Artigo | Article

Luciano leitor de Derrida

Lucian reader of Derrida

Rafael Guimarães Tavares da Silva
Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil

Luciano leitor de Derrida

Classica - Revista Brasileira de Estudos Clássicos, vol. 35, núm. 1, pp. 1-16, 2022

Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos

Recepción: 12 Febrero 2021

Aprobación: 23 Septiembre 2021

Resumo: O presente texto rastreia os paralelos entre as vidas, as obras e as recepções de Jacques Derrida e Luciano de Samósata. Partindo de uma fundamentação teórica baseada tanto na teoria da literatura (com ênfase no comparatismo) quanto nos estudos clássicos, proponho uma aproximação entre os projetos de escrita delineados por esses dois autores, destacando em ambos: um profundo respeito pela tradição em suas leituras, incluindo seu cuidado com a singularidade das obras lidas; um mesmo intuito de retornar aos textos clássicos para remover a pátina do tempo; um desejo comum de deslocamento e estranhamento das estruturas estabelecidas por convenção; uma mesma liberdade no emprego de diferentes gêneros e modalidades do discurso em seus escritos; assim como o mal-estar que tais características inspiram na parte mais conservadora de sua fortuna crítica. Diante disso, defendo a dimensão ética do trabalho com a escritura que se pode encontrar nos dois autores, propondo que os apontamentos fundamentais da desconstrução derridiana são retomados e retrabalhados, avant la lettre, de forma extremamente criativa por Luciano.

Palavras-chave: Luciano de Samósata, Jacques Derrida, poética, escritura, estudos clássicos, teoria da literatura.

Abstract: The present text traces parallels between the lives, works and receptions of Jacques Derrida and Lucian of Samosata. Basing my theoretical perspective on both literary theory (specially comparative literature) and classical studies, I suggest an approximation between the writing projects outlined by these two authors, highlighting in both of them: a deep respect for tradition in their readings, including their care for the singularity of the works; the same intention of returning to classical texts, in order to remove the patina of time; a common desire for displacement and estrangement from the structures established by convention; the same freedom in using different genres and modalities of discourse in their writings; as well as the discomfort that such characteristics inspire in the most conservative part of their critical fortune. In conclusion, I defend the ethical dimension of the writing projects of these two authors, proposing that some fundamental aspects of the Derridean deconstruction have been taken up and reworked, avant la lettre, in an extremely creative way by Lucian.

Keywords: Lucian of Samosata, Jacques Derrida, poetics, writing, classical studies, literary theory.

Introdução (à guisa de discussão teórico-metodológica)

O título deste texto até pode parecer absurdo a um leitor pouco habituado às sofisticadas sinuosidades da crítica literária contemporânea – capaz, por exemplo, de atribuir a Eça de Queirós a autoria de MadameBovary, célebre romance de Flaubert (Santiago, 1978), ou ainda, sugerir que um certo Pierre Menard seria o autor, em pleno século XX, de capítulos importantes de Dom Quixote, publicado, como bem se sabe, por Miguel de Cervantes ainda no século XVII (Borges, 1974). Essas, contudo, são demonstrações da capacidade sofística que alguns intérpretes têm de articular convincentemente os mais descabidos contrassensos como se fossem interpretações válidas de importantes obras da literatura universal. Que não se confunda, portanto, a empreitada crítica – de viés historiográfico e comparatista – à qual ora me lanço, com as falaciosas elucubrações de sofistas desavergonhados como Jorge Luis Borges e Silviano Santiago.

Meu texto pretende sugerir, fiando-se na mais rigorosa cientificidade do conhecimento literário – recorrendo a argumentos tanto intrínsecos quanto extrínsecos, para me valer aqui da célebre distinção proposta por Wellek e Warren (2003) –, que Luciano de Samósata não apenas conhecia, mas era leitor assíduo da obra de Jacques Derrida. A influência deste sobre aquele me parece tamanha que acredito não ser exagerado distinguir reflexos da mesma não apenas na vida e na obra de Luciano, mas na própria recepção que o destino reservou a ambos. Feitos esses esclarecimentos preliminares, passo à exposição do argumento.

Recepções: resistências

Começo, como sói ter se tornado comum em crítica literária, pelo fim.

Partindo dos modos como as obras desses autores foram lidas por parte significativa de seus leitores ao longo da história de sua recepção, é possível encontrar pistas importantes para se investigar não apenas uma série de temáticas, características formais e estratégias composicionais compartilhadas por ambos, mas também as resistências tradicionalmente despertadas por tais temas e estratagemas. A semelhança do tipo de insuficiências apontadas pela fortuna crítica nas obras de Derrida e Luciano sugere que trabalhar nas fronteiras dos gêneros discursivos mais consolidados numa dada época tende a despertar resistências por parte de seus mais autorizados representantes.1

Ecoando posicionamentos já bastante corriqueiros na opinião pública acerca da obra de Derrida na época em que ele próprio ainda escrevia,2 alguns de seus contemporâneos fizeram críticas acerbas ao teor de verdade de suas propostas e à pretensa indeterminação dos gêneros discursivos de seus textos. Nessa linha, as seguintes afirmações são emblemáticas das resistências suscitadas por seu trabalho: “Derrida tem uma tendência perturbadora de dizer coisas que são obviamente falsas” (Searle, 1977, p. 203); “Derrida tem especial interesse em inverter a primazia da lógica sobre a retórica” (Habermas, 2000, p. 264); “Derrida não pertence à classe de filósofos que gostam de argumentar” (Habermas, 2000, p. 272). Ou ainda:

Se o pensamento filosófico, de acordo com as recomendações de Derrida, é liberado do dever de solucionar problemas e refuncionalizado para os fins da crítica literária, não somente perde sua seriedade, mas também sua produtividade e capacidade de realização. (Habermas, 2000, p. 294).

Não me interessa aqui entrar nos intricados meandros para se ajuizar o nível de correção com que essas leituras da obra de Derrida foram feitas, tendo-se em vista não apenas a acurácia da interpretação, da demonstração e da argumentação, mas me limito a sugerir o sentido que parte considerável da recepção tendeu a manifestar perante sua obra.3

Acredito serem notáveis os paralelos entre tais afirmações e aquilo que veio a ser dito por alguns dos leitores de Luciano, sobre o qual se afirmou o seguinte:

sua ocupação é fazer, em prosa, comédia dos gregos. Parece ser dos que não respeitam absolutamente nada, pois, fazendo comédia e brincando com as crenças alheias, ele próprio não define o que honra, a não ser que alguém diga que sua crença é em nada crer. (Fócio. Biblioteca 128, trad. Jacyntho Brandão).4

Ou ainda:

Luciano, samosatense, o chamado blasfemo ou difamador – ou ateu, para dizer mais – porque, em seus diálogos, atribuiu ser risível até o que se diz sobre as divindades. [Viveu no tempo do Imperador Trajano e depois dele.] Era, de início, advogado em Antioquia, na Síria, mas, não tendo tido sucesso, voltou-se para a logografia e escreveu infindáveis obras. Diz-se ter sido morto por cães, posto que foi contaminado pela raiva contra a verdade, pois, na vida de Peregrino, o infame atacou o cristianismo e blasfemou contra o próprio Cristo. Por isso, também pagou, com a raiva, a pena devida neste mundo e, no futuro, sua herança será o fogo eterno, na companhia de Satanás. (Suda L683, trad. Jacyntho Brandão).5

Os paralelos entre os posicionamentos aí atribuídos a Derrida e a Luciano por seus críticos e detratores revelam o mal-estar despertado por aqueles que colocam em questão certos pressupostos discursivos e epistemológicos de sua própria época: como se assumissem uma atitude rebelde perante as verdades e os valores legados por suas respectivas tradições, ambos teriam se valido de expedientes que seus adversários consideram “não sérios”, “retóricos” e “infames”, com o objetivo de colocar abaixo as categorias fundamentais do pensamento tradicional, sem propor absolutamente nada no lugar. Inclusive a mesma suspeita de ateísmo aí imposta a Luciano já rondava Derrida, como ele mesmo o declarou numa passagem de sua Circonfissão (1996, p. 114, § 30). Em todo caso, a acusação de certo niilismo demolidor pesa sobre a forma como os projetos de escrita de cada um desses autores foram recebidos por parte considerável de seus leitores, tendo por consequência obstaculizar a entrada da desconstrução derridiana e dos diálogos luciânicos em certos ambientes intelectuais mais conservadores.

Nesse sentido, que se notem as ressonâncias entre o que afirmaram dedicados estudiosos mais dispostos a compreender essas obras em seus próprios termos. Jean-Joseph Goux sugeriu o seguinte numa entrevista acerca da problemática recepção encontrada pelo trabalho de Derrida:

O único domínio realmente hostil à desconstrução continuava a ser a filosofia, o que está na raiz de um certo número de mal-entendidos e distorções. O acesso à obra derridiana se deu frequentemente sem os conhecimentos filosóficos preparatórios que teriam sido necessários. (Goux apudPeeters, 2013, p. 545).

Jacyntho Brandão (2001, p. 17) apontou algo análogo na obra de Luciano: uma questão polêmica na forma como seu trabalho foi recebido diz respeito justamente à dificuldade de se reconhecer sua dimensão filosófica. Enquanto Isidoro de Pelúsio e parte da crítica do século XVI teriam lido Luciano como filósofo, comentadores de diferentes épocas negaram ardorosamente o estatuto filosófico a seus escritos. A questão é importante porque aborda e problematiza os limites arbitrários com que tradicionalmente se compreende o que é o filósofo, ou a filosofia e o discurso filosófico. Afinal,

[é] preciso determinar com mais precisão que a intenção e a atitude de Luciano concernentes à filosofia não se separam da intenção e da atitude relativas a outros produtos culturais, só ganhando pleno sentido nessa relação. Não cabe portanto esperar de Luciano uma postura de filósofo. (Brandão, 2001, p. 53).

Margens: obras de fronteira

O mal-estar sentido por parte da crítica com relação à posição filosófica (ou não) desses autores é típico do modo como obras que trabalham nas fronteiras entre diferentes gêneros do discurso, embaralhando as convenções tradicionais a fim de levar a cabo um questionamento radical das estruturas que as sustentam, tendem a ser encaradas. Valendo-se de estratégias argumentativas oferecidas tanto pela retórica quanto pela filosofia, sem recusar o que há de sério no cômico nem o que há de cômico no sério, Derrida e Luciano operam algo que seria possível atribuir à noção etimológica de poíēsis: criação polivalente (no caso deles, escritural), anterior à delimitação imposta pelos gêneros discursivos e capaz de se valer indistintamente de variados meios para aprofundar a radicalidade de seu próprio pensamento e sua própria escrita (que parecem assumir uma dimensão monstruosa aos olhos da partilha tradicional dos gêneros discursivos clássicos).6

Recorrerei aqui a um trecho de uma entrevista concedida por Derrida a Derek Attridge, onde acredito encontrar aquilo que está na base do que se desenvolverá posteriormente na “poética do hipocentauro”, tal como delineada por Luciano:

[E]u hesitava entre filosofia e literatura, sem renunciar a nenhuma das duas, buscando talvez, obscuramente, um lugar a partir do qual a história dessa fronteira pudesse ser pensada ou até mesmo deslocada: na própria escritura e não somente na reflexão histórica ou teórica. E como o que me interessa ainda hoje não se chama estritamente literatura nem filosofia, diverte-me pensar que meu desejo, digamos, de adolescente pudesse ter me direcionado para algo da escritura que não era nem uma coisa nem outra. (Derrida, 2014, p. 46).

Parece-me evidente que esse desejo de adolescente, essa noção de “escritura” – em seus ecos blanchotianos também –, reverbera de modo inegável na poética delineada por Luciano em algumas passagens emblemáticas de sua obra. Em Sobre o sonho ou vida de Luciano, o autor conta o episódio em que – estando já na puberdade – se viu na contingência de optar por algum tipo de formação e, depois de uma péssima experiência na oficina de escultura de seu tio, tem um sonho em que duas mulheres o tomam pelas mãos e o puxam para si com muita violência e obstinação.“Uma, trabalhadora, varonil, de cabelos descuidados, as duas mãos cheias de calos, um vestido estragado, cheio de pó [...]; a outra, de muito boa cara, uma figura decente e com um manto elegante” (Luciano. Sobre o sonho 6, trad. Jacyntho Brandão).7 Escutando os argumentos de ambas – respectivamente, Escultura e Educação –, o personagem adolescente de Luciano opta pela segunda e, começando a educar-se na cultura, dá início a voos cada vez mais altos por aquilo que convém chamar de escritura. De que forma essa escritura veio a ganhar corpo em seu trabalho é sugerido em detalhes pelo próprio autor em outra obra de sua “biografia literária”:8

Com efeito, de modo algum viviam juntos e eram amigos, desde o princípio, o Diálogo e a Comédia: um ficava em casa consigo mesmo e, por Zeus!, quando saía passava o tempo com pouca gente, enquanto a outra, entregue a Dioniso no teatro, tratava com todos, brincava, fazia rir, zombava, caminhava algumas vezes ao ritmo da flauta, em geral sustentada por versos anapésticos – e dos companheiros do Diálogo ela troçava chamando-os de encucados, avoados e coisas tais. Um só intento ela tinha: zombar e derramar sobre eles a liberdade dionisíaca, algumas vezes mostrando-os andando no ar e na companhia de nuvens, outras medindo as patas de pulgas, já que falavam sutilmente de coisas aéreas. O Diálogo, por seu lado, promovia encontros veneráveis para filosofar sobre a natureza e a virtude, de modo que, como dizem os músicos, havia entre eles duas oitavas, da nota mais aguda à mais grave. Apesar disso, ousamos ajuntar esses dois, que diferiam assim um do outro, e harmonizá-los, ainda que não fossem dóceis nem acolhessem com facilidade a parceria. (Luciano. Ao que disse: você é um Prometeu em seus discursos 6, trad. Jacyntho Brandão).9

Tal como sugerido por Brandão (2001, p. 269), “[é] no entremeio dessas falas de outros, elas próprias marcadas por signos de alteridade, ou melhor, é realçando os signos de alteridade presentes na fala do próprio que Luciano constrói sua poética”. Donde a ideia de uma “poética do hipocentauro”. Os apontamentos derridianos sobre o grámma, o traço, a différance e a hospitalidade, por exemplo, surgem como fundamentos incontornáveis desse trabalho de Luciano com a alteridade, não apenas em termos discursivos e epistemológicos, mas também sociais, políticos e éticos.10

Nesse sentido, a forma como se manifesta na escrita de Derrida a experiência de certo estranhamento, isto é, de certa estrangeirização, parece ter um impacto profundo sobre a obra de Luciano e a forma como a mesma vem a se desdobrar para constituir sua “biografia literária”. Aqui, seria possível aludir ao fato de que ambos foram de certo modo estrangeiros à língua e à cultura hegemônicas que vieram a adotar: Derrida (1996, p. 50, § 11), esse “cristão latino francês embora tenham expulsado do liceu de Ben-Aknun em 1942 o judeuzinho escuro e muito árabe que nada entendia”, assumiu uma França metropolitana e cosmopolita como base principal de sua vida e seu pensamento, ainda que tenha perambulado por muitas outras partes do mundo; do mesmo modo, Luciano, de naturalidade síria, um “bárbaro helenizado” (Brandão, 2001, p. 266), assumiu o grego como língua literária e, mesmo tendo conhecido grande parte do Império Romano, fez da Grécia sua pátria espiritual de adoção.

As seguintes sugestões parecem atravessar o modo como cada um desses autores pensou e problematizou a estrangeiridade da cultura e da língua em seus respectivos escritos:

Toda a cultura é originariamente colonial. Não tenhamos somente em conta a etimologia para o lembrar. Toda a cultura se institui pela imposição unilateral de alguma “política” da língua. O domínio começa, como é sabido, pelo poder de nomear, de impor e de legitimar designações. (Derrida, 2016, p. 69).

A língua dita materna não é nunca puramente natural, nem própria, nem habitável. Habitar, eis um valor bastante desorientador e equívoco: não se habita nunca o que se está habituado a chamar habitar. Não há habitat possível sem a diferença deste exílio e desta nostalgia. Sem dúvida. É demasiado sabido. Mas não resulta daqui que todos os exílios sejam equivalentes. A partir, sim, a partir desta margem ou desta derivação comum, todos os expatriamentos permanecem singulares. (Derrida, 2016, p. 106).

A condição singular do estrangeiro ganha um estatuto fundamental também na obra de Luciano: sugerindo que toda posição deslocada – estranhada – com relação a uma dada tradição ou cultura seja capaz de suscitar diferentes posicionamentos críticos dos contrassensos socialmente naturalizados em suas instituições, esse autor adota o procedimento de deslocar o olhar do leitor a fim de abrir novas perspectivas de mundo. Revelação do que há de estranho na mais corriqueira das banalidades cotidianas. Seja em seu elogio da condição de estrangeiro (Hermótimo 22-24; 31; Zêuxis 1; 10), seja nos deslocamentos de personagens para espaços que não lhes são naturais (Caronte; Icaromenipo; Das narrativas verdadeiras), Luciano salienta os ganhos epistemológicos que o tipo de inadequação do estrangeiro pode suscitar, em termos de um olhar crítico capaz de compreender aquilo que passa como natural para as pessoas já habituadas àquilo. Nesse sentido, quão derridiana não se mostra uma anedota como esta (inclusive em sua alusão algo irônica à tradição platônica):11

Platão – creio eu – contaria mesmo uma das suas anedotas da Sicília, como pessoa que sabe muitas. Por exemplo: “Dizem que Gélon de Siracusa cheirava mal da boca – facto de que, durante muito tempo, não se apercebera, pois ninguém ousava advertir um tirano... até que certa mulher estrangeira, que tivera relações com ele, se atreveu a dizer-lhe o que se passava. Então Gélon foi procurar a sua própria mulher e zangou-se com ela por não o ter avisado, já que certamente sabia do seu mau hálito. Ela, porém, pediu-lhe que a desculpasse, porquanto, como ainda nunca tinha tido qualquer experiência com outro homem, nem havia jamais falado de perto com nenhum, julgava que todos os homens exalavam tal cheiro da boca.[...].” (Luciano. Hermótimo 34, trad. Custódio Magueijo).12

Mantendo ainda o humor típico de seus escritos – na forma como a mulher do tirano consegue se safar da acusação de seu marido –, Luciano sugere que apenas um olhar deslocado do centro socialmente instituído do poder é capaz de dar a ver perturbações que se encontram naturalizadas no mesmo. A mulher estrangeira, justamente porque alheia aos arranjos de poder da corte do tirano, tem a coragem para dizer aquilo que era necessário dizer e que de sua perspectiva surgia de modo tão evidente.

Heranças e tradições (ou: errâncias e traições?)

Esses elementos de irreverência e questionamento – compartilhados pelas obras de Derrida e Luciano – levaram muitos de seus comentadores a insinuarem haver uma atitude eminentemente negativa com relação ao legado de suas respectivas tradições. É o que transparece nos textos dos quais foram anteriormente extraídos os comentários de John Searle, Jürgen Habermas, Fócio e da enciclopédia bizantina Suda. Sugerindo uma atitude irreverente e profundamente desrespeitosa perante o que haveria de mais caro à tradição clássica, esses autores acreditam que Derrida e Luciano seriam “maus herdeiros”, na medida em que seu “trabalho rebelde” visaria “à destruição das hierarquias habituais de conceitos básicos, à derrubada de contextos de fundação” (Habermas, 2000, p. 264), sem respeitar absolutamente nada (Fócio. Biblioteca 128).

Essa interpretação, contudo, é construída com base em leituras apressadas – e superficiais – daquilo que Derrida e Luciano desenvolvem em suas respectivas obras. Aqui, seria necessário voltar aos contextos específicos em que esses autores citam e leem, o mais das vezes de modo visceralmente apaixonado, as obras de Platão, Homero, Eurípides, Aristófanes e Aristóteles, para ficar apenas em referências gregas clássicas.13 A presença massiva desses autores nos escritos derridianos e luciânicos seria já, portanto, um primeiro indício da admiração profunda que esses pensadores nutrem por sua tradição, mas há argumentos ainda mais explícitos para que se defenda isso.

Quando interrogado, certa vez, sobre uma possível dimensão de “conservadorismo” em seu pensamento, Derrida afirmou o seguinte:

Vejo muito bem em que alguns de meus textos ou algumas de minhas práticas (por exemplo) têm de “conservador” e o reivindico como tal. Sou pela salvaguarda, a memória – a conservação ciumenta – de numerosas tradições, por exemplo, mas não somente na universidade e na teoria científica, filosófica, literária. Milito até por essa salvaguarda. Mas também poderia mostrar em que alguns de meus textos (às vezes os mesmos) ou algumas de minhas práticas (às vezes as mesmas) parecem recolocar em causa os fundamentos dessa tradição, e reivindico também isso. Que é que isso significa? Que, para compreender o que se passa com esses textos e essas práticas, a oposição conservador / revolucionário não é mais pertinente. (Derrida, 1991, p. 193).

Essa mesma atitude “conservadora” se mantém em cada uma das obras de Luciano. Seja em suas constantes referências a Homero como o verdadeiro pilar da paideía grega (Das narrativas verdadeiras 2.20; Sonho ou o galo 3), seja no modo como os modelos de Platão e Aristófanes figuram como as bases de seu próprio empreendimento escritural (Ao que disse: você é um Prometeu em seus discursos), Luciano se mostra um atento leitor de Derrida ao adotar – para além daquilo que seus críticos enxergam como “a derrubada de contextos de fundação” – um posicionamento em prol da “salvaguarda”, “memória” e “conservação ciumenta” de “numerosas tradições”.

Que não se trata de conservar por conservar, acredito ser supérfluo dizer. Obviamente, a manutenção dessas tradições em seus escritos se dá sempre em différance,14 posto que seu próprio posicionamento com relação às instituições – como se sugeriu acima – se desdobra a partir de deslocamentos questionadores das estruturas naturalizadas de poder. A homogeneização neutralizadora que certa tradição de leitura acaba impondo sobre essas obras “clássicas” é muitas vezes o que vem a ser efetivamente questionado por seu zeloso retorno a algumas de suas mais básicas formulações. Volta e meia, essa concepção emerge de modo claro em seus textos, sendo válido sugerir que Derrida e Luciano compartilham inclusive uma série de imagens nesse sentido.

A título de exemplo, que se evoque aqui um trecho mais longo da introdução de um célebre estudo de Derrida, A farmácia de Platão:

Um texto só é um texto se ele oculta ao primeiro olhar, ao primeiro encontro, a lei de sua composição e a regra de seu jogo. Um texto permanece, aliás, sempre imperceptível. A lei e a regra não se abrigam no inacessível de um segredo, simplesmente elas nunca se entregam, no presente, a nada que se possa nomear rigorosamente uma percepção.

Com risco de, sempre e por essência, perder-se assim definitivamente. Quem saberá, algum dia, sobre tal desaparição?

A dissimulação da textura pode, em todo caso, levar séculos para desfazer seu pano. O pano envolvendo o pano. Séculos para desfazer o pano. Reconstituindo-o, também, como um organismo. Regenerando indefinidamente seu próprio tecido por detrás do rastro cortante, a decisão de cada leitura. Reservando sempre uma surpresa à anatomia ou à fisiologia de uma crítica que acreditaria dominar o jogo, vigiar de uma só vez todos os fios, iludindo-se, também, ao querer olhar o texto sem nele tocar, sem pôr as mãos no “objeto”, sem se arriscar a lhe acrescentar algum novo fio, única chance de entrar no jogo tomando-o entre as mãos. Acrescentar não é aqui senão dar a ler. É preciso empenhar-se para pensar isso: que não se trata de bordar, a não ser que se considere que saber bordar ainda é se achar seguindo o fio dado. Ou seja, se se quer nos acompanhar, oculto. Se há uma unidade da leitura e da escritura, como hoje se pensa facilmente, se a leitura é a escritura, esta unidade não designa nem a confusão indiferenciada nem a identidade de todo repouso; o é que une a leitura à escritura deve descosê-las. (Derrida, 2005, p. 7).

Essa consciência aguda da leitura como escritura – isto é, de um procedimento escritural de leitura da tradição – surge em inúmeros momentos da obra de Luciano, como em O bibliómano ignorante, Das narrativas verdadeiras e Como se deve escrever a história. Nesse sentido, um dos trechos mais emblemáticos de seus escritos acerca dessa consciência se encontra numa das falas da personagem Filosofia, no diálogo Ressuscitados, quando esta se admira que os mais importantes filósofos da tradição grega antiga se incomodem com as zombarias cômicas que possam ter sido propostas por um certo Parresíades. Para o leitor, não há dúvidas de que essa figura é uma espécie de alter ego luciânico, responsável por encarnar uma desbocada parrésia, isto é, uma franqueza de discurso capaz de denunciar os males de seu tempo, dentre os quais, justamente a charlatanice de certos “filósofos”. Reconhecendo a importância do trabalho de crítica à tradição como uma das formas mais elevadas de respeito e reverência, a Filosofia comenta o seguinte:

Quer dizer que vos escandalizastes pelo facto de alguém vos ter ofendido, mesmo sabendo que coisas eu escutei nas Dionísias, vindas da Comédia, a qual, mesmo assim, eu considero minha amiga, a quem nunca processei nem acusei, e a quem deixo divertir-se a seu bel-prazer, como é tradição nesse festival?! Na verdade, eu sei que nada de muito mau resulta de um gracejo, mas, pelo contrário, aquilo que for belo, tal como o ouro limpo pelos golpes [da cunhagem], brilha com maior intensidade e torna-se mais luzente. Vós, pelo contrário, não sei porquê, ficastes furiosos e escandalizados. (Luciano. Ressuscitados 14, trad. Custódio Magueijo).15

Em vista de tudo o que já foi afirmado nesse sentido, e à guisa de síntese desse ponto, acredito ser possível enxergar no seguinte comentário de Jacyntho Brandão uma verdade profunda sobre o modo com que, não apenas Luciano, mas o próprio Derrida já se portava perante tal legado da tradição:

O contato com os livros, enquanto transmissores da paidéia [educação], justifica-se pela instauração de um tópos em que se pode realizar o ideal de xenitéia [estrangeiridade]. O xénos en biblíois [estrangeiro nos livros] é também ápolis (sem cidade), isto é, sua condição permanente é viver no estrangeiro. Preconiza-se, pois, a leitura como espaço de diferença – ou de descoberta do outro. É nesse sentido que o discurso luciânico se relaciona com a tradição, enquanto recupera a xenitéia de escritores áticos como Homero, Platão e Sólon, exibindo as marcas de alteridade que a pátina do tempo obscureceu neles, banalizando sua singularidade. O tempo e a glória – a incorruptibilidade dos clássicos! – como que corrompe seu sentido arquetípico, brutalizando-o na mera repetição. Batendo com força na tradição, Luciano visa a fazer brilhar o ouro que a ferrugem esconde. (Brandão, 2001, p. 266).

As imagens empregadas por ambos os autores – de um pano encoberto por camadas de tecitura (Derrida, 2005, p. 7) ou de um metal coberto por camadas de ferrugem (Luciano. Ressuscitados 14) – remetem a um posicionamento pessoal profundamente engajado com suas respectivas tradições. Por trás de uma aparente irreverência para com seu material mais tradicional – irreverência que pode se manifestar em leituras às vezes cortantes, às vezes percucientes –, subjaz um desejo profundo de preservar o que verdadeiramente importa no modo como tudo isso ainda pode se revelar à luz dos novos tempos. Trata-se, portanto, da estratégia de pôr algo à prova com o objetivo de avaliar e salvaguardar aquilo que resistirá.

Uma ética da leitura (à guisa de conclusão)

De tudo quanto apontei até agora, cumpre destacar: uma mesma atenção com a singularidade das obras lidas, um mesmo intuito de retornar aos textos clássicos para remover a pátina da tradição, um mesmo desejo de deslocamento e estranhamento – tal como a mera presença de um estrangeiro costuma promover –, uma mesma liberdade no emprego de diferentes gêneros e modalidades do discurso em seus escritos, além do mal-estar que tais características inspiram na parte mais conservadora de seus críticos e leitores. Acredito ter reunido um conjunto de características que sugerem fortemente – agora que os exemplos se sucederam e reforçaram as proposições iniciais – a importância que os textos e as práticas de Derrida ganham na vida e na obra de Luciano. Retomando e retrabalhando, avant la lettre, os apontamentos fundamentais da desconstrução, o corpus lucianeum instaura nesse conturbado período da tradição ocidental uma reflexão já amadurecida sobre a “irremediável alteridade do próprio” (Brandão, 2001, p. 12).

Os leitores mais céticos – ainda que ingenuamente crédulos nas pretensões epistemológicas de um discurso que se afirma exclusivamente lógico e sério – talvez pudessem questionar a validade de certas passagens em que minhas demonstrações cederam aos charmes do chiste, apontando possíveis inconsistências internas a um ou outro dos argumentos avançados aqui. Gostaria de esclarecer, contudo, que não é preciso se alarmar demasiadamente com isso. Remetendo ao complexo tópico de uma ética da leitura e da discussão – com todos os meandros apontados mais de uma vez por Derrida (1991, 2006) em algumas das muitas querelas intelectuais em que se viu envolvido ao longo de sua vida – sugiro a necessidade de proceder também à presente leitura como Luciano o faria, ou seja, “levando o rir a sério” (Eunápio 2.1.9).16

As implicações éticas de toda e qualquer prática da leitura são fundamentais para ambos os autores, e gostaria de encerrar essas breves sugestões propondo que essa dimensão talvez constitua o mais importante paralelo que se possa traçar entre a desconstrução derridiana e o pensamento luciânico. Acredito que os mais recalcitrantes adversários dessas obras considerarão tal proposta o paroxismo dos paradoxos aqui presentes. Entretanto, se for possível colocar de lado a falsa crença de que Derrida e Luciano seriam pensadores de gabinete, defensores de uma “pedagogiazinha bem determinada” que consistiria em reduzir “as práticas discursivas aos traços textuais” (Foucault apud Peeters, 2013, p. 297), tenho certeza de que a dimensão eminentemente prática de seu pensamento se revelará inequivocamente.

Que se conceda a palavra aos próprios autores:

Quando tento pensar, trabalhar ou escrever e quando acho que algo de “verdadeiro” deve ser declarado no espaço público, na cena pública, pois bem, nenhuma força no mundo me impediria disso. Não é uma questão de coragem, mas quando penso que algo deve ser dito ou pensado, embora de uma maneira “verdadeira” mas ainda indigerível, nenhuma força no mundo poderia me desencorajar de dizê-lo. [...] Aconteceu-me algumas vezes escrever textos que eu não sabia que iam chocar. Eram, por exemplo, críticas a respeito de Lévi-Strauss ou Lacan – seja como for, conheço bastante bem o meio para saber que aquilo ia fazer barulho –, pois bem, era-me impossível guardar aquilo para mim. Isso é uma lei, é como uma pulsão e uma lei: não posso não dizê-lo. (Derrida apud Peeters, 2013, p. 484).

Creio ser possível sugerir – convincentemente – que existe “uma pulsão e uma lei” análogas às de Derrida no exercício escritural preconizado por Luciano, tal como apresentado em suas obras. O autor mostra-se um escritor consciente de suas escolhas, dotado de grande verve contra tudo o que considera indigno das pessoas de seu tempo, sobretudo de homens cultos (isto é, os pepaideuménoi), sendo de se notar que ele escreve sem a menor condescendência para com aqueles que, embora tenham tido acesso à paidéia, não demonstram um comportamento condizente. Da perspectiva adotada por ele – e nisso se revela a inspiração derridiana de seu projeto –, o intelectual (seja ele historiador, filósofo, orador, poeta ou prosador) deve ser alguém

sem medo, incorruptível, livre, amigo da franqueza e da verdade; como diz o poeta cômico, alguém que chame os figos de figos e a gamela de gamela; alguém que não admita nem omita nada por ódio ou por amizade; que a ninguém poupe, nem respeite, nem humilhe; que seja juiz equânime, benevolente com todos a ponto de não dar a um mais que o devido; estrangeiro nos livros e apátrida, autônomo, sem rei, não se preocupando com o que achará este ou aquele, mas dizendo o que se passou. (Luciano. Como se deve escrever a história 41, trad. Jacyntho Brandão).17

De Derrida a Luciano, há algo que guia suas obras e vidas no sentido de levá-los a pensar, trabalhar e escrever – mesmo em aberta polêmica com sua tradição e seus contemporâneos – sempre que acreditam dever agir segundo alguma coisa de “verdadeiro”. Restaria ainda a explorar outros possíveis paralelismos entre eles, como, por exemplo, suas reflexões sobre a verdade, o lógos ou, ainda, sobre a animalidade (e, de certa forma, sobre o abismo do lógos entre humanos e animais).18 Em todo caso, acredito ter sugerido a importância que a leitura de Luciano da obra de Derrida – através dos tempos e espaços aqui visitados – ganha para o desdobramento de certas implicações fundamentalmente éticas de um pensamento da escritura e da diferença.

Referências

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Notas

1 Para a ideia de “gêneros discursivos” empregada aqui: Bakhtin (2016).
2 Para uma contextualização desses momentos da vida de Derrida: Peeters (2013, p. 398; 482-5).
3 Para detalhes do debate com Searle: Derrida (1991). Para detalhes da controvérsia com Habermas: Derrida (2006), Araújo (2014).
4 No original: [καὶ ἁπλῶς, ὡς ἔφημεν,] κωμῳδία τῶν Ἑλλήνων ἐστὶν αὐτῷ ἡ σπουδὴ ἐν λόγῳ πεζῷ. Ἔοικε δὲ αὐτὸς τῶν μηδὲν ὅλως πρεσβευόντων εἶναι· τὰς γὰρ ἄλλων κωμῳδῶν καὶ διαπαίζων δόξας, αὐτὸς ἣν θειάζει οὐ τίθησι, πλὴν εἴ τις αὐτοῦ δόξαν ἐρεῖ τὸ μηδὲν δοξάζειν.
5 No original: Λουκιανός, Σαμοσατεύς, ὁ ἐπικληθεὶς βλάσφημος ἢ δύσφημος, ἢ ἄθεος εἰπεῖν μᾶλλον, ὅτι ἐν τοῖς διαλόγοις αὐτοῦ γελοῖα εἶναι καὶ τὰ περὶ τῶν θείων εἰρημένα παρατίθεται. γέγονε δὲ ἐπῖ τοῦ Καίσαρος Τραιανοῦ καὶ ἐπέκεινα. ἦν δὲ οὗτος τοπρὶν δικηγόρος ἐν Ἀντιοχείᾳ τῆς Συρίας, δυσπραγήσας δ’ ἐν τούτῳ ἐπὶ τὸ λογογραφεῖν ἐτράπη καὶ γέγραπται αὐτῷ ἄπειρα. τελευτῆσαι δὲ αὐτὸν λόγος ὑπὸ κυνῶν, ἐπεὶ κατὰ τῆς ἀληθείας ἐλύττησεν· εἰς γὰρ τὸν Περεγρίνου βίον καθάπτεται τοῦ Χριστιανισμοῦ, καὶ αὐτὸν βλασφημεῖ τὸν Χριστὸν ὁ παμμίαρος. διὸ καὶ τῆς λύττης ποινὰς ἀρκούσας ἐν τῷ παρόντι δέδωκεν, ἐν δὲ τῷ μέλλοντι κληρονόμος τοῦ αἰωνίου πυρὸς μετὰ τοῦ Σατανᾶ γενήσεται.
6 Para uma reflexão sobre a dimensão poiética da linguagem, com ênfase em seus desdobramentos sobre uma teoria dos gêneros discursivos: Coseriu (1982, p. 145-9).
7 No original: ἦν δὲ ἡ μὲν ἐργατικὴ καὶ ἀνδρικὴ καὶ αὐχμηρὰ τὴν κόμην, τὼ χεῖρε τύλων ἀνάπλεως, διεζωσμένη τὴν ἐσθῆτα, τιτάνου καταγέμουσα, οἷος ἦν ὁ θεῖος ὁπότε ξέοι τοὺς λίθους· ἡ ἑτέρα δὲ μάλα εὐπρόσωπος καὶ τὸ σχῆμα εὐπρεπὴς καὶ κόσμιος τὴν ἀναβολήν.
8 A expressão foi cunhada por Jacyntho Brandão e empregada como título de uma seleção de textos de Luciano, nos quais está presente um certo “pendor biográfico”: “Podemos dizer que é a noção de responsabilidade que se aplica ao poeta antigo que faz com que ele não possa reduzir-se ao estatuto do narrador moderno ou de um incerto e romantizado ‘eu poético’, constituindo uma entidade encarnada no corpus textual, que aliás é a única encarnação de que dispõe. É nesse sentido que aqui se fala de biografia literária de Luciano, a qual não se confunde com o que poderia ser ou ter sido uma biografia de Luciano, mas também não dissolve o quanto a literatura de Luciano tem de biográfica. O que interessa é reconhecer esse traço um pouco espalhado por toda parte pelo corpus luciânico, que leva a que se entenda – contraditória ou talvez complementarmente – ora que a vida está visível sob a pele delgada do texto, ora que não se mostra ela senão com extrema avareza.” (Brandão, 2015, p. 15-6).
9 No original: οὐ πάνυ γοῦν συνήθη καὶ φίλα ἐξ ἀρχῆς ἦν ὁ διάλογος καὶ ἡ κωμῳδία, εἴ γε ὁ γὲν οἴκοι καθ᾽ ἑαυτὸν καὶ νὴ Δία ἐν τοῖς περιπάτοις μετ᾽ ὀλίγων τὰς διατριβὰς ἐποιεῖτο, ἡ δὲ παραδοῦσα τῷ Διονύσῳ ἑαυτὴν θεάτρῳ ὡμίλει καὶ ξυνέπαιζε καὶ ἐγελωτοποίει καὶ ἐπέσκωπτε καὶ ἐν ῥυθμῷ ἔβαινε πρὸς αὐλὸν ἐνίοτε, καὶ τὸ ὅλον, ἀναπαίστοις μέτροις ἐποχουμένη τὰ πολλά, τοὺς τοῦ διαλόγου ἑταίρους ἐχλεύαζε φροντιστὰς καὶ μετεωρολέσχας καὶ τὰ τοιαῦτα προσαγορεύουσα· καὶ μίαν ταύτην προαίρεσιν ἐπεποίητο ἐκείνους ἐπισκώπτειν καὶ τὴν Διονυσιακὴν ἐλευθερίαν καταχεῖν αὐτῶν, ἄρτι μὲν ἀεροβατοῦντας δεικνύουσα καὶ νεφέλαις ξυνόντας, ἄρτι δὲ ψυλλῶν πηδήματα διαμετροῦντας, ὡς δῆθεν τὰ ἀέρια λεπτολογουμένους. ὁ διάλογος δὲ σεμνοτάτας ἐποιεῖτο τὰς συνουσίας φύσεώς τε πέρι καὶ ἀρετῆς φιλοσοφῶν· ὥστε το τῶν μουσικῶν τοῦτο, δὶς διὰ πασῶν εἶναι τὴν ἁρμονίαν, ἀπὸ τοῦ ὀξυτάτου ἐς τὸ βαρύτατον. καὶ ὅμως ἐτολμήσαμεν ἡμεῖς τὰ οὕτως ἔχοντα πρὸς ἄλληλα ξυναγαγεῖν καὶ ξυναρμόσαι οὐ πάνυ πειθόμενα οὐδὲ εὐμαρῶς ἀνεχόμενα τὴν κοινωνίαν.
10 Para esclarecimentos sobre esses “indecidíveis” derridianos: Nascimento (2015).
11 Para inúmeros exemplos da forma irreverente com que Derrida lida com Platão e o platonismo: Derrida (2007).
12 No original: ὁ Πλάτων δ᾽ ἄν μοι δοκεῖ καὶ διηγήσασθαί τι τῶν ἐκ Σικελίας ὡς ἂν εἰδὼς τὰ πλεῖστα· τῷ γὰρ Συρακουσίῳ Γέλωνί φασι δυσῶδες εἶναι τὸ στόμα καὶ τοῦτο ἐπὶ πολὺ διαλαθεῖν αὐτόν, οὐδενὸς τολμῶντος ἐλέγχειν τύραννον ἄνδρα, μέχρι δή τινα γυναῖκα ξένην συνενεχθεῖσαν αὐτῷ τολμῆσαι καὶ εἰπεῖν ὅπως ἔχοι· τὸν δὲ παρὰ τὴν γυναῖκα ἐλθόντα τὴν ἑαυτοῦ ὀργίζεσθαι ὅτι οὐκ ἐμήνυσε πρὸς αὐτὸν εἰδυῖα μάλιστα τὴν δυσωδίαν, τὴν δὲ παραιτεῖσθαι συγγνώμην ἔχειν αὐτῇ· ὑπὲρ γὰρ τοῦ μὴ πεπειρᾶσθαι ἄλλου ἀνδρὸς μηδὲ ὁμιλῆσαι πλησίον οἰηθῆναι ἅπασι τοῖς ἀνδράσι τοιοῦτό τι ἀποπνεῖν τοῦ στόματος.
13 A título de exemplo, valeria a pena referenciar os textos que compõem um “dossiê” sobre o engajamento da filosofia francesa contemporânea (especialmente Derrida) com a tradição filosófica grega (especialmente Platão): Alliez (1992), Wolff (1992), Derrida (1992). Além disso, não se pode deixar de mencionar a interessante tabela proposta por Householder (1941) com os números – impressionantes! – de citações e alusões a autores clássicos constantes da obra de Luciano.
14 Sobre a produtiva noção de différance: Derrida (1972), Nascimento (2015, p. 155-62).
15 No original: εἶτα ἠγανακτήσατε λοιδορησαμένου τινός, καὶ ταῦτα εἰδότες ἐμέ, οἷα πρὸς τῆς Κωμῳδίας ἀκούουσα ἐν Διονυσίοις ὅμως φίλην τε αὐτὴν ἥγημαι καὶ οὔτε ἐδικασάμην οὔτε ᾐτιασάμην προσελθοῦσα, ἐφίημι δὲ παίζειν τὰ εἰκότα καὶ τὰ συνήθη τῇ ἑορτῇ; οἶδα γὰρ ὡς οὐκ ἄν τι ὑπὸ σκώμματος χεῖρον γένοιτο, ἀλλὰ τοὐναντίον ὅπερ ἂν ᾖ καλόν, ὥσπερ τὸ χρυσίον ἀποσμώμενον τοῖς κόμμασι, λαμπρότερον ἀποστίλβει καὶ φανερώτερον γίγνεται. ὑμεῖς δὲ οὐκ οἶδα ὅπως ὀργίλοι καὶ ἀγανακτικοὶ γεγόνατε.
16 No original: Λουκιανὸς δὲ ὁ ἐκ Σαμοσάτων, ἀνὴρ σπουδαῖος ἐς τὸ γελασθῆναι.
17 No original: τοιοῦτος οὖν μοι ὁ συγγραφεὺς ἔστω, ἄφοβος, ἀδέκαστος, ἐλεύθερος, παρρησίας καὶ ἀληθείας φίλος, ὡς ὁ κωμικός φησι, τὰ σῦκα σῦκα, τὴν σκάφην δὲ σκάφην ὀνομάσων, οὐ μίσει οὐδὲ φιλίᾳ τι νέμων οὐδὲ φειδόμενος ἢ ἐλεῶν ἢ αἰσχυνόμενος ἢ δυσωπούμενος, ἴσος δικαστής, εὔνους ἅπασιν ἄχρι τοῦ μὴ θατέρῳ ἀπονεῖμαι πλεῖον τοῦ δέοντος, ξένος ἐν τοῖς βιβλίοις καὶ ἄπολις, αὐτόνομος, ἀβασίλευτος, οὐ τί τῷδε ἢ τῷδε δόξει λογιζόμενος, ἀλλὰ τί πέπρακται λέγων.
18 A título de exemplo, que se veja o que afirma Derrida (2002) em seu célebre O animal que logo sou (a seguir). Luciano, por sua vez, desenvolve uma aguda reflexão sobre a animalidade a partir de Eu, Lúcio – memórias de um burro (13), ou ainda, Sonho ou o galo. Sobre a relação entre pensamento e animalidade: Maciel (2016).
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