Dossiê Eros e Afrodite no Romance Antigo

Apresentação

Adriane da Silva Duarte
Universidade de São Paulo, Brasil

Apresentação

Classica - Revista Brasileira de Estudos Clássicos, vol. 35, núm. 2, pp. 1-3, 2022

Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos

O presente Dossiê reúne os textos de exposições das 4ª Jornada do Romance Antigo: Eros e Afrodite e 5ª Jornada do Romance Antigo: Eros e Afrodite (parte II), realizadas em 2020 e 2021, respectivamente, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, que organizei em conjunto com Isabel Passos Lopez.

As Jornadas do Romance Antigo têm como propósito promover a interlocução entre os pesquisadores que se dedicam à investigação desse gênero no Brasil e de dar visibilidade a suas pesquisas. As duas últimas edições aconteceram em ambiente virtual, em virtude das restrições sanitárias impostas pela Pandemia de Covid-19. A proposta era examinar a representação das relações amorosas nos romances gregos e latinos do período imperial.

A temática amorosa é bem característica no gênero, especialmente no que respeita seu núcleo canônico. São os romances de amor idealizado (ideal love novels), de expressão grega, cuja trama gira em torno de um jovem casal apaixonado, pertencente à elite social e política em suas cidades e dotados de notável beleza, e suas desventuras, em que se destacam viagens para longe da pátria e assédios mais variados. Os amantes se mantêm fiéis para, ao reencontrarem-se, celebrarem, enfim, a paixão mútua. Cinco títulos, datados entre I e IV EC, compõem esse grupo: Quéreas de Calírroe (I EC), de Cáriton de Afrodísias; As Efesíacas ou Ântia e Habrocomes (I-II EC), de Xenofonte de Éfeso; Dáfnis e Cloé (II EC), de Longo; Leucipe e Clitofonte (II EC), de Aquiles Tácio, e As Etiópicas (III-IV EC), de Heliodoro e mais um punhado de fragmentos de obras parelhas.

Ao lado destes, estão os romances cômico-realistas, cuja natureza satírica e não idealizada predomina, que enfocam as peripécias de um protagonista marginal envolto em um cotidiano reconhecível ao leitor. Estão associados à vertente latina, o Satíricon (I EC), de Petrônio, e o Asno de Ouro ou Metamorfoses (II EC), de Apuleio, mas há também exemplares gregos, notadamente Lúcio ou o asno, de Pseudo-Luciano e As narrativas verdadeiras (ambos de II EC), de Luciano, que se aproxima desse grupo pelo viés satírico. Por fim, há ainda os “textos à moda de romances” ou “quase-romances” (novel like texts ou fringe novels), mais variados tematicamente e que confinam com outros gêneros em prosa, notadamente com o relato biográfico – nesse caso, pode-se citar os anônimos Romance de Esopo, Romance de Alexandre, os Atos de Paulo e Tecla, todos compostos por volta de II EC, e ainda Vida de Apolônio de Tiana, de Filóstrato (III EC). Nesses, o amor é tema no mais das vezes lateral, mas que, ainda assim, ocupa um lugar na trama.

O Dossiê compõe-se de seis textos de autores vinculados a universidades brasileiras (USP, UNIFESP, UNESP, UFMG, UEL), cada pesquisadora e pesquisador explorando o tema proposto a partir de seus interesses específicos. É com satisfação que observo que são abordadas sete obras diferentes, abrangendo parte considerável de um corpus diminuto.

Giuliana Ragusa abre o Dossiê com “Afrodite em prosa e verso: ecos do imaginário erótico arcaico em Quéreas e Calírroe”. Professora de Língua e Literatura Grega da Universidade de São Paulo, ela desenvolve suas pesquisas em torno da lírica grega arcaica, tendo estudado a representação de Afrodite nos poetas mélicos.1 Busca, assim, estabelecer como a deusa e o desejo erótico se mostram em Quéreas e Calírroe, que é considerado o primeiro exemplar do romance amoroso grego, à luz da tradição poética arcaica, ressignificada em vista do novo gênero que desponta.

Em seguida há um texto de minha autoria, “Eros e Himeros: o impulso erótico no romance grego antigo”. Nele me proponho a examinar o tratamento dado à matéria amorosa em um romance do amor idealizado, Efesíacas, de Xenofonte de Éfeso, e em um da vertente cômico-realista, Lúcio ou o asno de Pseudo-Luciano. Verifico que a idealização da paixão amorosa por Xenofonte se deve à preservação do imaginário mítico-poético, associado, sobretudo, à concepção de Eros na lírica grega arcaica. Luciano, por sua vez, desloca o desejo da mulher amada para a contemplação de fenômenos extraordinários, as sessões de magia comandadas por sua anfitriã, estando os deuses de todo ausentes. Assim, a relação amorosa resume-se ao sexo instrumentalizado, uma vez que o narrador vê na sua parceira uma facilitadora para alcançar seu objetivo maior.

O terceiro artigo é de Lucia Sano, professora de Língua e Literatura Grega da Universidade Federal de São Paulo, que se dedicou em seu doutorado ao estudo da representação da guerra e dos ideais de masculinidade no romance grego.2 Em “Eros Marcial em Leucipe e Clitofonte, de Aquiles Tácio” examina como nesse romance as relações amorosas e o próprio Eros são descritos em termos militares, de modo a dialogar com a elegia erótica romana e preservar o viés irônico característico dessa poesia.

“As cenas de reconhecimento no romance Dáfnis e Cloé” constitui a quarta contribuição para esse dossiê. Seu autor, Luiz Carlos André Mangia Silva, professor na Universidade Estadual de Maringá, desenvolveu em seu estágio de pós-doutorado pesquisa sobre o romance de Longo, cuja tradução empreendeu.3 No presente texto, ele busca analisar as cenas de reconhecimento em Dáfnis e Cloé à luz da Poética, de Aristóteles, relacionando-as ao final feliz selado no casamento dos heróis e arquitetado por Eros.

O quinto texto da coletânea nos leva ao romance latino mais conhecido, traduzido e estudado entre nós. Em “Eumolpo, Gitão e Encólpio: um triângulo de amor, humor e literatura no Satíricon, de Petrônio”, Claúdio Aquati explora os relacionamentos homoeróticos à luz dos jogos literários com os quais o romancista subverte o cânone e deleita seus leitores. Aquati, professor de Língua e Literatura Latina na Universidade Estadual Paulista, tem publicado extensamente sobre o romance de Petrônio, do qual também é tradutor.4

Sandra Maria Gualberto Braga Bianchet fecha essa coletânea com “Gemina Venus: os percursos do amor no conto de Psiquê e Cupido”. Professora de Língua e Literatura Latina na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, é pesquisadora do romance latino, tendo traduzido o Satyricon e o Asno de Ouro.5 Nesse artigo, investiga o papel desempenhado por Vênus naquele que é o mais conhecido relato embutido do romance apuleiano, bem como a representação paródica dos deuses gregos, particularmente de Cupido.

Acreditamos que este dossiê contribui para apresentar o romance antigo como campo de pesquisa consolidado no Brasil, ainda que não esteja tão presente nos currículos de nossas universidades, e, com isso, para estimular novas investigações e traduções dessas obras.

Notas

1 Fragmentos de uma deusa: a representação de Afrodite na lírica de Safo. Campinas: Editora da Unicamp, 2005; Lira, mito e erotismo: Afrodite na poesia mélica grega arcaica. Campinas: Editora da Unicamp, 2010.
2 Sendo homem: a guerra no romance grego, tese apresentada ao PPG em Letras Clássicas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas na USP, em 2013. Disponível na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP, em https://www.teses.usp.br/
3 Até o presente momento, estão publicados os Livros I e II do romance, cf. SILVA, Luiz Carlos A. M. Dáfnis e Cloé, de Longo de Lesbos – Livro Primeiro: Tradução. Rónai: Revista de Estudos Clássicos e Tradutórios, v. 7, n. 1, p. 159-78, 2019; SILVA, Luiz Carlos A. M. Dáfnis e Cloé, de Longo de Lesbos – Livro Segundo: Tradução e comentário. Rónai: Revista de Estudos Clássicos e Tradutórios, v. 8, n. 2, p. 116-42, 2020.
4 PETRÔNIO. Satíricon. Tradução, introdução e posfácio de Cláudio Aquati. São Paulo: Editora 34, 2021.
5 PETRÔNIO. Satyricon. Tradução de Sandra Braga Bianchet, Belo Horizonte: Crisálida, 2004; APULEIO. As metamorfoses de um Burro de Ourode Apuleio. Tradução por Sandra Braga Bianchet. Curitiba: Appris, 2020.
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