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Retorno, trauma, palavra: Lícofron, Freud e os extremos da linguagem

Return, trauma, word: Lycophron, Freud and the extremes of language

Pedro Fernandez de Souza
Universidade Federal de São Carlos, Brasil

Retorno, trauma, palavra: Lícofron, Freud e os extremos da linguagem

Classica - Revista Brasileira de Estudos Clássicos, vol. 35, núm. 1, pp. 1-14, 2022

Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos

Recepción: 17 Mayo 2021

Aprobación: 05 Septiembre 2021

Resumo: Neste artigo, buscamos estudar a ocorrência do termo νόστος no poema Alexandra, de Lícofron. Numa primeira mirada, o poema parece povoado pelos vários retornos dos gregos, terminada a guerra em Troia; olhando-o mais de perto, porém, descobre-se que o Alexandra entretece, antes, os seus não-retornos, visto que sempre o naufrágio ou a catástrofe acomete os retornantes helenos. O motivo dessa reversão, achamo-lo na sina da própria narradora do poema, Alexandra-Cassandra: tendo sido estuprada por Ájax, teve seu ultraje vingado por Atena, em cujo templo a violência foi perpetrada. Assim, a agressão sofrida por Cassandra reverbera no futuro, causando a ruína de muitos gregos. Fazendo um pequeno desvio em nossa rota, encontramos em Freud, na sua descrição do trauma, o retorno de uma situação irreversível e disruptiva, que reverbera no futuro: o sujeito traumatizado é compelido a retornar repetidamente à situação traumática. Trata-se de um esquema similar ao da narrativa de Lícofron, mas, se em Freud a repetição se opera previamente à palavra, no poema helenístico o que se tem é uma pletora quase incompreensível de palavras (as profecias de Cassandra). Estaríamos, assim, entre dois extremos da linguagem – entre eles, o trauma, a sina, e o retorno impossível à coisa que nos obriga a dizer qualquer coisa.

Palavras-chave: retorno, trauma, repetição, Freud, palavra.

Abstract: In this article, we seek to study the occurrence of the word νόστος at the Lycophron’s poem Alexandra. At first glance, the poem seems populated by the various returns of the Greeks, after the war in Troy ended; looking at it more closely, however, one finds out that the Alexandra interweaves rather their non-returns since it is always a shipwreck or a catastrophe that awaits the Hellene returnees. One finds the motive of such reversal in the fate of the poem’s own narrator, Alexandra-Cassandra: having been raped by Ajax, she had her outrage revenged by Athene, in whose temple the violence was perpetrated. Thereby the aggression suffered by Cassandra reverberates into the future, causing the ruin of many Greeks. Taking a small detour on our route, we find in Freud, in his description of trauma, the return of a disruptive and irreversible situation, which reverberates into the future: he who is traumatized is compelled to return repeatedly to the traumatic situation. It is a scheme similar to that of Lycophron’s narrative, but, if in Freud repetition is operated before the words, in the Hellenistic poem what we have is an almost incomprehensible plethora of words (Cassandra’s prophecies). Thus, we would be between two extremes of language – between them, the trauma, the fate, and the impossible return to the thing that forces us to say anything.

Keywords: return, trauma, repetition, Freud, word.

Canonicamente estabelecido, o νόστος é tema central de inúmeras narrativas clássicas (e de inúmeros escólios e comentários a respeito delas). O privilégio de incipit dessa tradição, sabe-se bem, cabe ao retorno homérico de Odisseu ao lar heleno. Esse mesmo regresso, entretanto, também faz parte de outros textos da antiguidade; dentre eles, o Alexandra, de Lícofron.1 O “poema obscuro”, como ficou conhecido a partir da caracterização da Suda, é altamente singular no que concerne à narração das retornanças: nele Cassandra (ou Alexandra) vaticina as vicissitudes de Troia, sua cidade natal, e profetiza o que caberá aos heróis gregos, “cujos destinos encruzados se desatam como uma longa serpente” (Lanzara, 1997, p. 85).2Alexandra, assim, é um poema não do νόστος, mas de νόστοι: nele se desenrolam, um trás o outro, os retornos dos heróis gregos após a vitória nas terras ilíacas.

Os “terríveis retornos dos gregos” (Fusillo, 1984, p. 519) ocupam mais da metade do poema (v. 373-1123), e a profetisa, que assume patente posição contrária aos encômios dos heróis helenos, foca suas intricadas palavras mânticas mais nas agruras gregas do que em sua gravidade ou graça. De fato, talvez devamos modificar nossa caracterização do poema de Lícofron: nele não se descrevem os retornos dos heróis, mas sim seus não-retornos. Mesmo aqueles bem-sucedidos na empreitada, como Agamêmnon e Odisseu, só recebem como boas-vindas a catástrofe e a traição. O destino comum dos gregos, nessa intrigante narrativa poética, é o jamais retornar ao seu ponto de origem. Nisso o texto é bem claro; em dois momentos o termo νόστος faz presença, e em ambos é de sua negação que se trata:



ἂλλην δ’ ἐπ’ ἄλλῃ κῆρα κινήσει θεός,
λυγρὴν πρὸ νόστου συμφορὰν δωρούμενος (v. 909-10)

E o deus há de mover desgraças sucessivas,
oferecendo-lhes revés, e não a volta.3

Aqui é o revés, a desgraça (συμφορά) o que é dado pelo deus em vez do retorno (πρὸ νόστου). É interessante notar que, no verso, desgraça e retorno fazem par (πρὸ νόστου συμφορὰν), como se uma coisa se reportasse ou se seguisse à outra. Não por coincidência, é também a desgraça grega o que está em jogo nos outros versos em que νόστος se encontra grafado:



καὶ τοὺς μὲν ἄλγη ποικίλαι τε συμφοραὶ
ἄνοστον αἰάζοντας ἕξουσιν τύχην,
ἐμῶν ἕκατι δυσγάμων ῥυσταγμάτων (v. 1087-9)

Acídulo arco-íris de agonia há
de impor-se a lacrimosos de uma sina sem
retorno pelo estupro de minhas desnúpcias.

E novamente das desgraças (συμφοραί) se segue o não-retorno, dessa vez no adjetivo “sem retorno” (ἄνοστος), com a quebra de verso parecendo indicar tanto a separação quanto a ligação entre as palavras em questão. O que esses excertos nos mostram, portanto, é que não é de retorno propriamente dito que se trata, mas sim da sua impossibilidade, da sua transfiguração em uma sucessão de desgraças, tormentas e infortúnios que se abaterão sobre os gregos. Estes desejam voltar aos lares pátrios; o que o deus faz, porém, é dar-lhes uma sina, um acaso, um golpe (τύχη – recordemos a origem desse vocábulo fundamental, oriundo do radical aoristo do verbo τυγχάνω, que significa não só “encontrar”, “conseguir”, mas também “golpear”) sem retorno (ἄνοστος). Ora, aqui o adjetivo, formado com o alfa privativo e o substantivo canônico, não vem sem ambiguidade: que sina é essa que não tem retorno? Trata-se do mero fracasso ao retornar à casa? Ou podemos dizer, por outro lado, que o golpe dado pelos gregos reverbera no futuro, sendo porém um ponto a partir do qual não há retorno? Esse golpe, então, seria um evento disruptivo, um acontecimento irreversível que mudaria irreversivelmente a rota dos sujeitos envolvidos.

Deixemos anotado, desde já, que tais desventuras lhes são impostas tendo como causa precipitadora ou evento flagrante (ἕκατι) o estupro sofrido pela profetisa. Tudo indica ser o retorno fracassado dos gregos, a sua sina anóstica, em parte consequência dessa τύχη terrível sofrida por Cassandra. Tudo indica que esse evento irreversível é um divisor de águas, um golpe a partir do qual o retorno dos gregos se transforma em sua impossibilidade ou em seu reverso. Nós retornaremos a esse ponto.

* * *

Quando Freud diagnostica a ocorrência pregressa de um evento disruptivo ou irreversível na vida do indivíduo, é precisamente de retorno que se trata. Referimo-nos ao conceito de trauma, cujo estatuto dentro da teoria psicanalítica não é simples e fornece matéria para comentários infindos. Como se sabe, em sua primeira teoria nosográfica, Freud dissera haver sempre, na origem dos sintomas neuróticos, um trauma (de cunho sexual) – donde a alcunha “teoria da sedução” para essa primeira construção teórica, pré-psicanalítica: todo neurótico teria sofrido violações sexuais (ou no mínimo tentativas delas) na infância. Mais tarde, na alvorada do século XX, Freud alterará sua concepção, erigindo então a chamada “teoria da fantasia”, em que o trauma não é mais causa suficiente nem necessária para o adoecimento dos indivíduos.4

Na fundação da psicanálise propriamente dita, o trauma, que na teoria da sedução era peça central na etiologia das neuroses, passa a ser personagem secundário do palco dos conceitos freudianos. Secundário, porém não de todo inexistente: com efeito, em diversas passagens da letra freudiana o trauma fará ainda aparição, e não das menos importantes. Não nos alongaremos nessa complexa posição do conceito, mas nos ateremos àquela sua característica que mais nos importa: a compulsão, que o trauma implica, ao retorno.

Desde a fundação da psicanálise, a interpretação dos sonhos se constituiu como a via régia para o acesso ao inconsciente; ademais, a destrinça do tecido onírico revelou o que para Freud é a forma mais basal de funcionamento do aparelho psíquico. “O sonho é a realização (disfarçada) de um desejo (suprimido, reprimido)” (Freud, 1900, p. 166), tal a definição canônica e que será mantida intacta – à exceção de um caso muito específico. Trata-se do trauma, como já adiantamos. Propalando-se por conta da primeira grande guerra, a chamada neurose traumática traz à tona fenômenos que contrariam a definição recém-citada: em vez de realizar desejos, os sonhos dos neuróticos de guerra repetiam incessantemente as situações traumáticas das quais os indivíduos desejariam se esquecer. A esse respeito, diz Freud em 1920: “A vida onírica da neurose traumática mostra então o caráter de que ela sempre reconduz [zurückführt] o doente de volta [wieder] à situação do seu acidente [Unfall], do qual ele acorda com susto renovado” (Freud, 1920, p. 10).

Unfall é não somente “acidente”, mas também “desgraça”, “desastre”, ou seja, ele é τύχη e συμφορά. Ao sonhar, o enfermo é forçado a retornar uma vez mais a essa desgraça pregressa. Três anos antes, essa característica marcante do trauma já havia sido sublinhada por Freud:

As neuroses traumáticas dão claros indícios de que são baseadas numa fixação ao momento do acidente [Unfall] traumático. Em seus sonhos, esses enfermos repetem [wiederholen] regularmente a situação traumática; quando ocorrem ataques [Anfällen] histeriformes [...], deduz-se que o ataque equivale a um deslocamento [Versetzung] total a essa situação. (Freud, 1917, p. 284)

Ora, aqui o infortúnio, o acaso nocivo [Unfall] é repetido, no futuro, num acesso ou ataque [Anfall] histeriforme, isto é, numa súbita aparição, no corpo do sujeito, das consequências do trauma. Nesse caso, ele é deslocado, transferido, reconduzido à situação penosa de forma total. “É como se esses enfermos não houvessem acabado com a situação traumática, como se ela se mantivesse, perante eles, ainda como uma tarefa atual e inexpugnada” (Freud, 1917, p. 284).

Por esses excertos, já temos em mãos dois dos aspectos da situação traumática com que trabalharemos: sua caracterização como uma tarefa inacabada, e sua ímpar relação com o tempo.

Qual a tarefa premente que a repetição do trauma sinaliza? Anular sua potência patogênica; mas como? Freud pressupõe, em 1920, que o organismo esteja equipado com uma “proteção contra estímulos”, uma espécie de escudo que filtre, selecione e amaine a energia que incide sobre o tecido sensorial do organismo. Quando essa energia é excessiva, porém, a barreira não é capaz de exercer sua função. “Tais estímulos de fora, que são suficientemente fortes para romper a proteção contra estímulos, chamemo-los traumáticos” (Freud, 1920, p. 29). O trauma, assim, provoca uma grave perturbação na economia energética do organismo, instando-o a lidar reiteradamente com o evento disruptivo. Com o trauma, “não se pode mais impedir a inundação [Überschwemmung] do aparelho psíquico com grandes quantidades de estímulos”; o que isso acarreta? A existência da “tarefa de dominar o estímulo, de ligar psiquicamente as quantidades de estímulo que irromperam, para levá-las então à sua tramitação” (Freud, 1920, p.29). Tal a razão para que os sonhos dos neuróticos de guerra não realizem desejos: antes de executar essa sua função, seu aparelho anímico está lidando com uma tarefa anterior, a de vincular a energia excessiva. Como diz Monzani (1989), Freud está aqui postulando uma “atividade originária, primordial, que é a atividade de vinculação, de ligação (Bindung) da excitação invasora que se manifesta como energia livremente móvel, para posteriormente ser possível, por exemplo, descarregá-la adequadamente” (p. 162).

Até que essa ligação seja efetuada, o enfermo será reconduzido inúmeras vezes de volta ao trauma. Deu-se uma inundação de energia exterior em seu organismo, e a palavra usada por Freud é Überschwemmung, que contém o prefixo über- (sobre, super), indicativo manifesto de excesso. Trata-se de um alagamento, de uma inundação, de uma afluência excessiva de energia, que paralisa o organismo e não lhe permite de início escapar do evento em questão. O acidente danoso, então, é repetidas e repetidas vezes vivenciado no sonho, e o que era passado se reapresenta, no presente, sem alteração alguma.

Esse retorno do passado no presente já havia sido asseverado por Freud em 1896, ainda na teoria da sedução. Já aí o efeito do trauma é dito nachträglich (atrasado, retroativo, posterior): “os traumas infantis surtem efeito retroativamente [nachträglich], como vivências frescas” (Freud, 1896, p. 284, nota de rodapé). Quarenta e dois anos depois, em seu texto de velhice sobre “o homem Moisés”, Freud retorna ao tema do trauma e diz coisas similares a esse respeito; supõe-se, no texto, um homem que passou por um acidente de trânsito e que, dias ou semanas depois, desenvolve sintomas (paralisias, ataques, insônia etc.). “Chama-se o tempo que decorreu entre o acidente [Unfall] e a primeira aparição do sintoma de ‘período de incubação’, numa clara alusão à patologia das doenças infecciosas” (Freud, 1938, p. 171). Tem-se, dessa forma, um acontecimento único, cujo efeito é postergado – somente no futuro sua eficácia se tornará manifesta, e, ademais, suas consequências poderão ser da ordem do múltiplo. Não à toa, nós vimos Freud dizer: um acidente (Unfall) se repercute em ataques (Anfälle). O trauma se prolifera, seus rebentos são multíplices, seus efeitos são dilatados.

Tal o estatuto do trauma na teorização freudiana: um fenômeno ímpar, da ordem do singular, que desorganiza o organismo, causando uma espécie de furo na continuidade temporal da sua vida; o indivíduo será reconduzido a essa mesma situação, sobremodo penosa, tantas vezes quantas forem necessárias para que sua energia excessiva seja vinculada. Em Freud, trauma e retorno caminham juntos: no trauma, a força da coisa é excessivamente intensa, e o sujeito nada pode contra ela; tudo o que ele pode fazer é retornar a ela, para sofrer no presente a desgraça passada uma vez mais.

* * *

No muito valioso Dicionário comentado do alemão de Freud, de Hanns (1996), inexiste o verbete “Trauma”. Por quê? Porque é palavra facilmente traduzível: trauma é “trauma” em muitas (quase todas, dir-se-ia) das línguas indo-europeias (português, italiano, catalão, espanhol, francês, inglês, alemão...). O curioso, porém, é que, conquanto se tenha estabelecido com grafia unívoca, a palavra em suas origens não tinha exatamente o mesmo sentido que possui hoje. Advindo do verbo τιτρόσκω (ferir, furar, danificar), τραῦμα significava, originalmente, um “furo” ou “ferimento”. Como assere o Dictionnaire étymologique de la langue grecque, de Chantraine (1999), “a ideia de ferimento em τιτρόσκω reside na ação de ‘furar’”, e complementa: “em grego moderno, ‘ferir’ se diz τραυματίζω” (p. 1122).

Dessa forma, a tradução do “trauma” freudiano para o grego antigo seria não τραῦμα, mas sim συμφορά ou mesmo τύχη. E com isso retornamos ao poema de Lícofron. Nele, nós vimos, os gregos, ao partir de Troia, encontram não o retorno à casa, mas seu oposto: uma miríade de desgraças e reveses. Essa sucessão de catástrofes, porém, nós vimos a narradora profetisa remeter a um ponto específico, o estupro cometido por Ájax lócrio. Como diz Mazzoldi (1997), nesse passo do poema os “protagonistas são Ájax e Cassandra, o estupro é o ponto focal do episódio, a verdadeira substância da impiedade” (p. 12).5 O evento fatídico é narrado nos versos 357-8: a “paloma” é arrastada pelo “bico adunco do falcão” até o “leito do abutre”, e o herói grego comete a vilania junto ao altar de Atena. A estátua da deusa grega, para quem tanto rezara previamente Cassandra, acaba mesmo desviando os olhos para não vislumbrar a flagrante violência. Enfurecida, é a própria deusa que dá nome à mais nobre das póleis gregas que arruinará o destino não só de Ájax, mas de todos os soldados retornantes:



ἑνὸς δὲ λώβης ἁντί, μυρίων τέκνων
Ἑλλὰς στενάξει πᾶσα τοὺς κενοὺς τάφους (v. 365-6)

O ultraje, um só o comete e chora toda a Hélade
sobre o vazio das tumbas de incontáveis filhos.

Ora, aqui temos o mesmo esquema que sublinhamos em Freud: o trauma, evento singular, único, se repercute no futuro, nachträglich, e suas consequências são da ordem do múltiplo. Há, ademais, construção similar à que encontramos a respeito do retorno dos gregos, no verso 910. Ali, lê-se que advirá uma desgraça, no lugar do retorno (πρὸ νόστου συμφορὰν); aqui, no lugar do um que perpetrou o ultraje (ἑνὸς δὲ λώβης ἁντί), é a Grécia inteira que chorará as tumbas vazias (Ἑλλὰς στενάξει πᾶσα τοὺς κενοὺς τάφους) de inumeráveis filhos (μυρίων τέκνων). A imagem dos túmulos vazios é eloquente, e tanto mais fecunda pelo adjetivo empregado: μυρίος, “incontável”, “inumerável”, “infinito”, relativo por sua vez a μυριάς (dez mil), origem do nosso belo substantivo “miríade”. Dez mil filhos, é claro, se tornam incontáveis filhos, infindos filhos que vão sendo abatidos na inacabada viagem do regresso.

Na trama de Cassandra, que se entrama na de todos os gregos vitoriosos, ocorre algo muito similar ao que Caruth (1991) notou na leitura freudiana da história dos hebreus: “centrando sua história na natureza do partir e do retornar, constituída pelo trauma, Freud ressitua a própria possibilidade da história na natureza de uma partida traumática” (p. 185).6 É o trauma, a violência, o ultraje, aquilo que dá início à história a ser narrada. No caso do neurótico de guerra, há a propulsão, há quase que o apelo para que a história se encete: a situação terrível é revivida inúmeras vezes, até que haja aquela ligação energética de que falamos. Nesse primeiro tempo, a palavra falta, e a coisa é excessiva e sobrepujante. No caso de Cassandra, por outro lado, a palavra parece sobrar.

No verso 1087, Cassandra afirma que “desgraças coloridas” (ποικίλαι συμφοραί) assolarão os gregos – e o mesmo adjetivo se poderia aplicar ao seu relato profético e, portanto, ao poema como um todo. Ποικίλος é não apenas “colorido” e “variegado”, mas também “intrincado”, “ambíguo”, “complicado”. Longe de repetir o evento terrível e seus efeitos futuros tais quais eles são, a profetisa os enovela numa narrativa por vezes hermética, a cujas características ainda voltaremos. Por que isso ocorre? Dessa vez, não por conta de um ato sexual forçado, mas sim pela sua negação.

Como fizemos notar, é nos versos 357-8 que a narradora antevê o estupro que irá sofrer. Essa prolepse é precedida por uma analepse complementar: para manter-se intacta e permanecer virgem, emulando Atena, Cassandra havia impedido que Apolo deitasse em seu leito. Isso é narrado nos versos 348-56, ou seja, justamente antes da profecia do estupro, mas a rejeição ao deus do oráculo desponta novamente no poema, bem próximo ao seu desfecho. Cassandra se pergunta, prestes a terminar sua narrativa desconcertante: “por que, infeliz, à pedra surda, à onda muda, aos vales arredios, permito que me escape da bocarra, sem préstimo e sem trégua, o som?” (v. 1451-3). Ela assim continua:



πίστιν γὰρ ἡμῶν Λεψιεὺς ἐνόφισε,
ψευδηγόροις φήμαισιν ἐγχρίσας ἒπη,
καὶ θεσφάτων πρόμαντιν ἀψευδῆ φρόνιν,
λέκτρων στερηθεὶς ὧν ἐκάλχαινεν τυχεῖν (v. 1454-7)

O deus Lepsieu privou-me de ser crível, quando
infundiu-me o rumor mendace das parolas
e a profecia verdadeira dos oráculos,
fora do leito pelo qual empurpurava.

“O deus Lepsieu”, aí, é Apolo, que a espoliou da fiabilidade, do crédito (πίστις), isto é, tornou suas palavras indignas de serem cridas. Como ele fez isso? Infundindo nela a um só tempo a voz capaz de dizer mentiras e a sapiência verdadeira dos oráculos. ἐγχρίω é não só “ungir”, mas também “penetrar”. Apolo penetra em Cassandra, porém não como Ájax; impedido de fazê-lo de modo material, ele faz penetrar nela a maldição que a acossa até sua morte e que fará da sua palavra mântica, o λόγος verdadeiro por excelência, palavra morta. Também aqui há um jogo de palavras feito a partir do alfa privativo: Cassandra é fulminada pelo rancor de Apolo, e nela se infundem a voz capaz de mentir (ψευδηγόρος) e a sabedoria incapaz da mentira (ἀψευδές). Em vez de ter interditado seu dom profético (castigo esperado, em se tratando de uma sacerdotisa apolínea), ela perde algo bem pior, a compreensibilidade ou mesmo a confiabilidade. Cassandra se torna assim destinada a dizer abertamente a verdade, verdade esta que, no entanto, jamais será crida nem tampouco verdadeiramente ouvida. É dessa forma que a “sua identidade vincula-se ao fenômeno da ‘incomunicação’, a tensão psíquica resultante da fala abortada (Vieira, 2015, p. 66). Essa “incomunicação” de Cassandra, entretanto, é manifestada no texto poético através de uma linguagem voluntariamente desorientadora, com cujos artifícios lidaremos em breve.

Antes, façamos notar que a τύχη reaparece nos versos recém-citados: Apolo amaldiçoa sua profetisa ao se ver “privado do leito que aspirava conseguir” (λέκτρων στερηθεὶς ὧν ἐκάλχαινεν τυχεῖν). Ora, Apolo queria colher, golpear (τυχεῖν) o tálamo de Cassandra, mas sua vontade foi denegada. Por conta dessa declinação, isto é, pois que essa τύχη não pôde ser levada a cabo, será o destino de Cassandra narrar a τύχη dos gregos, a sina sem retorno, plena de desgraças e maldições que espelham, no regresso abortado, sua própria sina arruinada. É assim que sua recusa ao deus patrono se espelha na impotência diante do herói inimigo, cujo ultraje singular reverberará na impotência de seus conterrâneos diante da ira da deusa ultrajada. O regresso impossível dos heróis é resultado da irreversibilidade do trauma sofrido por Cassandra, e dessarte retorno e não-retorno andam juntos: é no não-retorno dos heróis que o trauma de Cassandra faz retorno.

* * *

Indubitavelmente, o aspecto que mais chama a atenção no poema de Lícofron é a sua linguagem. A esse respeito, são diversas as suas características que não só assustam o leitor, mas o colocam numa posição específica. Em sua abertura, não é ainda Cassandra quem fala, mas um guarda de seu cárcere, que vem ter com Príamo para relatar-lhe, ipsis litteris e “dos cimos do princípio” (ἀρχῆς ἀπ’ ἄκρας, v. 2), as palavras enigmáticas da sua filha supostamente ensandecida. Em seguida, a voz do guarda reproduz a voz da profetisa, e eis que a surpresa nos golpeia a nós, leitores. Conforme Vieira (2015), a linguagem da obra “é complexíssima e sua sintaxe parece dar vazão a um fluxo delirante” (p. 66). O frenesi de Cassandra é transposto nos versos rigorosamente metrificados, e “deparamo-nos com uma linguagem desconcertante por seu caráter alusivo, pela compactação de episódios mitológicos e pela invenção vocabular que nos faz pensar na literatura experimental do século 20” (p. 66).7

Hutchinson (1988), que não mostra muita afeição aos artifícios de Lícofron, assim resume a linguagem de Alexandra: “retórica extravagante, vivacidade grotesca, erudição impiedosa; tudo combina para criar o distintivo ar de negrume, energia e excesso” (p. 264). Atentemo-nos ao último termo: excesso. De fato, tudo em Alexandra parece tratar de extremos, excessos, cumes e cimos.8 Nele, há um “uso extensivo de perífrases”, que “faz do leitor um decifrador” (Vieira, 2017, p. 16), e há uma “saturação metafórica” (Cusset, 2001, p. 63), onde abundam neologismos e efeitos de polissemia e ambiguidade que, segundo Cusset (2001, p. 61), incessantemente desarmam o leitor, como se numa armadilha linguageira inescapável.

Além de contar com “grande número de adjetivos compostos”, o poema apresenta “palavras originárias de diferentes dialetos do grego antigo e também de outras línguas” (Rocha, 2008, p. 189). Neologismos, aglutinação, arcaísmos, empréstimos de léxicos estrangeiros – tudo colabora para tornar a leitura uma tarefa árdua e quase cerebral. Mas não somente o vocabulário, também a forma do texto concorre para exasperar o leitor. O hipérbato é usado muito amiúde, e as intensivas trocas na ordem das construções frasais parecem refletir-se na sua densa “estratificação temporal” (Fusillo, 1984, p. 511), em que passado, futuro e presente se entremeiam e se entrecruzam de forma brusca e impermanente. Fusillo (1984) identificou no poema também “o procedimento especular da mise en abyme”, particularmente “a profecia na profecia, como um jogo de caixas chinesas” (p. 509), ou seja, procedimento no qual as palavras se abismam em si mesmas e passam a reportar-se a outras palavras, que, no fundo, também se reportam a outras palavras.9

Essa configuração formal e vocabular da obra suscita quase um chamamento, por assim dizer, à interpretação. Muitos dos enigmas que se perfilam permanecem irresolutos e permitem, portanto, um número variado de decodificações. O poema, por conseguinte, “abre de forma clara a porta ao comentário”, pois ele “parece deixar voluntariamente a porta aberta à pluralidade das interpretações. É então a uma espécie de entronização do comentário que se assiste” (Hurst, 2010, p. 414). Não em vão, a propósito de algumas passagens do texto são vários os escólios e comentários que se confrontam, se suportam e se referem. Assim, não somente o poema se baseia em diversos outros textos passados (mitologia, historiografia, e também a tradição literária grega, como Homero e Ésquilo), mas também se revela como um verdadeiro convite aberto para que outros textos futuros venham à luz. Alexandra é um tecido todo linguístico: suas palavras se baseiam em palavras, suas palavras atraem novas palavras.

Um aspecto marcante do Alexandra, e que nos parece ser o mais importante para a nossa análise, é a sua forma peculiar e acentuada de nomear os seus personagens, ou melhor, de não nomeá-los. Como diz Hutchinson (1988), o poema “normalmente evita revelar os nomes dos seus protagonistas diretamente” (p. 258). Qual é a estratégia utilizada pelo autor, então, para denominá-los? Referir-se sistematicamente a eles não pelos seus nomes próprios, mas sim por nomes de animais. Essa, inclusive, uma das principais razões para que o texto se encontre saturado de metáforas: “é em primeiro lugar a multiplicidade das espécies convocadas pela metáfora que provoca a saturação da metáfora. O texto de Lícofron é, a esse respeito, um verdadeiro zoológico imaginário no qual desfilam todos os tipos de animais” (Cusset, 2001, p. 64). Como mostra Cusset (2001, p. 65), a partir do momento em que Cassandra se refere a Héracles como “o leão das três noites”, no verso 32, o “princípio analógico” é posto em marcha, e a “máquina metafórica” não é mais capaz de parar. A cada novo evento, seja ele do passado, seja do futuro, os personagens serão designados com referentes animais diversificados (lobo, cisne, falcão, cão, gaivota, javali, serpente, touro, alcíone, ouriço, pomba...), e o leitor, para compreender de quem se trata, terá que ler muito bem o contexto como um todo e se atentar a outros sinais dados pelo texto.

Entretanto, não se deve entender que, ao chamar Héracles de leão, o poema assim o designará sempre: ele será também o lobo, e mais personagens serão denominados leões. Lobos? Há-os aos montes ao longo do texto. Lícofron engendra, assim, uma “instabilidade estrutural” das analogias: “a equivalência metafórica não é estabelecida uma vez por todas: um mesmo personagem pode tomar várias identidades animais” (Cusset, 2001, p. 66). Isso dificulta enormemente a leitura, visto que a relação entre nome e pessoa (entre palavra e coisa, de um modo geral) não é unívoca, nem mesmo serena: “na medida, com efeito, em que uma metáfora animal não é vinculada a um indivíduo e esse indivíduo é suscetível de mudar de referente, torna-se possível, a um mesmo referente, designar vários personagens” (Cusset, 2001, p. 69).

Esse procedimento, quando levado ao seu extremo, gera consequências muito específicas. Em primeiro lugar, como fizemos notar, ele altera por completo a relação entre as palavras e as coisas a que elas se referem. Substituindo Héracles por “leão de três noites”, o nominativo “leão” deixa de se referir a uma coisa e passa a se referir a outra palavra. Isso, é claro, é próprio do procedimento metafórico, mas no Alexandra a metáfora sobrevém a outras metáforas, e a referência à coisa, portanto, acaba se esfumando. Boa parte das palavras se torna referência, não para coisas, mas para outras palavras. Isso produz a segunda consequência: a posição instável do leitor, que é coagido a tornar-se, de supetão, um verdadeiro leitor de enigmas e oráculos. Como recém-mostramos, o tecido do poema tem como base outros textos; isso acarreta uma multiplicidade de referentes (textuais) requeridos para que as metáforas sejam plenamente compreendidas: não somente toponímias, mas também eventos históricos ou mesmo situações vividas previamente pelo personagem em questão. Selecionemos ao acaso um exemplo: a prolepse da morte de Heitor, narrada a partir do verso 262, aproximadamente. Nesse passo, os nomes de Aquiles e Heitor não vêm mencionados; assim relata Cassandra as subsequências dessa morte:



λαβὼν δὲ ταύρου τοῦ πεφασμένου δάνος,
σκεθρῷ ταλάντῳ τρυτάνης ἠρτημένον,
αὖθις τὸν ἀντίποινον ἐγχέας ἴσον
Πακτώλιον σταθμοῖσι τηλαυγῆ μύδρον
κρατῆρα Βάκθου δύσεται, κεκλαυσμένος
νύμφαισιν, αἳ φίλαντο Βηφύρου γάνος,
Λειβηθρίην θ’ ὓπερθε Πιμπλείας σκοπήν (269-75)

Depois de, touro morto, receber mercê
pesada com exatidão numa balança,
idêntico resgate revertido ao prato,
lingote pactuliano longirrefulgente,
mergulhará na copa de Dioniso, lágrimas
vertendo as ninfas que amam o Befiro rútilo
e o baluarte leibetriano sobre Pímplea

É mais que evidente: caso o leitor não seja familiarizado ao extremo com a nomenclatura e a mitologia gregas, ou caso ele não se reporte às notas do tradutor, nem mesmo uma sentença do texto é compreendida. Não porque não faça sentido; ao contrário: é porque nela o sentido transborda e é excessivo que o leitor é incapaz de entender qualquer parcela dele. A coisa, aqui, está muito, muito distante das palavras utilizadas. Leiamos a nota de rodapé de Trajano Vieira referente a essa passagem:

Pela devolução do corpo de Heitor (“touro morto”), Aquiles receberá uma quantia de ouro correspondente ao peso do herói troiano. O mesmo procedimento será adotado pelos troianos quando da devolução do corpo de Aquiles. O rio Pactolo era famoso pela abundância aurífera. A copa dionisíaca é a imagem da urna funerária que Tétis, mãe de Aquiles, recebera de Dioniso. As ninfas referem-se às musas. Befiro é o nome do rio próximo ao Olimpo, e Leibetres e Pímpleia são montanhas da mesma região. (Vieira, 2017, p. 53, nota de rodapé)

A nota do tradutor é, assim, uma tradução da tradução: nela cada referência é explicitada, e cada nome próprio “original” é retomado. Mesmo os nomes próprios já presentes no poema não se referem muito simplesmente às coisas que eles nomeiam: “copa de Dioniso” remete ao funeral de Aquiles, feito por sua mãe Tétis (não nomeada no texto); “Pactulo” é o rio, mas sua importância é sua abundância aurífera; e “Befiro”, “Leibetres” e “Pímpleia”, apesar de designarem um rio e duas montanhas em específico, são mencionados graças à sua proximidade ao monte Olimpo, cujo nome, por sua vez, não assoma no texto.

Ao retirar da profecia de Cassandra praticamente todos os nomes próprios, e ao fazer desfilar uma sucessão de perífrases em que palavra e coisa não se referem pacífica ou univocamente, Lícofron fabrica, em consequência, uma “perturbação do sentido: a polissemia é aqui extrema; ela é sistematizada ao ponto que o retorno do mesmo significante implique quase a cada vez uma mudança do significado humano” (Cusset, 2001, p. 70). A polissemia é extrema, e os significantes retornam, mas nesse retorno imprimem uma mudança de referência. Como os νόστοι dos viajores gregos, os νόστοι das palavras não são plenamente cumpridos: elas não se repetem para retornar ao mesmo ser ao qual se referiram previamente; elas retornam para não retornar até lá.

Daí decorre o caráter supostamente “obscuro” do texto, caracterização não de todo justa, segundo Fusillo. Como ele evidencia bem, a substituição de nomes próprios por nomes de animais era usual na época clássica. Lícofron, porém, atinge como que o fastígio dessa operação poética:

Lícofron exasperou esse traço típico da langue lírica, chegando ao resultado de não designar jamais com o nome comum os lugares e personagens da sua obra, substituindo-os, em vez disso, por uma série de enigmas deixados abertos ao fruidor; uma operação densamente literária, que lhe rendeu, desde a antiguidade tardia, uma fama, na realidade não de todo justificada, de poeta obscuro. (Fusillo, 1984, p. 505)

Por isso a exasperação causada pela leitura desse fluxo profético e prolixo de palavras: nele o leitor viaja, mas naufraga a cada palavra que retorna. Trata-se, entretanto, de um efeito premeditado: ao que parece, Lícofron tenciona deixar sem chão o leitor, Lícofron almeja mergulhar-nos no pélago polissêmico da palavra ambígua. Se por um lado nós somos colocados à força na posição de Príamo, cuja tarefa é decodificar o borbotão pressago de sua filha encarcerada, por outro lado nós nos tornamos também esses pobres viajantes gregos, que jamais conseguem retornar ao ponto de onde partiram. Assim é que Cassandra, golpeada pelo deus rancoroso, nos golpeia de modo irreversível.

* * *

De um lado, um trauma ao qual o indivíduo retorna repetidamente, sem chance de desvio; de outro, o não-retorno dos gregos, cuja sina é retorno especular do trauma sofrido pela profetisa desacreditada. De um lado, o trauma é excessivo, e não dá margem para qualquer alteração; de outro, a alteração linguística é excessiva, e nós ficamos à margem, sem poder aportar a qualquer coisa. Em Freud e em Lícofron, temos como que os dois zênites da relação entre coisa e palavra; mais que isso, porém: em ambos é o golpe, o trauma, aquilo que dá início à tecedura das histórias.

Teríamos, assim, dois extremos, dois antípodas da linguagem: de um lado, um excesso de coisa, perante o qual a palavra é inoperante; de outro, um excesso de palavra, em que os significantes se reportam quase exclusivamente de forma intralinguística, e a coisa acaba se esfumando e se tornando, de certa forma, também palavra.

Estaríamos sempre entre esses dois extremos: entre a replicação absoluta e imutável do evento casual, da τύχη, do trauma, e a replicação interminável de palavras a respeito dele. Se, no primeiro caso, absolutamente nada é dito sobre a coisa, no segundo caso as palavras proliferam de tal forma, e interrelacionadas entre si de maneira tão espessa e iterativa, que o perigo, entrevisto e anunciado no Alexandra de Lícofron, é que as palavras, se descoladas totalmente da realidade traumática a que fazem referência, acabem por dizer... nada. Estaríamos, assim, entre o nada dizer e o dizer nada. Entre eles, jazemos nós, jaz o acaso, o trauma, a τύχη, a coisa absoluta a partir da qual se faz necessário e incontornável dizer qualquer coisa.

Referências

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CUSSET, Christophe. Le bestiaire de Lycophron: entre chien et loup. Anthropozoologica, n. 33-34, p. 61-72, 2001.

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VIEIRA, Trajano. Nota sobre Lícofron. Ciência e Cultura, v. 67, n. 4, p. 66-8, 2015.

VIEIRA, Trajano. Apresentação. In: LÍCOFRON. Alexandra. Tradução de Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2017. p. 7-21.

Notas

1 Para os leitores que não sejam familiarizados com o poema, sugiro que se remetam à Apresentação que Trajano Vieira (2017) redigiu para sua tradução, e ao útil resumo da narrativa contido em Rocha (2020, p. 194-196).
2 Todas as citações literais de textos estrangeiros serão traduções do autor deste artigo para o português.
3 Usaremos, via de regra, a tradução de Trajano Vieira (2017) em nossas citações literais.
4 Sobre a centralidade da noção de trauma na teoria da sedução, remeto o leitor ao primeiro capítulo de García-Roza (2009), sobretudo a p. 31-9.
5 O artigo de Mazzoldi mostra bem como houve mudanças na figuração e na narração da desdita de Cassandra ao longo dos séculos. A centralidade do estupro, tão patente em Lícofron, não é tão explícita em épocas mais tardias; em outras obras, Ájax é ímpio perante a deusa (e esse, o motivo para sua reação ultriz), mas a natureza carnal ou lasciva de seus atos não é explicitada. A impiedade é primeiramente apresentada “como violência do direito de asilo, ato de ὕβρις no confronto com um deus; depois, como um estupro num templo, danoso a uma súplice, que se torna a verdadeira vítima de ultraje” (Mazzoldi, 1997, p. 20). É interessante, ademais, notar como no Alexandra o trauma da narradora é positivamente idêntico aos traumas pressupostos por Freud na sua teoria da sedução.
6 As coincidências entre o esquema proposto por Freud em seu O homem Moisés e a religião monoteísta e a forma narrativa do Alexandra são ainda maiores; para isso, remeto o leitor ao belo artigo de Caruth (1991).
7 A aproximação a Mallarmé, o outro “poeta obscuro”, foi feita já no fim do séc. XIX. Tal convergência entre o poeta helenístico e o autor do Igitur não é, no entanto, simples, e, ademais, tem uma história de fato interessante. Sobre isso, cf. Schade (2012).
8 Com efeito, a palavra ἄκρα (ponta, extremo, cimo, cume), que víramos empregada no segundo verso do poema, aparece nele inúmeras vezes. É do extremo que parte a voragem profética de Cassandra, e é no extremo da linguagem que ela se situa ou mesmo se desenrola.
9 Outro aspecto formal do Alexandra que coopera para desconcertar o leitor é a impossibilidade de enquadrá-lo num gênero poético específico. Como bem demonstrou Fusillo (1984, p. 499), o Alexandra se situa numa “zona in limine”, entre o épico e o dramático: seu conteúdo é mormente épico, porém ele advém da boca de um personagem, o que altera bastante a relação entre forma e conteúdo dentro da narrativa; isso tudo acaba por alterar também a relação que o leitor tem com a obra, já que esta não é nem narração objetiva de fatos heroicos, nem sucessão de eventos trágicos relatados por meio de diálogos, mas sim uma espécie de monólogo delirante (que, na verdade, chega a nós, leitores, pela boca de um terceiro, o guarda).
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