Tradução | Translation

Tradução e comentários da Carta III.5, a Bébio Macro, de Plínio, o Jovem

Pliny the Younger to Baebius Macrus, Letter III.5: a commented translation

Lucas Matheus Caminiti Amaya
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil

Tradução e comentários da Carta III.5, a Bébio Macro, de Plínio, o Jovem

Classica - Revista Brasileira de Estudos Clássicos, vol. 35, núm. 1, pp. 1-17, 2022

Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos

Recepción: 24 Agosto 2021

Aprobación: 12 Octubre 2021

Resumo: Propomos uma análise detalhada do texto latino e do conteúdo geral nesta tradução da carta III.5 de Plínio, o Jovem, destinada ao senador consular Bébio Macro e cujo tema é a obra e vida de seu tio, Plínio, o Velho. Famosa por detalhar a vida de um dos maiores eruditos da Roma Antiga, a carta é cuidadosamente trabalhada e retrata uma realidade exagerada e com objetivos claros: dar ao autor da carta louros herdados de um esforço sobrenatural de seu tio.

Palavras-chave: Plínio, o Velho, Plínio, o Jovem, erudição, vida na Roma Antiga.

Abstract: We propose a detailed analysis of a letter written by Pliny the Younger, the letter III.5, commenting on the Latin text. The letter is addressed to the consular senator Baebius Macrus, whose main subject is the work and life of his uncle, Pliny the Elder. Famous for explaining the life of one of Ancient Rome’s most outstanding scholars, the letter is well adorned and portrays an exaggerated reality with clear goals: to give the letter’s author laurels inherited from his uncle’s supernatural efforts.

Keywords: Pliny the Elder, Pliny the Younger, scholar lives, daily routine in Ancient Rome.

Coleções de cartas publicizadas1 na Antiguidade tinham o claro objetivo de construir uma imagem específica para seu emissor principal, além das utilidades pedagógico-filosóficas, utilizadas desde a Grécia, e que, devido ao ecletismo frequente nos pensadores romanos, fizeram-se muito fortes em língua latina. Entre os epistológrafos romanos, certamente o mais reconhecido por tal empresa foi Plínio, o Jovem, exemplo para os escritores da Antiguidade Tardia, como Símaco – ainda que a coletânea póstuma de Cícero também servisse de modelo, essa era percebida de maneira distinta e mais historiográfica que epistolar, ao menos no sentido tardio.

A coleção de nove livros de Plínio, o Jovem – ignorado o décimo, dedicado exclusivamente à comunicação burocrática e política entre Plínio e o imperador Trajano, e que apresenta uma estrutura completamente distinta – é muito bem construída como um corpo único e sólido, formado de membros harmônicos: os livros, solidamente desenvolvidos por engrenagens aparentemente independentes, e as cartas, que, apesar de possuírem um significado quando isoladas, ressoam-se entre si, ressignificando-se e se reconstruindo. A esse respeito, tanto Marchesi (2015), quanto Gibson e Morello (2015), Whitton (2013) e Henderson (2002) já abriram caminhos para variadas discussões e releituras. Contudo, uma temática é sempre retomada: a necessidade de uma imagem laudatória de si.

Objetivamos fazer uma profunda análise de uma carta pliniana por demasiado lida e referenciada, a quinta carta do livro terceiro, destinada a Bébio Macro, que trata sobre a vida do tio e pai adotivo, Caio Plínio Segundo, ou, Plínio, o Velho. Nela, o epistológrafo tenta colher os frutos de ser descendente e herdeiro intelectual de um dos maiores eruditos que se conheceu no século I EC. Para isso, não só fazer conhecer quais obras e em que ordem foram escritas, mas como o tamanho zelo para com o conhecimento e a hercúlea vontade de escrever foram as bases para uma vida completa. Não obstante, numa carta que se quer simples e direta, Plínio explora diversos elementos poéticos e retóricos, explanando sua erudição advinda da criação do tio.

Para tanto, apresentamos o texto estabelecido por Zehnacker (2009), por ser o mais recentemente revisado e comentado. Nossa tradução não objetiva refletir com exatidão o texto latino em todas as suas estruturas, mas busca manter as informações com construções próximas, ainda que ocasionalmente se afastem um pouco do original latino – passagens nas quais forneceremos tradução identificadora em nota.

Vale ressaltar que há três grandes seções e pelo menos dois estilos diferentes na carta – dentre os vários estilos tão complexamente desenvolvidos apontados por Picone (1977)2 e Gamberini (1983).3 A primeira seção é a introdução, num estilo formal e objetivo, sem características poéticas ou retórico-forenses. Nesse trecho, fica evidente que a carta nasce de um desejo não necessariamente expresso a Plínio (tudo indica que o epistológrafo ouviu de terceiros sobre a empresa de Bébio Macro), mas que ele, por proximidade familiar, teria conhecimento total das obras do tio. Há a enumeração, quantificação e indicação do que cada obra escrita pelo tio trata e quando teria sido composta. A ordem parece correta, apesar de o momento de composição da biografia de Pompônio Secundo ser questionável.4 As frases são simples, porém bem construídas, com algumas figuras de linguagem e escolhas vocabulares bem específicas e marcantes, estruturas de subordinação regulares e sem quebras.

O desenvolvimento apresenta um estilo informal e oralizado, com informações subjetivas, quebras discursivas e marcado por uma parataxe justaposta. A maior parte das orações são sintaticamente independentes e se ligam apenas pelo contexto geral, ora não apresentando os síndetos esperados, ora apresentando repetições gramaticalmente não necessárias. Além disso, em dois momentos há inserção de anedotas independentes do contexto, mas, tão logo se encerram, volta-se ao tema de forma tão abrupta quanto fora interrompido inicialmente. Fugindo do que o destinatário almejava destarte, nessa parte Plínio, o Jovem, descreve a rotina de seu tio e sua aplicação ininterrupta à erudição. Contudo, fica evidente também a falta de atuação realmente política e jurídica por parte do tio, o que aumenta os louvores devidos ao epistológrafo, pois, além de ser considerado erudito, percorreu todo o cursus honorum.

A conclusão da carta volta ao estilo da introdução, finalizando-se a carta de maneira sucinta e colocando Plínio, o Jovem, como centro do tema. No trecho final lemos primeiro assertivas indiretas sobre uma vida de exceção e incomparável, até mesmo impossível, uma vez que o próprio epistológrafo deixa nas entrelinhas que nem mesmo ele seria capaz de imitá-la com perfeição, apesar de levar uma vida exemplar. Não obstante, há louvores indiretos ao autor da carta, que se coloca na posição de fonte de informações, mas também de professor e de erudito reconhecido pela sociedade.

Dessa forma, a carta é um bom exemplo da variação de estilos e de temas que podemos observar por toda a coletânea pliniana. A utilização de sermones5distintos também é significativa, porque apresenta dois lados da epistolografia latina: a conversação entre amigos distantes e a comunicação político-social, que requer um estilo formal ou até ultra formal. A variação em uma mesma carta é um reflexo de uma composição cujo objetivo não é meramente comunicativo entre emissor e destinatário, mas sim uma representação de uma erudição que se reconhece não só no autor, mas também em seu público.

A variação de sermones representa o reconhecimento do que é apropriado para cada carta e para cada tema. À esteira dessa variação, temos elementos regulares em Plínio e que requereriam uma audiência douta e atenta, como a utilização de elementos poéticos, inclusive métricos, que pescam os ouvidos treinados em passagens destacadas, ou então escolhas vocabulares que remontam a circulações político-sociais específicas e servem de paleta para uma composição epistolar patinada, entre outros elementos retóricos e literários apresentados ao longo da coletânea. Assim, a carta, mais do que um processo comunicativo, é um processo literário de exibição e reconhecimento de dedicação aos estudos das artes da língua latina.

III.5 C. Plinius Baebio Macro Suo S.

1 Pergratum est mihi quod tam diligenter libros auunculi mei lectitas ut habere omnes uelis quaerasque qui sint omnes. 2 Fungar indicis partibus atque etiam quo sint ordine scripti notum tibi faciam; est enim haec quoque studiosis non iniucunda cognitio.

3 DE IACULATIONE EQUESTRI unus; hunc, cum praefectus alae militaret, pari ingenio curaque composuit. DE VITA POMPONI SECVNDI duo; a quo singulariter amatus hoc memoriae amici quasi debitum munus exsoluit. 4 BELLORVM GERMANIAE uiginti; quibus omnia quae cum Germanis gessimus bella collegit. Incohauit cum in Germania militaret, somnio monitus: adstitit ei quiescenti Drusi Neronis effigies, qui Germaniae latissime uictor ibi periit, commendabat memoriam suam orabatque ut se ab iniuria obliuionis adsereret. 5 STVDIOSI tres, in sex uolumina propter amplitudinem diuisi, quibus oratorem ab incunabulis instituit et perficit. DVBII SERMONIS octo: scripsit sub Nerone nouissimis annis, cum omne studiorum genus paulo liberius et erectius periculosum seruitus fecisset. 6 A FINE AVFIDI BASSI triginta unus. NATVRAE HISTORIARVM triginta septem’, opus diffusum, eruditum nec minus uarium quam ipsa natura.

7 Miraris quod tot uolumina multaque in his tam scrupulosa homo occupatus absoluerit. Magis miraberis, si scieris illum aliquamdiu causas actitasse, decessisse anno sexto et quinquagensimo, medium tempus distentum impeditumque qua officiis maximis, qua amicitia principum egisse. 8 Sed erat acre ingenium, incredibile studium, summa vigilantia. Lucubrare Vulcanalibus incipiebat, non auspicandi causa sed studendi, statim a nocte multa, hieme vero ab hora septima vel, cum tardissime, octaua, saepe sexta. Erat sane somni paratissimi, non numquam etiam inter ipsa studia instantis et deserentis. 9 Ante lucem ibat ad Vespasianum imperatorem (nam ille quoque noctibus utebatur), inde ad delegatum sibi officium. Reuersus domum quod relicum temporis studiis reddebat. 10 Post cibum saepe, quem interdiu leuem et facilem ueterum more sumebat, aestate, si quid otii, iacebat in sole, liber legebatur, adnotabat excerpebatque. Nihil enim legit quod non excerperet; dicere etiam solebat nullum esse librum tam malum ut non aliqua parte prodesset. 11 Post solem plerumque frigida lauabatur, deinde gustabat dormiebatque minimum; mox quasi alio die studebat in cenae tempus. Super hanc liber legebatur, adnotabatur, et quidem cursim. 12 Memini quendam ex amicis, cum lector quaedam perperam pronuntiasset, reuocasse et repeti coegisse; huic auunculum meum dixisse: « Intellexeras nempe? » Cum ille adnuisset, “Cur ergo reuocabas? Decem amplius uersus hac tua interpellatione perdidimus.” Tanta erat parsimonia temporis. 13 Surgebat aestate a cena luce, hieme intra primam noctis et tamquam aliqua lege cogente.

14 Haec inter medios labores urbisque fremitum. In secessu solum balinei tempus studiis eximebatur; cum dico balinei, de interioribus loquor; nam dum destringitur tergiturque, audiebat aliquid aut dictabat. 15 In itinere quasi solutus ceteris curis huic uni uacabat; ad latus notarius cum libro et pugillaribus, cuius manus hieme manicis muniebantur, ut ne caeli quidem asperitas ullum studii tempus eriperet. Qua ex causa Romae quoque sella uehebatur. 16 Repeto me correptum ab eo cur ambularem: “poteras” inquit “has horas non perdere.” Nam perire omne tempus arbitrabatur quod studiis non impenderetur. 17 Hac intentione tot ista uolumina peregit electorumque commentarios centum sexaginta mihi reliquit, opisthographos quidem et minutissimis scriptos; qua ratione multiplicatur hic numerus. Referebat ipse potuisse se, cum procuraret in Hispania, uendere hos commentarios Larcio Licino quadringentis milibus nummum; et tunc aliquanto pauciores erant.

18 Nonne uidetur tibi recordanti quantum legerit, quantum scripserit, nec in officiis ullis nec in amicitia principis fuisse, rursus, cum audis quid studiis laboris impenderit, nec scripsisse satis nec legisse? Quid est enim quod non aut illae occupationes impedire aut haec instantia non possit efficere? 19 Itaque soleo ridere cum me quidam studiosum uocant, qui, si comparer illi, sum desidiosissimus. Ego autem tantum, quem partim publica, partim amicorum officia distringunt? Quis ex istis qui tota uita litteris adsident, collatus illi non quasi somno et inertiae deditus erubescat?

20 Extendi epistulam cum hoc solum quod requirebas scribere destinassem, quos libros reliquisset; confido tamen haec quoque tibi non minus grata quam ipsos libros futura, quae te non tantum ad legendos eos, uerum etiam ad simile aliquid elaborandum possunt aemulationis stimulis excitare. Vale.

Caio Plínio saúda ao amigo Bébio Macro

1. Regozijo-me ao saber que estás juntando e estudando tão cuidadosamente os livros de meu tio, de forma que queres saber quantos são em sua totalidade e os ter a todos. 2. Atuarei como catálogo, far-te-ei conhecedor de quais livros e em qual ordem foram escritos: essa sorte de conhecimento, de fato, não é desinteressante aos que se interessam pelo estudo.

3. Sobre o Lançamento de Dardos a Cavalo, um livro: com grande talento e pesquisa de alto nível,6 compôs quando liderava a ala de uma legião. Sobre a Vida de Pômponio Segundo, dois livros: Pômponio amou7 demais meu tio e o trabalho pagou um tipo de dívida à memória do amigo. 4. Das Guerras da Germânia, vinte livros: nesses livros, coletou tudo o que aconteceu nas guerras que travamos contra a Germânia. Começou a composição quando estava servindo o exército na Germânia, tendo sido levado a escrever por um sonho que teve: o fantasma de Druso Nero apareceu a ele enquanto repousava; Druso, que fora o maior vencedor das Germânias, onde faleceu, elogiou a memória de meu tio e pediu para que o salvasse do mal do esquecimento. 5. Para ser um erudito,8 três livros: divididos em seis volumes devido à extensão, neles instituiu e aperfeiçoou a definição de orador desde sua base. Os discursos complexos,9 oito livros: escreveu sob os últimos anos de Nero, quando a escravidão fez perigoso todo gênero de estudos um pouco mais livre e nobre. 6. De onde Aufídio Bassoparou, trinta e um livros. História Natural, trinta e sete livros: um trabalho difuso, erudito e não menos variado do que a própria natureza.

7. Certamente ficas admirado como um homem ocupado teria completado tantos volumes e muitos, dentre esses, tão minuciosos. Mais ainda ficarás, se souberes que ele atuou como advogado em causas de tempo em tempo; que ele morreu aos cinquenta e seis anos; que ele gerenciou isso durante seu tempo livre, sempre muito ocupado e sobrecarregado, ora nos mais altos cargos, ora atuando nas cortes dos Príncipes. 8. Mas era de um talento agudo, uma aplicação incrível, um zelo imenso. Nas Vulcanálias, começava a trabalhar à luz das fogueiras, durante a madrugada, não para tomar auspícios, mas para estudar. No inverno, começava à meia-noite ou, quando muito tarde, à uma da manhã, e não raro às onze da noite.10 Tinha um sono saudavelmente fácil e não raro cochilava um pouco entre os estudos, mas rapidamente voltava de onde parara.

9. Antes do sol nascer, ia ao Imperador Vespasiano (pois este também costumava aproveitar a madrugada), daí alguma tarefa lhe era delegada. De volta à casa, direcionava o tempo restante aos estudos. 10. No verão, normalmente depois da primeira refeição matinal11 (quando comia algo leve e fácil, como o costume dos antigos), se tinha algum período livre, lançava-se ao sol, lia, fichava e fazia notas de algum livro. De fato, nada há que leu que não tenha fichado – e ainda costumava dizer que nenhum livro era tão ruim que não houvesse alguma parte útil. 11. Ao pôr do sol, tomava um banho frio, comia algo e tirava uma sesta, e, ao acordar, estudava durante a ceia, e, quando lia outro livro, anotava-o e fichava-o muito rapidamente como se já fosse um outro dia. 12. Lembro-me certa vez que um de seus amigos interrompeu um recitador, que teria pronunciado algo erroneamente, e começou a repetir o trecho. Meu tio disse a ele, “de certo, entendeste a passagem”; o amigo confirmou acenando, ao que meu tio continuou, “então por que interrompeste? Perdemos o tempo de dez versos ou mais com tua interpelação!”. Tamanha era a parcimônia com o tempo! 13. No verão, retirava-se da ceia ainda com a luz do sol; no inverno, na primeira hora de noite, como se fosse obrigado por alguma lei.

14. Fazia isso entre as chateações ordinárias e barulhos da cidade. Durante o recesso das atividades político-forenses, um tempo era gasto com estudos durante os banhos quando desacompanhado (quando digo banhos, refiro-me aos privados), pois ouvia ou ditava algo, enquanto era esfregado e enxugado. 15. No traslado, como se livre de outros encargos, dedicava-se a uma única atividade, estudar: ao lado o escrivão com um livro e tabuinhas de rascunho, e no inverno as mãos do escravo cobertas com luvas para que o mal tempo não roubasse tempo algum de estudo – por este motivo era conduzido numa cadeirinha em Roma. 16. Remonto a cena: eu a correr e brincar, ele me corrige com as seguintes palavras: “não poderias perder esse tempo todo!”.12 Isso porque ele julgava todo tempo ser perdido se não gasto com estudos. 17. Com todo esse zelo concluiu todos esses volumes que citei, e me deixou cento e sessenta comentários escolhidos entre todos que compôs, escritos dos dois lados do papiro e com uma letra muito pequena e apertada – então quando levas isso em consideração, o número de obras é multiplicado. Ele mesmo contava ter podido vender esses comentários a Lárcio Licino por quarenta mil moedas, quando era administrador na Hispânia – e até então eram bem menos e menores.

18. Quando pensas em quanto ele teria escrito e lido, não te parece que ele não poderia ter ocupado algum cargo, nem poderia se manter na corte de Príncipes? Ou, ao contrário, quando ouves quanto esforço físico ele empenhou nos estudos, não te parece que ele nem teria lido, nem escrito o bastante? Por que, então, aquelas ocupações não puderam impedi-lo ou nessa perseverança ele não pôde ter completado as obras? 19. E assim eu costumo rir quando alguns me chamam de estudioso, eu, que se comparado a ele sou tão preguiçoso; logo eu, que parte os deveres públicos, parte os deveres para com os amigos me ocupam? Quem destes aí, insignificantes,13 que se voltam às letras por toda a vida, não se enrubesceriam ao se comparar a ele, como se se dedicassem apenas a dormir e à preguiça?

20. Prolonguei a epístola quando me dispus a não apenas escrever o que perguntavas (quais livros ele deixara). Mas tenho certeza de que essas informações te serão não menos gratas que o conhecimento sobre os livros em si – informações as quais podem te encorajar não apenas a lê-los, mas também a dedicar-se a algo parecido, estimulado a imitá-lo.14 Adeus.

Notas do texto latino

BAEBIO MACRO: provavelmente o mesmo Bébio Macro citado por Marcial (X.18), curador da Via Ápia, governador da Bética, cônsul sufecto em 103, prefeito da cidade em 113. Importante senador da época.

Pergratum est mihi: estrutura rara em Plínio, mas muito comum nas cartas de Cícero, o que pode indicar uma emulação de cartas mais urbanas e rápidas.

lectitas: lectito (ajuntar, agrupar) é frequentativo de lecto (ler ou juntar repetidamente), que por sua vez é frequentativo de lego (ler ou juntar), e que aqui certamente maximiza o verbo base. Plínio indica que não só se agrupa, como se apreciam e se leem muito as obras do tio, espelhando a circulação de seus textos.

uelis quaerasque: ambos os verbos, uelle e quaerere, têm um sentido muito próximo de desejar algo, porém, o primeiro com um sentido passivo e o segundo com um sentido ativo, de buscar por desejo. A escolha, então, não é por acaso: tem-se a cobertura total dos tipos de necessidade e suas consequências.

omnes uelis quaerasque (...) omnes: construção quiasmática omnes uelis X quaeras omnes.

Fungar: a utilização do verbo fungi tanto nos remete ao exercício de uma função, cumprimento de um dever, quanto à quitação de dívidas. O que certamente não é em relação a Bébio, com quem Plínio mantinha uma relação amistosa e urbana, mas sim à imagem do tio.

indicis partibus: metonímia. Plínio, na verdade, escreve um índex detalhado das obras. Desta forma, a expressão “cumprir os papeis de um índex” se remete a ele enquanto pessoa. Esta é uma figura regular e identificadora do próprio gênero epistolar: a carta é a pessoa em si.

atque etiam: repetição de termos de mesmo valor, emulando a fala.

studiosis: há uma evolução do vocábulo studium, que, na época de Cícero, significava zelo, aplicação, mas, nos tempos de Plínio, o sentido de “estudo”, “conhecimento de determinada matéria”, “erudição”, já é pleno. Desta forma, studiosus é aquele que busca com zelo e aplicação determinado conhecimento, ou seja, um estudioso.

cognitio: termo ligado ao mundo jurídico, que por sua vez é recorrente durante a carta, provavelmente em razão da relação entre emissor e destinatário, que era acima de tudo política. A relação hierárquica e social entre destinatário e emissor deve sempre refletir a escolha vocabular.

DE IACULATIONE EQUESTRI: obra perdida. Citado em Historia Naturalis VIII.162. Escrito ou durante o serviço militar na Trácia, ou na Germânia.

unus: elisão por obviedade. O numeral depois de cada nome de obra está ligado a liber, omisso na escrita por ser desnecessário.

praefectus alae: por ser de família equestre, era esperado um cargo de liderança mediana dentro do serviço militar. O comandante de ala detinha um pequeno poder sobre algumas centenas de homens. Provavelmente dirigiu um segmento de homens montados que atuavam nos flancos e atrás dos homens a pé, já que estariam municiados de dardos.

pari ingenio curaque: indicação de que o grande erudito não só tinha talento imenso para escrever, como também dominava a técnica de lançamento de dardos. Plínio cria aqui uma figura que vai além de alguém que dita a escravos, mas também pratica o que ensina.

DE VITA: biografia foi um gênero regularmente publicado durante o século I EC. Apesar dos diversos relatos, poucas biografias sobreviveram ao tempo.

DE VITA POMPONI SECVNDI: obra perdida. Pompônio Segundo foi um tragediógrafo, legado na Germânia durante o governo de Cláudio, cônsul sufecto em 44. Suas tragédias foram elogiadas por Quintiliano (Inst. Orat. X.98), citado em diferentes obras de Tácito, como Annales XII.27 e Dialogus XIII.3. A obra em si é citada na História Natural, XVI.2.

debitum munus: Plínio indica que Pompônio Segundo era protetor político de seu tio, a quem a biografia foi feita como se fosse uma obrigação.

BELLORVM GERMANIAE: obra perdida. Extensa obra sobre as várias guerras contra os povos germanos, de César a Cláudio. Teve o início de composição durante o serviço militar. Citada por Tácito (Annales I.69) e Suetônio (Gaius VIII.1). Provavelmente uma das principais figuras da obra era seu protetor, Pompônio Segundo.

Drusi Neronis: sobrinho e filho adotado de Otávio Augusto, sendo filho de Lívia e irmão de Tibério, que viria a ser o imperador. Morreu durante uma campanha na Germânia, em 9 EC. Desta forma, a aparição se liga diretamente aos divinos César e Augusto, trazendo uma importância ainda maior à obra.

effigies: palavra formada a partir do verbo fingo (tocar, manusear), indica uma estátua, um retrato. Por metonímia, utiliza-se para aparições metafísicas de espíritos estáticos, ao contrário dos termos figura, simulacro, phasma, entre outros. Em outras cartas, o termo figura é utilizado para aparições em sonhos (cartas VI.20 e VII.27, por exemplo). Assim, podemos crer que o tio sonhou com uma estátua ou retrato, não que fora visitado pela alma nos sonhos, como Plínio descreve em outras cartas. (cf. Ernout; Meillet, 1994, p. 236)

ab iniuria obliuionis: não há motivo sintático para a construção, que poderia se resumir a ab obliuione. Plínio marca uma posição jurídica e política ao utilizar iniuria: Nero Cláudio Druso foi relegado ao esquecimento por não ser filho de Otávio Augusto e seus louros normalmente são dados a outros. A recuperação de seus feitos é então um dever moral e jurídico, de atribuir-se a quem é de direito.

STVDIOSI: obra perdida. Referenciada com reservas por Quintiliano (Inst. Orat. III.1 e 21, XI.3, 143 e 148) e por Aulo Gélio (Noctes Atticae IX.26). Livro que se destina à orientação de jovens estudantes e oradores. Escrito durante o governo de Nero, quando assuntos sócio-políticos, históricos e que fossem contrários à opinião do imperador eram de certa forma proibidos, pois poderiam causar a morte de seus autores. Obra de cunho pedagógico.

in sex uolumina: a divisão em livros se dá por temas, não por tamanho. Como os livros seriam extensos por sua profundidade, usou-se mais de um rolo de papiro para cada livro, sendo uolumen uma metonímia relativa ao cilindro de transporte do rolo de papiro. Isso certamente está ligado à prática de Plínio o Velho de escrever muito, com letras pequenas e em todos os espaços da pagina, um recorte de uma coluna de texto no papiro.

DVBII SERMONIS: obra perdida. Também chamado de libellos de grammatica no Historia Naturalis (pref. 28). Muito criticada pela geração seguinte, obra de cunho pedagógico também escrita durante o governo de Nero. Obra ligada a STVDIOSI.

nouissimis annis: a estrutura se refere aos últimos anos, aos anos finais. Nouissimi está ligado à proximidade temporal entre o referente temporal que produz o discurso e àquilo a que se refere.

liberius et erectius: adjetivos comparativos de superioridade. Liber refere a liberdade, a não submissão obrigatória e normalmente relativo a um ser vivo; erectius, e + rect, do verbo rego, traz tanto a ideia de governança e comportamento adequado, quanto de levantar-se e de algo em linha reta. De fato, não são naturalmente aplicados à ideia abstrata de genus, o que permite uma leitura mais ampla, apontando para um senso de liberdade e correção social e literária. Logo, Plínio aplica ao campo literário as mesmas diretrizes político-sociais da época.

seruitus: substantivo arcaico que faz oposição a liberius e erectius. A utilização remonta ao período monárquico, atribuindo a Nero, assim, a péssima qualidade de rei, alguém que governa sem o devido respaldo jurídico, político, social e humano.

A FINE AVFIDI BASSI: obra perdida. Livro de cunho estritamente histórico que provavelmente cobria da morte de Júlio César até 70 EC, dissertando inclusive sobre os tempos de Nero. Citada na Historia Naturalis (pref. 20), elogiada por Quintiliano (X.1.103) e referenciada por Tácito (Annales XIII.20, XV.53; Historiae III.28). Aufídio Basso foi um famoso historiador com diversas obras. Nenhuma das obras de Aufídio Basso, nem essa de Plínio, o Velho, sobreviveram ao tempo. O nome da obra em si é uma metonímia, pois a referência aparente é o autor e não a obra tomada como referência.

NATVRAE HISTORIARVM: obra perdida parcialmente. Mais conhecido como Historia Naturalis, de cunho enciclopédico, maior obra escrita por Plínio, o Velho. Sobreviveu parcialmente ao tempo. Apesar do termo historia, há poucas ligações com a proposta de obras que seguiam a linha estabelecida por Heródoto.

diffusum: adjetivo normalmente utilizado para líquidos ou em temas militares. A ideia é de dispersão não uniforme, para todos os lados e sem limites. Com isso, a ideia é de que a obra se debruça sobre todo e qualquer tema, cobre todos os lados da natureza, sem limite ou distinção.

Miraris (...) Magis miraberis: apesar de haver uma relação de contraposição e de reciprocidade entre as orações, o que exigiria o uso do subjuntivo (“se ficas admirado com isso... ficarás mais ainda com aquilo”), sintaticamente Plínio as coloca justapostas, com o mesmo valor. Pode-se argumentar que isso é uma influência do sermo urbanus, de um caráter oral do discurso epistolográfico, mas se pode analisar como uma criação de cólones equivalentes e interdependentes.

tot uolumina multaque in his tam scrupulosa: listagem do macro para o micro – todo, muitos, alguns – tanto ideologicamente, quanto lexicalmente.

scrupulosa: adjetivo que vem de scrupus (angústia). A ideia é a de que o trabalho é cuidadoso, detalhista, minucioso e difícil.

aliquamdiu causas actitasse, decessisse anno sexto et quinquagensimo, medium tempus distentum impeditumque qua officiis maximis, qua amicitia principum egisse: tricólon crescente, cuja última parte é um bicólon. Ademais, a posição do verbo em cada parte chama atenção: última, primeira, última. Tal estrutura de variação de posicionamento dos sintagmas se repete ao longo do texto e proporciona uma leitura menos mecânica e monótona. Além do tamanho de cada cólon, aparentemente há uma evolução do tempo, em anos, roubado por cada situação.

qua officiis maximis, qua amicitia principum: bicólon crescente. A dualidade não se faz entender se observadas apenas as funções e posições sociais durante o regime imperial nos tempos de Plínio, o Velho, uma vez que os cargos mais elevados estariam ligados diretamente à escolha do imperador. A dualidade se justifica, porém, nos tempos de Plínio, o Jovem, e, principalmente, sobre o próprio epistológrafo, que trilhou o cursus honorum mesmo sendo contra Domiciano, imperador quando Plínio ocupou os cargos de questor e pretor. A carreira política do tio é ignota – apenas sua carreira militar é normalmente discutida – e, ao que se pode afirmar, medíocre para um equestre protegido por senadores influentes. Deve-se atentar também para o plural principum, uma vez que a carreira de Plínio, o Velho, deu-se basicamente durante o governo de Vespasiano, já que teria sido contrário a Nero – ou pelo menos assim é necessário que fosse aceito para que o sobrinho se estabelecesse politicamente. Logo, o plural principum justifica-se quando aplicado a Plínio, o Jovem, cuja carreira política se desenvolveu sob Domiciano, Nerva e Trajano.

acre ingenium, incredibile studium, summa vigilantia: tricólon crescente.

Lucubrare: ação feita à luz de fogo durante a noite ou em algum lugar escuro (cf. Ernout; Meillet, 1994, p. 373). Verbo inusual.

Vulcanalibus: as Vulcanálias eram festividades ocorridas por volta do dia 23 de agosto, em homenagem ao deus do fogo, Vulcano. Fogueiras de variados tamanhos eram acessas desde o início da madrugada para que sacrifícios fossem feitos. Começa aqui uma dualidade apresentada na carta, a rotina durante o verão e a rotina durante o inverno – as Vulcanálias aconteciam durante o alto verão do hemisfério norte.

hieme vero ab hora septima vel, cum tardissime, octaua, saepe sexta: uma sequência acrônica. Provavelmente Plínio assim dispõe porque o pôr e o nascer do sol não são precisamente no mesmo horário durante toda a estação, levando a uma variação do despertar (cf. Sherwin-White, 1968, p. 223). Essa prática não corresponde a outras rotinas descritas nas cartas, principalmente à de Espurina, (carta III.1), que acordava nas últimas horas da madrugada, entre 4 e 6 horas. A prática parece ser até mesmo não saudável e extremamente improvável.

sane somni paratissimi (…) ipsa studia instantis et deserentis: a repetição da sibilante S denota uma aliteração poética, mimetizando o som da respiração ao dormir.

sane somni: Plínio, o Velho, era asmático e roncava alto. Com frequência, caía profundamente num sono rápido e acordava pouco tempo depois. (cf. carta VI.16)

Ante lucem: todas as marcações até aqui são relativas a períodos da madrugada. Os períodos diurnos são marcados pelas refeições; os noturnos, pela ausência de luz.

ad delegatum sibi officium: da forma que se coloca, alguém poderia dizer, sem estar errado, que Plínio, o Velho, indicava a si mesmo para cargos, tamanha sua influência no conselho de Vespasiano.

Post cibum: aqui começam as marcações temporais diurnas. Como dito anteriormente, para tais marcações, as refeições são os marcos.

leuem et facilem ueterum more sumebat: comer pouco e sem muita gordura, muitas vezes ao dia, era (e ainda é) uma prática considerada saudável, um costume que vinha de gerações anteriores. Como esperado para um romano, Plínio atribui aos costumes antigos uma correção maior do que a prática de sua geração.

Aestate: a carta começa no verão, em agosto, passa para o inverno, e volta para o verão. Em seguida tornará ao inverno. Esse movimento de passagem de estações emula o passar dos anos, indicando que esse era um costume regular durante boa parte da vida de seu tio.

iacebat in sole: elisão do pronome reflexivo sese, pois certamente ele não era arremessado por alguém. Metáfora que remete à oralidade do gênero epistolográfico. Ademais, a prática de pegar sol em determinadas horas do dia era (e ainda é) considerada saudável.

liber legebatur, adnotabat excerpebatque: além de um tricólon crescente, a ordem das ações é digna de comentário. A prática de ler privadamente – que, para os patrícios romanos, significa ouvir um escravo especializado em leitura (os mais ricos possuíam escravos especializados em cada gênero, caso do próprio Plínio, o Jovem) – com frequência era também acompanhada de anotação de comentários, sendo um escravo destacado para isso. Além disso, Plínio, o Velho, tinha a prática de fichar obras, copiando excertos específicos para facilitar consultas posteriores. A prática nunca deixou de ser regular entre estudiosos em geral.

dicere etiam solebat nullum esse librum tam malum ut non aliqua parte prodesset: uma afirmação frequente em outras obras (H.N. XXVII.9 e provavelmente Varrão, nas Satirae Menipeae 241). Plínio, o Jovem, repete a estratégia de não fazer juízo de valores de autores e obras, evitando indicar o que seria bom ou ruim (cf. carta VII.9 e VII.13, entre outras).

Post solem: o sol se põe por volta das 19 horas durante o verão, e das 17 durante o inverno em Roma.

gustabat: a gustatio se refere ao primeiro prato de uma refeição completa. O verbo indica a ação de comer um pequeno prato, suficiente para manter as funções físicas durante o dia, mas sem exageros.

dormiebatque minimum: sesta. A prática de dormir várias vezes ao longo do dia por curtos períodos pode estar ligada ao costume de acordar no meio da madrugada. Dormir após as refeições certamente era a prática mais comum.

in cenae tempus: a ceia era a última refeição do dia, o que num dia comum era entre 18 e 20 horas. Isso vai contra a crença de que o tio acordava por volta de meia-noite, uma vez que não haveria tempo hábil para dormir – salvo se, tendo dormido várias vezes durante o dia, ele não dormisse profundamente à noite.

Memini quendam ex amicis: excerto solto, uma lembrança (verbo memini, lembrar-se) intempestiva durante uma conversa informal. Além de um exemplum, essa passagem apresenta um cenário informal de um diálogo amigável e presencial, quebrando a ideia de um texto literário, como em verdade é.

quendam ex amicis: provavelmente a narrativa é uma ficção meramente expletiva, que tem como objetivo primário estabelecer um traço profundo, e até exagerado, da personalidade do tio, o perfeccionismo.

lector: leitores profissionais, normalmente escravos, eram comuns, pois a leitura de gêneros específicos, principalmente poéticos, requeria muito trabalho e estudo. Em geral, os leitores profissionais mais qualificados liam apenas um único gênero, dando-lhe destaque na estrutura métrica e tonicidade correta.

perperam: advérbio advindo de neologismo de perperus (vicioso); quando aplicado a leitura ou pronúncia, trata-se do que atualmente se chama na Academia de silabada, pequenas incorreções sobre a quantidade ou tonicidades das sílabas, quebrando o ritmo planejado pelo poeta ou prosista.

Surgebat aestate a cena luce: após a narrativa intempestiva, Plínio, o Jovem, volta ao tema anterior de forma abrupta, tal qual uma conversa informal.

aestate a cena luce, hieme intra primam noctis: ou seja, o horário da ceia era por volta de 18 horas e não variava conforme a presença ou ausência de luz.

inter medios labores urbisque fremitum: durante as horas mais quentes e mais frias do dia, não havia atividade no Senado, salvo em casos excepcionais. Ademais, durante o auge do verão, por conta do calor elevado, e auge do inverno, por conta do frio, as atividades políticas e jurídicas oficiais eram interrompidas, pois os senadores deixavam Roma e iam para suas vilas.

cum dico balinei, de interioribus loquor: estrutura oral que mantém o caráter informal e conversacional, marcada pelos comentários óbvios e repetitivos. Aqui Plínio, o Jovem, deixa claro que o tio frequentava banhos privados, não os públicos, o que já era esperado, de forma a ter silêncio e espaço para seus escravos, pelo menos 3 – um para ler, um para anotar, um para limpá-lo. Não há indicação da posse de banhos, mas provavelmente seria do próprio Plínio, o Velho, ou de algum protetor.

destringitur tergiturque: o processo de banho romano se dava por passar óleo na pele e em seguida retirá-lo com tipos de ganchos chamados de strigilis (almofaça, na tradição vernácula), com os quais a pele era esfregada para retirada de todo o óleo aplicado. Além disso, normalmente os banhos se assemelhavam às piscinas hodiernas, com escadas de entrada, o que favorecia o relaxamento, principalmente no caso de um banho quente (chamas eram acessas embaixo do piso para aquecimento da água).

audiebat aliquid aut dictabat: como descrito anteriormente, a prática de Plínio, o Velho, era de ditar notas ou pedir que fosse transcrita alguma parte enquanto ouvia uma obra. Logo, a conjunção de alternância aut atua, na verdade, como a aditiva et.

quasi solutus ceteris curis huic uni uacabat: a imagem de um homem demasiadamente dedicado e ocupado, que não se permitia tempo ocioso, é pintada com tons exagerados de alguém que sai de uma atividade e, mesmo durante o traslado de um ponto a outro, dedica-se totalmente à única coisa que importa: erudição. Como Plínio, o Velho, não é reconhecido pela atuação política ou jurídica, a una cura é a aplicação à erudição.

ad latus notarius cum libro et pugillaribus, cuius manus hieme manicis muniebantur, ut ne caeli quidem asperitas ullum studii tempus eriperet: o cenário aqui construído é fundamental para o leitor moderno entender o processo de leitura e de composição na Roma Antiga: Plínio, o Velho, cercado de escravos, um deles que toma notas, segurando tabuinhas utilizadas como rascunho, além de rolos de papiros, preparado para escrever faça chuva, faça sol. Sem dúvidas escravos leitores também acompanhariam seu senhor.

notarius: palavra incomum na literatura latina, mas que, por sua construção (nota+rius), de significado óbvio, designa aquele que toma nota, um escrivão. Por ser um tomador de nota, normalmente está ligado a alguém que conhece e utiliza muitas siglas e abreviações, um estenógrafo.

pugillaribus: tabuinha de rascunho, normalmente feita com uma estrutura de madeira (ocasionalmente de osso ou metal), preenchida de cera. O formato lembra muito o de um tablet moderno, sendo a estrutura de plástico a parte de madeira, e a tela, a cera.

manus hieme manicis muniebantur: a aliteração do M marca um ouvido treinado. As motivações podem ser várias, mas a construção não é ao acaso: a utilização metonímica de inverno como frio; manicis normalmente referido a luvas com fins específicos; maniebantur é um verbo de circulação semântica militar, utilizado metaforicamente. Pode-se cogitar o som emitido durante o frio por seres humanos.

caeli quidem asperitas: metáfora que pode tanto fazer referência ao frio do inverno, quanto à chuva, ou seja, às intempéries que poderiam atrapalhar o escrivão.

sella: uma pequena cadeira (sed, de sentar-se, + la, diminutivo), provavelmente coberta, na qual só caberia ele próprio. Como não era uma pessoa de grandes posses, não se trataria de uma liteira, na qual até mais de uma pessoa poderia ser carregada.

Repeto me correptum ab eo cur ambularem: “poteras” inquit “has horas non perdere.” Nam perire omne tempus arbitrabatur quod studiis non impenderetur: outra quebra narrativa com a introdução de uma lembrança da infância do epistológrafo.

“hās hōrās nōn pērděrĕ”: a bronca que Plínio, o Jovem, descreve é bem-feita e poética: uma sequência de dois espondeus, encerrando num dáctilo. Por ser um momento destacado, uma citação direta, certamente a leitura rítmica favoreceria o destaque da fala do tio.

ista uolumina: Plínio se refere aqui a todas as obras citadas anteriormente. A utilização do pronome ista se deve a uma referência próxima, como se a carta apontasse a um conjunto que teria apresentado e estaria visível a seu interlocutor.

peregit: a escolha vocabular é digna de nota. Peragere transita com mais frequência em circulações temáticas jurídicas, mas que indica em qualquer contexto uma ação com afinco em busca de completar algo. Assim, as obras de Plínio, o Velho, são frutos de uma aplicação máxima e ininterrupta em busca de produção intelectual.

electorumque commentarios centum sexaginta: comentários e resumos eram frequentes durante o período imperial e sua comercialização era comum. Como já descrito nas cartas, Plínio, o Velho, costumava fazer comentários de todos os livros que lia.

opisthographos: termo grego que significa “escrito na frente e atrás”. Isso nos indica que Plínio, o Velho, utilizava todo o papiro, quer como economia de material – o que é difícil de acreditar –, quer para garantir mais conteúdo num mesmo volume.

minutissimis scriptos: além de frente e verso, as letras eram reduzidas o máximo o possível para caber mais texto num mesmo papiro. Por óbvio, essa era uma prática individual e não comercial, o que aumentava o valor inerente de cada volume original. Daí a necessidade de especialistas na escrita e na leitura de papiros, pois ocasionalmente deveriam ler e produzir obras com letras pequenas, abuso de abreviações e siglas, leitura frente e verso num rolo, sem necessariamente seguir um padrão de colunas.

procuraret in Hispania: mesmo quando se referindo ao exercício de um cargo político, o epistológrafo não nomeia ou aponta o cargo, apenas indica a função através de um verbo. Isso nos leva a crer que a carreira política de Plínio, o Velho, foi insignificante.

Larcio Licino: famoso advogado e professor de retórica durante os tempos de Nero. Durante o período apontado na carta, Lárcio era governador da Hispania Tarraconense.

tunc aliquanto pauciores: a carta nos informa que a prática de fichar e comentar livros não parou. Muito se discute até que ponto Plínio, o Velho, teria ido realmente salvar amigos na erupção do Vesúvio, ou se ele aproveitou a situação para descrever minuciosamente a erupção e seus efeitos diretos logo após o acontecimento, servindo de testemunha ocular.

Nonne uidetur tibi recordanti quantum legerit, quantum scripserit, nec in officiis ullis nec in amicitia principis fuisse, rursus, cum audis quid studiis laboris impenderit, nec scripsisse satis nec legisse: esse excerto marca a volta a um estilo formal e comum à escrita, marcado pela hipertaxe e quebras dos períodos com subordinações. Além disso, é marcado por uma série de perguntas retóricas que, de certa forma, são opostas em suas respostas, levando o leitor a crer numa extraordinária vida, algo fora do comum e impossível de entender.

officiis ullis: no começo da carta, o termo utilizado foi maximis officiis. A troca de maximus por ullus, ou seja, de “o mais elevado” para “qualquer um” – ullus se refere a uma quantidade mínima existente de algo –, é evidente após uma descrição da rotina e das obras escritas e sem referência direta a nenhum cargo exercido por Plínio, o Velho.

illae occupationes: o termo occupationes, ocupações ou atividades que consomem algum tempo, parece ser mais propício às atividades político-sociais de Plínio, o Velho. Nesse caso, o epistológrafo usou o termo para nomear todos os afazeres apontados pelos imperadores.

Itaque soleo ridere cum me quidam studiosum uocant: como em quase todas as cartas, Plínio, o Jovem, fala de si e atribui a si grandes e pontuais elogios através de uma suposta fala de terceiros. Além de um funcionamento poético e uma orquestração bem desenhada, a coleção epistolar pliniana é um grande panegírico a si.

Ego autem tantum, quem partim publica, partim amicorum officia distringunt: com uma falsa modéstia, o epistológrafo indica que, enquanto o tio exerceu as mais altas atividades, ele teria ocupado alguns cargos públicos; enquanto o tio esteve na corte e no bem querer de imperadores, ele mesmo só teve atividades em círculos de amigos. Porém, para o leitor e o ouvinte primários da obra, o conhecimento da carreira política de Plínio, o Jovem, era amplo, pois já teria ocupado todos os grandes cargos do cursus honorum – principalmente se lembrarmos que as cartas foram publicadas após seu consulado em 100 EC. Como, em verdade, seu tio não ocupou cargos relevantes, tanto ele chama atenção para si, quanto enfeita a carreira simples do tio.

ex istis: ao contrário do uso anterior de um pronome de mesma sorte, meramente dêitico, neste trecho o uso de istis é retórico, rebaixando as pessoas às quais ele se refere.

somno et inertiae: coincidentemente, uma vida parada, apenas ouvindo e ditando, costumeiramente dormindo durante o processo era a vida de Plínio, o Velho, durante a fase adulta e a velhice. De qualquer forma, a erudição não é contraposta à vida militar ou política, que poderiam afastar alguém dos estudos, mas, em verdade, repele os preguiçosos. Isso se vê durante a coleção epistolar, nas cartas que Plínio manda a comandantes militares em serviço longe de Roma, a políticos no exercício de cargos importantes, recomendando leituras e exercícios.

Extendi epistulam: final comum às cartas nas quais Plínio, o Jovem, explora uma circulação temática aparentemente objetiva e óbvia, que serve apenas de porta de entrada para qualquer tema que o epistológrafo quiser. O limite das cartas não é necessariamente o cumprimento de um pedido, mas deve refletir como o conteúdo atinge diretamente o autor epistolográfico, bem como sua relação com o destinatário da carta.

confido tamen haec quoque tibi non minus grata (...) quae te non tantum ad legendos eos, uerum etiam ad simile aliquid elaborandum possunt aemulationis stimulis excitare: aqui o epistológrafo aponta que é fundamental para um erudito não apenas saber o nome das obras e em que ordem foram publicadas, mas também conhecer o autor e sua vida. Se o leitor da carta quiser ser um erudito, deve não somente conhecer suas obras, mas seguir o exemplo de Plínio, o Velho. De mesma sorte, o emissor da carta se coloca indiretamente na posição para receber os louros da erudição do tio por herança, tanto das obras, quanto da postura, da educação e da aplicação.

Referências

ERNOUT, Alfred; MEILLET, Antoine. Dictionnaire étymologique de la langue latine : histoire des mots. 4. ed. Augmentée d’additions et de corrections nouvelles par Jacques André. Paris : Éditions Klincksieck, 1994.

GAMBERINI, Federico. Stylistic Theory and Practice in The Younger Pliny. Hildesheim: Olms & Weidmann, 1983.

GIBSON, Roy; MORELLO, Ruth. Reading the Letters of Pliny the Younger. Cambridge: Cambridge University Press, 2015.

HENDERSON, John. Pliny’s Statue: the letters self-portraiture and Classical Art. Exeter: University of Exeter Press, 2002.

MARCHESI, Ilaria. The Art of Pliny’s Letters. Cambridge: Cambridge University Press, 2008.

MARCHESI, Ilaria (ed.). Pliny, the book-maker: betting on posterity in the epistles. Oxford: Oxford University Press, 2015.

PICONE, Giusto. L’eloquenza di Plinio. Palermo: Palumbo Editore, 1977.

PLINE, Le Jeune. Lettres. Tome I, II, III. Texte établi par Hubert Zehnacker. Paris: Les Belles Lettres, 2009.

SHERWIN-WHITE, Adrian Nicolas. The letters of Pliny. Reprinted. Oxford: Clarendon Press, 1968.

WHITTON, Christopher (ed.). Pliny The younger Epistles, book II. Cambridge Greek and Latin Classics. Cambridge: Cambridge University Press, 2013.

Notas

1 Adotamos aqui o termo “publicizada” para marcar diferença entre cartas sabidamente publicadas e trabalhadas com tal objetivo, como as de Plínio, o Jovem, e outras que foram coletadas e tornadas públicas de maneiras diversas, como as de Cornélia, mãe dos Graco, e as de Cícero.
2 Picone defende como base do estilo pliniano a ubertas, ou seja, a grandeza e a magnificência retórica e poética; e a uarietas, ou seja, uma muito frequente variação semântica, sintática e temas. (cf. Picone, 1977, p. 91)
3 Gamberini explora em sua tese publicada em 1983 os diferentes estilos das cartas de Plínio, propondo uma divisão em três grandes grupos (chamados de tipo I, cartas promovidas por motivos político-sociais; tipo II, cartas promovidas por motivos pessoais; e tipo III, cartas promovidas por motivos retóricos), que se subdividem em vários subgrupos, como cartas de recomendação, de apresentação, de luto, morais, de louvor etc. Para cada tipo, o autor italiano explora as diferenças de usos de figuras de linguagem, ferramentas retóricas e usos poéticos de estruturas, explanando as diferentes construções a partir das mesmas ferramentas, apenas em bases diferentes.
4 Cf. Sherwin-White (1968, p. 216).
5 Sermoaqui entendido como um dialeto social ou regional específico. As cartas de Cícero, por exemplo, são escritas no sermo urbanus, o dialeto falado pelos patrícios mais bem educados em Roma. Plínio apresenta não só o sermo urbanus, como o sermo classicus, e estruturas de linguagem relativas a diversos gêneros textuais, como história, discursos forenses, emulação de alguns gêneros da poesia, dentre os quais, o mais evidente é a poesia épica.
6 Lê-se no original “iguais talento e cuidados” (pari ingenio curaque).
7 Lê-se no original “pelo qual foi singularmente amado” (a quo singulariter amatus). Na estrutura original, a posição de destaque é do tio, como esperado, por isso a inversão na voz passiva.
8 Lê-se no original “os estudiosos” ou “os aplicados”. Studiosi é um adjetivo no nominativo, plural, masculino, incomum para nome de uma obra. Como a obra é considerada um tipo de Institutio Oratoria, ou seja, uma obra pedagógica para estudantes de retórica, consideramos “para ser um erudito” a melhor opção.
9 Lê-se no original “os discursos dúbios” ou “os discursos adversos”. Como a obra é sobre correção gramatical e desenvolvimento de gêneros discursivos, optamos por “os discursos complexos”.
10 Lê-se no original “na sétima hora, quando muito tarde na oitava, com frequência na sexta”. A referência é à hora sem luz, hora da noite. Durante o inverno, a primeira hora da noite era por volta das 17 horas na marcação atual, assim, a primeira hora seria 18 horas e assim por diante.
11 Traduzimos como refeição matinal para indicar o horário da refeição, entre 9 e 10 horas da manhã.
12 Lê-se no original: “recordo de ser corrigido por ele porque estaria andando, ele disse: ‘não poderias perder estas horas!’”.
13 Não se lê esse adjetivo no original, colocado por conta da utilização retórica de iste, apontando desmerecimento, o que se justifica conforme contexto.
14 Lê-se no original “as quais podem te levar a não apenas os ler, mas a compor algo semelhante, por um estímulo de imitação”.
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