textos (Dalzell, 1996, p. 30-5). Os poemas didáticos não constituem um gênero específico, mas, ao terem o objetivo de instruir seus leitores em um assunto ou tema, apresentam múltiplos gêneros, formas e modos. Os hexâmetros são os metros mais comuns dessas composições, possuindo, na maioria dos casos, um indivíduo como o receptor. Embora não seja possível delimitar com detalhes as distinções temáticas por períodos, observa-se a permanência de conteúdos morais e iniciações filosóficas, mas também o tratamento de temas mais especializados e obscuros durante o período helenístico (Schiesaro, 1996, p. 465-6).

A facilidade em perceber que as correntes filosóficas antigas corroboram práticas que devam ser seguidas soma-se à dificuldade em obedecer seus critérios adequadamente, visto ser impossível separar o instinto reflexivo e as ações práticas do cotidiano. Esses problemas perpassam as Epístolas horacianas, tendo o autor predileção por diferentes tradições filosóficas de acordo com as suas circunstâncias (Irwin, 2017, p. 338-40). Nesse contexto, Horácio apresenta-se como um crítico das escolas filosóficas, adequando o que considera necessário em seus textos de acordo com as circunstâncias, não se alinhando diretamente a nenhuma corrente específica (Irwin, 2017, p 354-57). Paolo Fedeli salienta como Horácio se mostra insatisfeito pelos possíveis confortos das escolas filosóficas, estoicas e epicuristas, na Ep. 1.8, ressaltando a dificuldade em superar os flagelos que atingem sua alma (Fedeli, 1996, p. 250).

A narrativa da Ep. 1.8 de Horácio considera os sucessos de Celso Albinovano em suas práticas civis no cursus honorum, enquanto ele estava na corte diplomática do jovem príncipe Tibério, considerando que tais ações poderiam implicar um estilo de vida distinto daquele almejado por seu amigo, seja pela ausência dos amigos, seja pelo afastamento das práticas literárias. Desse modo, mostra-se significativo, portanto, que o emissário se dirija à Musa, pedindo que o bem gerir das coisas públicas e a alegria sejam restituídos a Celso. O mal-estar expresso pelo emissor é contraposto pelas pressuposições inferidas no desenvolvimento narrativo, pela carga semântica expressa pelas variantes do verbo fero, destacando tanto a mensagem encaminhada como o modo similar da condução da Fortuna por Celso em associação à forma que seus concidadãos (plural majestático) avaliarão suas ações. Nesse contexto, o arco narrativo proposto (ABA), em que os extremos se referem a Celso e a parte central da narrativa poética, por exemplos comparativos, ao emissor, transforma o sentido concreto de uma condução de mensagem (gaudere et bene [...] refer), transmitindo uma lembrança a ser marcada na mente do destinatário (memento) e apresentando um sentido figurado de avaliação das ações de Celso de acordo com suas ações em face à Fortuna (‘ut tu fortunam, sic nos te, Celse, feremus.’). Dessa forma, no modo de exposição narrativa, evidencia-se a preocupação pelos efeitos nas escolhas semânticas, sintáticas, métricas e sonoras para as posições lexicais.

Ao pressupor a comunicação epistolar, misturam-se presente, passado e futuro, visto que o desenvolvimento expositivo da Ep. 1.8 apresenta situações já ocorridas – o comissionamento de Celso na corte de Tibério e o mal-estar do emissor –, mas também desejos de uma comunicação a ser efetivada pela ação da Musa, verificada pela presença do modo imperativo na expectativa de que algo ainda não presente seja realizado. Assim, assumindo a distância espacial para o comissionamento da Musa, os tempos das ações são mesclados pelo ato da escrita, tornando uma mensagem ainda não recebida um desejo a ser realizado pela inspiração da Musa comissionada. As mudanças nos modos verbais também destacam essa proposta comunicativa, visto descreverem situações evidentes no indicativo, demandarem mudanças desejadas no imperativo e refletirem sobre desejos, vontades e condições hipotéticas no subjuntivo. A exemplo de Celso, distante de Roma e sem gerir a si mesmo adequadamente, o emissor sente-se volátil, pois, ao afastar-se da capital, deseja Roma; ao estar na capital, Tíbur. A impossibilidade de vivenciar os momentos e os locais adequadamente propicia um enfraquecimento mental, uma letargia funesta. O emissário, portanto, notifica a Celso que, embora ele mesmo desejasse viver retamente e adequadamente às circunstâncias, isso nem sempre é possível. Todavia, alerta-o a não estar na mesma condição mental destacada por seus exemplos, mas a conduzir a Fortuna de modo pertinente, para que possa não apenas gerir as coisas de Estado, mas a si mesmo. Espera-se a entrega da mensagem aos ouvidos, pela inspiração da Musa comissionada, e cria-se a expectativa que as ações futuras de Celso sejam modificadas, apresentando, portanto, uma continuidade dos efeitos da epístola na vida dos interlocutores.

Eis a Epístola 1.8 de Horácio:



Celso gaudere et bene rem gerere Albinovano
Musa rogata refer, comiti scribaeque Neronis,
si quaeret quid agam, dic multa et pulchra minantem
vivere nec recte nec suaviter; haud quia grando
contuderit vitis oleamque momorderit aestus,
nec quia longinquis armentum aegrotet in agris;
sed quia mente minus validus quam corpore toto
nil audire velim, nil discere, quod levet aegrum;
fidis offendar medicis, irascar amicis,
cur me funesto properent arcere veterno;
quae nocuere sequar, fugiam quae profore credam;
Romae Tibur amem ventosus, Tibure Romam.
Post haec, ut valeat, quo pacto rem gerat et se,
ut placeat iuveni percontare utque cohorti,
si dicet, ‘recte,’ primum gaudere, subinde
praeceptum auriculis hoc instillare memento:
‘ut tu fortunam, sic nos te, Celse, feremus.’

Em uma proposta de tradução interpretativa:



Musa convocada, a Celso Albinovano, comissário e escriba de Nero,
reporte votos de alegria e sucesso no gerir das coisas.
Se ele perguntar o que tenho feito, diga que, prometendo viver muitas e belas coisas,
nem retamente e nem agradavelmente [vivo].
De modo algum porque o granizo tenha destruído minhas vinhas e
o calor tenha consumido a azeitona,
tampouco porque o gado adoeça nos longínquos campos,
mas porque a mente é menos forte do que todo o corpo.
Desejaria nada ouvir, nada apreender, que amenizasse essa doença,
sou ofendido pelos médicos de confiança e irritado pelos amigos,
por apressarem a me afastar da funesta letargia,
pois sigo o maleficiar, fujo ao que creio ser proveitoso.
Em Roma, amo a Tíbur – volátil – em Tíbur, amo a Roma.
Depois dessas coisas, indague como esteja e como gere as coisas e a si,
como alegra ao jovem e aos consortes.
Se disser, “retamente”, primeiramente deseje alegria e, logo após,
recorde essa máxima por destilar aos ouvidos:
“Assim como tu à Fortuna, nós a ti, Celso, conduziremos”.

Horácio, dialogando com os gêneros epistolográfico e épico, submete a Musa a ser um meio de comunicação com Celso Albinovano enquanto este esteja comissionado em sua atuação de escriba junto ao jovem Tibério Cláudio Nero, posteriormente imperador romano, em suas tarefas políticas, bélicas e diplomáticas na Armênia. Se a Ep. 1.3 é dirigida inicialmente a Júlio Floro, com menções a Celso, no mesmo contexto dessa missão, essa carta dedica-se exclusivamente a esse último.2 Conforme os relatos da Vita Horati de Suetônio e da análise autobiográfica de Horácio, Emily Gowers associa algumas funções políticas realizadas por Horácio com a de um scriba quaestorius, aquele que não apenas reporta os acontecimentos e notas, mas presta contas dos gastos e das obras públicas (Gowers, 2003, p. 64-5). Desse modo, emissor e destinatário possuem um círculo de amizades comum, servem a Roma em funções públicas e também compartilham a escrita e o labor poético.

A missiva inicia-se com uma saudação tradicional, um pedido de Horácio em encaminhar saudações e augúrios de sucesso a Albinovano Celso, mesclando cumprimentos ao destinatário em nível pessoal e na função desempenhada, em paralelo ao uso do nome pessoal e familiar.3 Assim, a saudação proposta mescla características literárias elaboradas e diferentes tradições epistolares, heranças do período helenístico, associando kharein a gaudere e prattein a bene rem gerere (Fedeli, 1996, p. 247-9). A Musa, por sua vez, deve reconduzir a Celso alegria e o bem gerir das coisas.4 Utilizando o hexâmetro datílico em suas epístolas, também para causar um efeito de familiaridade e de discursividade, Horácio não evoca a Musa para cantar um tema épico, mas para tarefas específicas, conforme os comissionamentos nos variados usos do modo imperativo indicam. Esse modo estrutura toda a argumentação da epístola ao apresentar o motivo de escrita (v. 2), iniciar a descrição da condição pessoal do emissário (v. 3) e desejar encorajar e exortar a Celso (v. 16). A comparação com os cantos épicos é pertinente: na Ilíada, a deusa canta a ira de Aquiles; na Odisseia, a Musa relata os acontecimentos ocorridos a Odisseu; na Eneida, o poeta canta as batalhas e a Eneias, enquanto a Musa recorda ao poeta tais acontecimentos; por sua vez, na Ep. 1.8 de Horácio, a Musa é vista como o meio de comunicação por meio do qual uma máxima de bem viver será marcada na memória de um indivíduo. Todavia, de acordo com Aristóteles, o proêmio da épica e o prólogo da tragédia possuem a mesma função: guias pelos quais o ouvinte ou o espectador seguirão o poeta em todos os momentos do enredo na exposição do tema e na unidade narrativa (Basset, 1934, p. 113-8). No caso dessa epístola de Horácio, reconduzir ao destinatário o bem gerir das coisas e o bem viver.

Já no introito, em uma imitatio da saudação epistolar, a Musa rogata é comissionada a trazer algo novamente a Celso, a resposta de Horácio ou, em nossa tradução interpretativa, saudações, alegrias e o bem gerir das coisas. Desse modo, as formas verbais fero e gero em seus campos semânticos associados a conduzir, carregar, levar, suportar alguma coisa, serão utilizadas ao longo da argumentação horaciana. Nota-se que a utilização das raízes verbais ger- (v. 13) e fer- (v. 17) repetir-se-ão no fechamento da missiva, indicando-nos diferentes recursos retóricos e estruturais nesta composição. Desse modo, a moldura proposta assevera a missão dada à Musa, reconduzir a inspiração a Celso e, por extensão, conforme a parte central da epístola, retirar também a letargia funesta – funesto veterno (v. 10) – de Horácio.

As formas verbais de gero e fero, em suas variações, associam-se diretamente à res gestae, não apenas no sentido bélico e político, mas também sobre a condução dos afazeres pessoais e do cuidado de si. Desse modo, dentre as leituras possíveis à Ep. 1.8, destacam-se: personificação da Musa como mensageira a partir da leitura de Celso dessa carta ou uma carta endereçada à Musa para que ela inspire a Celso, mesmo que esse não leia as intenções de Horácio. Em ambos os casos, o bem conduzir dos afazeres em face à Fortuna deve ser inspirado pela comissionada Musa. Há, portanto, um espelhar entre as condições pessoais desses poetas que devem ser modificadas para a criação de um bem-estar. Notam-se os usos dos modos subjuntivo e imperativo, em especial por comissionar a Musa para efetivar a comunicação e pressupor algumas interações entre ela e Celso. Dessa maneira, diante da concretização das perguntas pelo receptor da mensagem, o emissor determina, pelo uso do modo imperativo, as ações a serem feitas pela Musa.

Os usos do imperativo – v. 2; v. 3; v. 16 – propiciam uma divisão estrutural para a epístola: saudação (v. 1-2); argumento (v. 3-12); epílogo (v. 13-7). Conforme essa estrutura proposta, a saudação da epístola comissiona a Musa, apresentando Celso como destinatário e localizando-o: Celso gaudere et bene rem gerereAlbinovano Musa rogatarefer, comitiscribaequeNeronis. Desse modo, o particípio passado de rogo, modifica o nominativo Musa, formando um sintagma nominal designando predicativos inerentes à Musa, visto que essa foi chamada e solicitada para uma função, em contextos militares, similar ao que se encontra um dos interlocutores; trata-se de uma convocação e de um recrutamento. O prefixo re- induz à repetição da condução imperiosa proposta pelo modo do verbo, indicando, portanto, mudanças e transformações. Trata-se de uma resposta epistolar ou, conforme a tradução interpretativa buscou realçar ao entender os infinitivos como formas nominais, uma reapropriação do gênero epistolar, ao não apenas desejar ou saudar com bons votos, mas imbuir a Musa de conduzir esse bem-estar ao destinatário.

Nesse caso, os dativos expostos, Celso Albinovano, comiti scribaeque indicam a quem estaria endereçada não a carta, ou não apenas a carta se assumimos a factualidade de um envio, mas a própria ação da Musa. É a Celso que deve ser reconduzida a satisfação e o bom modo de gerir as coisas, realçando a parte central em que o próprio emissor, Horácio recriado literariamente, também carece de uma ação similar àquela desejada a Celso. Assim, o segundo par supra destacado pode ser interpretado como parte de um aposto de uma cláusula adjetiva com verbo elíptico ou implícito, realçando não apenas as funções do endereçado, mas também a localização dele nos contextos iniciais de produção e de circulação da epístola. O genitivo Neronis modifica a locução nominal, restringindo sintaticamente as diversas possibilidades de significado das ações de Celso, mas também localizando no tempo e no espaço os interlocutores. Do mesmo modo que Celso é um dos comissionados de Tibério em sua missão na Armênia, a Musa é comissionada por Horácio. Dentre as possibilidades da construção literária da Musa nesta epístola, os modos que ela poderia suavizar a mensagem ao destinatário, mas também expor a compreensão de si do emissário, são destacados. Ao utilizar seus infortúnios, o emissor indica, pela Musa transformada em mensagem, para Celso Albinovano não deixar que o “sucesso suba à cabeça” (Kilpatrick, 1968, p. 408-9).

No argumento central da epístola, Horácio novamente utiliza-se do modo imperativo, pois, ao pressupor as perguntas de seu interlocutor, fornece a resposta que deve ser dada pela Musa. Ao se utilizar de uma construção com verbos no subjuntivo, indicando a possibilidade de um questionamento e também a condição atual de suas ações, o autor da carta acredita não viver retamente e nem suavemente. A distinção entre as duas possibilidades de bem viver, retamente e suavemente, contrapõe propostas estoicas e epicuristas. A forma adverbial recte aparece 10 vezes, enquanto há um único registro de suaviter. Esses dados corroboram a atestação de uma materialidade lexical para a insatisfação mental do emissor e também para as indecisões que serão descritas ao longo da epístola. O fortalecimento da mente, em face aos maiores perigos e inconstâncias, apresenta-se no De Rerum Natura de Lucrécio a partir de uma distinção entre aqueles que buscam sentidos verdadeiros na materialidade e não nos ensinamentos dos sábios (DRN, II.1-10). A mente é vista como uma fortaleza, retirando o medo, a ansiedade e o temor (DRN, II.17-19). O cuidar de si e das questões políticas associa-se a algo doce e agradável, i.e., suavis, não apenas aos sentidos, mas para os modos de compreender as coisas e de se viver.

O particípio presente do verbo minor indica um desejo realizado com uma finalidade. Desse modo, a construção multa et pulchra minantem (v. 3), com complemento implícito e regência verbal no ablativo, salienta uma concessão. O escritor, portanto, salienta que, embora, de fato, almejasse belas e variadas coisas, não vive de acordo com suas intenções, seja em preceitos mais rigorosos ou ainda em promessas mais amenas de bem-estar pessoal. Há, portanto, uma intertextualidade da Ep. 1.8 com as Sátiras, em especial as pretensões de Horácio em apresentar muitas coisas grandiosas e belas. Observa-se que a Musa deve afirmar sobre o emissor: multa et pulchra minantem; por sua vez, nas Sátiras, sentindo-se incomodado e escrevendo pouco, Horácio descreve a si mesmo em palavras similares: vultus erat multa et praeclara minantis (S. 2.3.9). Em situação similar, nas duas coletâneas de poemas, almeja-se algo elevado, belo e digno, mas a realidade apresenta-se contrária.

Essa insatisfação não é decorrente das condições externas, e.g., não é devido ao granizo ter destruído as vinhas, o calor ter consumido as azeitonas ou ainda o gado encontrar-se doente em campos distantes – haud quia grando / contuderit vitis oleamque momorderit aestus, / nec quia longinquis armentum aegrotet in agris (v. 4-6). Constata o escritor que a razão de seu modo de vida errático se deve ao fato de sua mente estar menos fortalecida do que todas as partes de seu corpo. Os versos 4 e 5 apresentam uma bela construção quiástica, evidenciando a soma dos danos materiais observados. Ademais, por destacar essas perdas, observa-se que, embora elas sejam elevadas, o maior dano não se refere a elas, mas a condição mental que impede o escritor de viver adequadamente. Lê-se: grando contuderit vitis oleamque momorderit aestus. Os verbos estão no perfeito do subjuntivo, denotando a possibilidade real de essas ações terem ocorrido. Por sua vez, temos a sequência: argumento externo – verbo – argumento interno – partícula aditiva – argumento interno – verbo – argumento externo. Segue-se a negativa referente aos animais no campo estarem adoentados. Desse modo, a partícula explicativa quia estrutura a passagem nos v. 4-7 ao apresentar: haud quia; nec quia; sed quia. Não é devido à perda das vinhas e do azeite; tampouco, pelo gado adoentado; mas devido ao fato de a mente estar mais enfraquecida do que o corpo todo.

A utilização do termo validus torna-se relevante no desenvolvimento narrativo do poema, visto que esse tema nominal associa-se ao verbo valeo em um campo semântico de fortalecimento, saúde e bem-estar. Desse modo, há variações recorrentes na epistolografia no sentido de desejar bem-estar ao destinatário, conforme a presença no v. 13 corrobora. Ademais, a fraqueza da mente conduz a rompimentos com expectativas sociais (v. 9), a um sentimento de letargia funesta (v. 10), ações contrárias à vontade pessoal (v. 11), a indecisões que conduzem a constantes insatisfações (v. 12).

Desse modo, uma mente com menor vigor do que qualquer parte do corpo – mente minus validus quam corpore toto (v. 7) – é a causa de um viver não adequado, independentemente dos benefícios materiais que a Fortuna possa proporcionar. Esse tema dos benefícios recebidos pela Fortuna será apresentado também ao final da epístola, quando a comissionada Musa deve destilar um adágio popular ao ouvido de Celso para que não se esqueça das consequências de suas ações. Contudo, descrevendo a si em um constante mal-estar, o emissário deseja que a Musa instile vigor e alegria no destinatário. Em seu caso, todavia, nada deseja ouvir ou apreender que amenize essa chaga patológica – nil audire velim, nil discere, quod levet aegrum (v. 8). Até mesmo os médicos fiéis ofendem a esse paciente, os amigos irritam-no, justamente por apressarem prendê-lo nessa letargia (venterno) que consome suas forças. Interessante relação com Ep. 1.1, em que temos que a virtude se sustenta em fugir do vício e ver-se livre da ignorância (Virtus est vitium fugere et sapientia prima stultitia caruisse), tema desenvolvido nos versos seguintes. Ademais, na Ep. 1.1, ressalta-se a importância de ouvir o que é dito a respeito de si para um aprendizado pessoal.

O autodiagnóstico do escritor indica que ele se encontra distante das boas ações, visto seguir ao que pode causar morte – nocuere sequar (v. 16) – e evitar aquilo que ele mesmo acredita propiciar algo de útil – fugiamquae profore credam (v. 16). Por estar inquieto e insatisfeito em todos os lugares, torna-se instável, inconstante, vacilante. Desse modo, sempre deseja aquilo que não pode obter, visto estar em um lugar e almejar estar em outro em todo o tempo: Romae Tibur amem ventosus, Tibure Romam (v. 17).5 O autor, portanto, compara e contrasta o marasmo, a letargia, a apatia e a inércia coletados no termo veternus com a inconstância, a mutabilidade, a variabilidade de ventosus. A letargia torna-o indeciso; portanto, descontente com todas as circunstâncias. Desse modo, as constantes ações transformadoras da Fortuna adequam-se a esse contexto, sobretudo diante da incapacidade de uma ação enérgica. O autor descreve o seu descontentamento por não se adaptar às circunstâncias e sequer possuir o desejo de modificar essa condição.

Ao efetivar seu autodiagnóstico mediante uma hipérbole, associando-o a algo funesto, o emissor também diferencia-se dos animais, pois, ainda que o campo semântico entre o mal-estar de ambos seja aproximado, o humano tem consciência de sua própria situação: não depende da domesticação, mas tem a possibilidade de mudança. Todavia, a inquietação é profunda; a insatisfação apresenta-se independente da localidade; sabe-se como poderia agir, mas não age de acordo com esse entendimento – quae nocuere sequar, fugiam quae profore credam (v. 11). Ecoa um tema recorrente no pensamento helênico, helenístico e romano, que perpassa a história intelectual humana: conhecer o bem e agir de forma contrária, e.g., Platão, Aristóteles, Eurípedes, Ovídio, Sêneca, apóstolo Paulo, Agostinho, Lutero (Jensen, 2019, p. 31-50; Annas, 2017, p. 265-81). A combinação dos adjetivos na locução funestus veternus indica um risco mortal, devido a apatia e indolência, em que as pessoas mais velhas expressam um desinteresse pela vida. Por outro lado, ainda que Horácio possa expressar uma depressione psicofísica similar à dos velhos, ele não se identifica com letargia e sonolência, mas uma inquietude (Fedeli, 1996, p. 252). Horácio nos indica, portanto, o mesmo impulso em buscar a felicidade nas escolas filosóficas, nas atividades comerciais, nos médicos e nos amigos sem obter respostas adequadas a seus questionamentos. Há um paralelo com o adjetivo ventosus, enquanto este se associa às constantes mudanças do emissor, pois deseja sempre estar em outro local que aquele em que, de fato, ele se encontra.

Ao associar esse desejo de não alterar seu comportamento à melancolia, Kilpatrick sugere intertextualidades com a tradição dos escritos de Aristóteles e TusculanaeDisputationes de Cícero como um meio de exemplificar a necessidade de ouvir a mensagem enviada pela Musa, mesmo que Albinovano acredite estar vivendo retamente (Kilpatrick, 1968, p. 411-4). Ao se tornar um exemplo, reconhecendo sua letargia, suas reações aos infortúnios e suas ações àqueles que lhe cercam, Horácio sugere que Albinovano deve estar atento, pois, ainda que ele pareça estar atingindo sucessos na hierarquia social, seus amigos lhe tratarão da maneira que ele se portar diante desse cenário (MacCarter, 2015, p. 55-7).

Após comissionar a Musa a descrever seu descontentamento, o autor indica que a Musa deve interrogar a respeito de Celso e de sua condição. Subdivide esse inquirir em duas cláusulas subordinativas, caracterizadas pela utilização do subjuntivo juntamente à partícula ut. Após descrever sua própria fraqueza, o emissor demanda que a Musa pergunte sobre as condições físicas e psicológicas de Celso, reunidas no verbo valeo. Acrescenta, além disso, a indagação sobre o que tem sido feito para gerir os negócios públicos e a ele mesmo – quo pacto rem gerat et se (v. 13). Notam-se paralelos diretos com a descrição do emissário, visto que sua letargia o impede de tomar ações efetivas e também diminui o cuidado de si, mesmo diante de promessas de viver corretamente. Pede ainda que a Musa indague a Celso o que ele tem feito em seu ofício junto ao jovem príncipe (iuveni) e sua comitiva.

O uso de valeo e seus derivados nas epístolas latinas é atestado por Horácio, tal como em Ep. 1.3.12, inclusive ao desejar bem àqueles que estão na comitiva de Tibério. Por outro lado, apresenta o termo gaudere associado às tradições epistolares helenísticas no início e no fim da Ep. 1.8. Desse modo, ao empregar a mesma estrutura sintática ut valeat da terceira epístola ao iniciar o encerramento da comunicação encarregada à Musa, o poeta comanda que ela destile um preceito aos ouvidos de Celso. Desse modo, reafirma as características pedagógicas e didáticas encaminhadas ao mesmo receptor na Ep. 1.3, ao mesmo tempo em que dialoga com a tradição helenística de aprender mediante máximas e exemplos, tais como as perspectivas reunidas tradicional e informalmente ou mediante técnicas específicas de escrita e de pensamento filosófico que, para Sêneca, integram praecepta e decreta (Ep. XCIV-XCV). A Musa, portanto, deve inserir uma prática a ser executada por Celso, pela metonímia do preceito. Há um paralelo com a Ep. 1.2.48-53, em que a fuga dos prazeres e não estar apegado às riquezas são relacionados a preceitos que devem ser lembrados.

Utiliza-se o subjuntivo para indicar a possibilidade de uma resposta condicionada por um advérbio: recte (v. 15). Ora, o autor retoma a descrição de si feita nos v. 3-4, em que alega não viver retamente, devido à letargia que o consome. Desse modo, a epístola inicia uma comparação hipotética entre a condição apresentada pelo emissário e uma possível resposta do receptor. Se essa for a resposta, a Musa é instigada a saudar positivamente a Celso, mas, logo em seguida, deve recordar ao ouvido um preceito. Utiliza-se novamente o imperativo, nesse caso com a temporalidade futura, do verbo memini, o qual pode ser traduzido por “lembrar-se de algo”, ou ainda “imputar algo no espírito ou na mente”. O infinitivo de instillo indica a suavidade, modo e aspecto da ação, visto que não se trata de algo abrupto, mas gradativo, gradual, gota a gota. Na construção sintática ut...sic, o emissor indica que do mesmo modo que Celso, nomeado explicitamente pelo vocativo, conduz a Fortuna, assim também nós – sem distinção clara dessa coletividade nos versos – trataremos a ele.

A métrica e o ritmo dos v. 13-17 indicam uma enunciação mais lenta pela grande presença de espondeus. O fechamento hexamétrico é mantido em todos os versos, mas a presença de espondeus nos pés restantes no v. 15 e no v. 17 indica a atenção dada à pressuposta resposta de Celso, mas, especialmente, à orientação que deverá ser marcada na memória desse destinatário. Celso não pode esquecer o dito de que, da mesma forma que ele se comporta com a Fortuna, seus amigos se comportarão com ele (evidenciado na estrutura ut...sic). O destilar gradual do preceito é marcado no ritmo lento do último verso. A estrutura métrica para propiciar esse feito nos últimos versos segue: SDSSDS, DDSDDS, SSSSDS, SDSSDS, SSSSDS.

Ao longo de nossas análises da Ep. 1.8, variados assuntos e temas carecem de maiores investigações. O tratamento dado à Musa pelo escritor possui repercussões, já indicadas, ao longo de seu corpus literário, mas também reflete uma distinção entre as tradições literárias, helênicas, helenísticas e latinas. Nesse sentido, uma discussão sobre as variadas formas de discursos públicos, inevitavelmente, insere nossas observações nas recepções de correntes e escolas filosóficas na Antiguidade, em especial o estoicismo e o epicurismo. A familiaridade pela qual os termos, temas, premissas e teses são apresentados impede que um leitor desatento infira intertextualidades e interfaces, mas também aprofunde a multiplicidade e a riqueza de sentidos expressas nos textos horacianos. Embora uma escansão de toda a epístola tenha sido feita e apresentada apenas em instâncias argumentativas específicas, investigações sobre os padrões rítmicos e os efeitos poéticos são necessárias, não apenas para discutir o desenvolvimento do próprio autor ao longo do tempo, mas também para articular as possíveis interações entre as formas e os gêneros literários utilizados, e.g., epístola, diálogo, tratado filosófico, preceitos morais, poesia didática. Desse modo, essa breve análise da Ep. 1.8 e a proposta de uma tradução interpretativa exemplifica a relevância e a magnitude das Epístolas horacianas.

Referências

ANNAS, Julia. Ancient Eudaimonism and Modern Morality. In: BOBONICH, Christopher (ed.). The Cambridge Companion to Ancient Ethics. New York: Cambridge University Press, 2017, p. 265-81.

BASSETT, Samuel. The Inductions of the Iliad, the Odyssey, and the Aeneid. The Classical Weekly, v. 27, n. 15, 1934, p. 113-8.

CICERO. Epistulae Ad Familiares. Cambridge: Cambridge University Press, 2004. v. 1.

CITRONI, Mario et alii. Literatura de Roma Antiga. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006.

CONTE, Gian Biagio. Latin Literature: A History. Baltimore: The John Hopkins University Press, 1987.

DALZELL, Alexander. The Criticism of Didactic Poetry: Essays on Lucretius, Virgil, and Ovid. Toronto: University of Toronto Press, 1996.

DUCKWORTH, George. Vergil and Classical Hexameter Poetry: A Study in Metrical Variety. Ann Arbor: The University of Michigan Press, 1969.

EXLER, Francis Xavier. A Study in Greek Epistolography: The Form of the Ancient Greek Letter. Eugene: Wipfand Stock Publishers, 2003.

FEDELI, Paolo. Il poeta depresso e la Musa messaggera (Hor. epist. 1,8). Euphosyne, v. 24, 1996, p. 247-56.

GOWERS, Emily. Fragments of Autobiography in Horace Satires I. Classical Antiquity, v. 22, n. 1, 2003, p. 55-91.

GÜNTHER, Hans-Christian. Horace’s Life and Work. In: GÜNTHER, Hans-Christian (ed.). Brill’s Companion to Horace. Leiden: Brill, 2013, p. 1-62.

IRWIN, Terence. Horace and Practical Philosophy. In: BOBONICH, Christopher (ed.). The Cambridge Companion to Ancient Ethics. New York: Cambridge University Press, 2017, p. 338-57.

JENSEN, Steven. The History of Natural Law Ethics: Aquinas. In: ANGIER, Tom (ed). The Cambridge Companion to Natural Law Ethics. New York: Cambridge University Press, 2019, p. 31-50.

KILPATRICK, Ross. Horace to AlbinovanusCelsus: Ep. I 8. Mnemosyne, v. 21, n. 4, 1968, p. 408-14.

KNOX, Peter E. Language, Style, and Meter in Horace. In: GÜNTHER, Hans-Christian (ed.). Brill’s Companion to Horace. Leiden: Brill, 2013, p. 527-47.

LUCRETIUS. On the Nature of Things. Cambridge: Harvard University Press, 1924.

MacCARTER, Stephanie. Horace between Freedom and Slavery. Madison: The University of Wincosin Press, 2015.

MARTIN, René; GAILLARD, Jacques. Les genres littéraires à Rome. Paris: Nathan, 1990.

MAYER, Roland. Horace. Epistles Book I. Cambridge: Cambridge University Press, 1994.

NATIVIDADE, Everton. O último pé e a cesura nos versos núnicos e as Púnicas de Sílio Itálico. ScientiaTraductionis, n. 13, 2013, p. 312-28.

OVID. Epistulaeex Ponto. Book I. New York: Cambridge University Press, 2014.

RUTHERFORD, Richard. Poetics and literary Criticism. In: HARRISON, Stephen (ed.). The Cambridge Companion to Horace. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 248-61.

SCHIESARO, Alessandro. Didactic Poetry. In: HORNBLOWER, Simon; SPAWFORTH, Antony (ed.). The Oxford ClassicalDictionary. Oxford: Oxford University Press, 1996, p. 465-66.

SÊNECA. Ad LuciliumEpistulae Morales. New York: G. P. Putnam’s Sons, 1925. v. 3.

Notas

1 Destacam-se, ainda, outras possibilidades de pausas que dividam os pés nas recepções dos hexâmetros datílicos, e.g., triemímera, após o segundo pé (Natividade, 2013, p. 312-28).
2 Celso aparece também na Ep. 1.3, descrito por possuir pretensões poéticas e ser possivelmente um dos amigos de Ovídio (ExP I.9.10). Em Ep. 1.3.15-20, Horácio reitera o conselho de evitar uma imitatio sem técnicas e engenhos pessoais para que não seja motivo de chacotas. As Epístolas 1.3 e 1.8 possuem o aconselhamento a Albinovano como um assunto comum, feito por intermédio de um amigo e da Musa respectivamente (Kilpatrick, 1986, p. 37-40; Fedeli, 1996, 253-5).
3 Embora as fórmulas sejam comuns na epistolografia, a expressão bene rem gerere possui claras conotações semânticas no desenvolvimento do argumento (Mayer, 1994, p. 175).
4 Deve-se ressaltar o uso de gaudere e suas recepções da epistolografia helênica, sobretudo por estar associado ao termo khairein (Exler, 2003, p. 22-5). Por sua vez, a utilização de rem gerere na epístola indica uma estrutura narrativa, mas também uma relação entre as atividades práticas e as demandas pessoais: tema central na exposição descritiva do emissor sobre sua condição mental, independente das perdas materiais.
5 A indecisão e as constantes mudanças de posição são associadas por Horácio à plebe, utilizando essa mesma raiz: ventosae plebis (Ep. 1.19.37-38). Cícero, por sua vez, associa o superlativo do mesmo adjetivo a Antonio (Ep. ad Fam. 11.9.1). Esses casos, portanto, referem-se a pessoas volúveis, com constantes mudanças de opinião de acordo com as circunstâncias.
HTML generado a partir de XML-JATS4R por