Dossiê | Dossier

Apresentação: Estudos sobre a música da Antiguidade no Cone Sul

Fábio Vergara Cerqueira
Universidade Federal de Pelotas, Brasil

Apresentação: Estudos sobre a música da Antiguidade no Cone Sul

Classica - Revista Brasileira de Estudos Clássicos, vol. 34, núm. 1, pp. 163-171, 2021

Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos

Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos

Desde a própria Antiguidade grega, a música foi um tema que despertou interesse de historiadores e daqueles que estudavam o passado. Alegres anedotas ou lendas dramáticas sobre eventos musicais, de referências míticas ou humanas, permeavam o pensamento de vários autores em suas remissões ao passado, não somente de historiadores, mas até mesmo de poetas e filósofos. E por meio destas histórias, ou estórias, falavam bem mais do que simplesmente (se é que isto é pouco) de uma história da música ou do músico em si. Quando contavam do duelo musical entre Apolo e o sileno Marsias, que resultou no esfolamento e morte deste, estava em jogo o embate entre o apolinismo e o dionisismo na cultura antiga, representações antagônicas entre cultura e natureza, civilização e barbárie. Quando contavam de músicos que haviam sido proibidos de se apresentar em alguma cidade, como Esparta, por que acrescentavam uma corda ao seu instrumento, mais do que tudo estava em jogo a relação entre música e política, e os próprios sistemas políticos. Muita erudição sobre o passado teve a música como assunto. Houve uma historiografia antiga sobre música e um campo de teoria musical impregnado de reflexões filosóficas e pedagógicas.

Faço este prólogo para mostrar-lhes como a relação entre a música e a pesquisa sobre o passado, seja filológica, histórica ou arqueológica, não é algo novo na tradição ocidental. Contudo, ao longo do último século, e sobretudo nas três últimas décadas, o estudo ganhou novo fôlego, impulsionado pelas possibilidades do conhecimento inter e multidisciplinar, assim como pelo desejo de fazer a música antiga viver novamente.

Seja no presente, seja no passado distante, estudar o passado musical é muito mais do que simplesmente estudar as práticas musicais e seus agentes. Falo da música como uma perspectiva para se pensar o passado da humanidade. Trata-se de pensar as sociedades pretéritas através da música, e entender a música através destas sociedades. Apropriando-me do conceito de Marcel Mauss, diria que a maior vantagem está em estudar a música como um “fato social total”, no qual as mais variadas facetas da vida social e cultural, imbricadas umas nas outras, costuram uma rede de sentidos que permeia e constitui a cotidianidade humana. Assim, estudar a música grega antiga, praticada por gregos e romanos, é mais do que estudar a história da música: é estudar essa história através da música. Por meio dela, pode-se estudar guerra, religião, gênero, educação, mundo do trabalho, técnica, estética, identidade em tantas outras abordagens.

A música tem sido objeto de estudo das variadas disciplinas que se ocupam da Antiguidade, de modo que o estudo da música antiga se estrutura necessariamente de maneira interdisciplinar. Exemplo disso é o campo emergente da arqueologia da música antiga. Um conjunto de disciplinas concorre para estruturá-la, acarretando consequências teóricas e metodológicas sobre este campo de pesquisa. Em busca da compreensão dos comportamentos e sons do passado musical, dois campos multidisciplinares se somam. No primeiro campo, temos o uso das fontes escritas e das tradições musicais vivas. Estas fontes escritas compõem os estudos filológicos e históricos: tratados musicais, referências literárias a comportamentos, relatos sobre músicos e obras, entre tantos outros tipos de registros. As tradições musicais vivas são observadas pelo etnógrafo, interessado pela antropologia da música, que produz uma interpretação etnomusicológica destas experiências musicais. No segundo campo, arranjam-se outras disciplinas e tipos de fontes. Basicamente, são dois tipos de registros empíricos: os artefatos que produzem sons, nomeadamente os instrumentos musicais, mas não só, e as representações visuais de músicos, de instrumentos e de cenas musicais. Por excelência, o estudo dos instrumentos musicais, preservados pelas tradições musicais ou encontrados no contexto arqueológico, são objeto de uma disciplina em particular: a organologia, que se dedica ao estudo dos instrumentos musicais. Daí um ramo particular da arqueologia, a arqueoorganologia. Porém, estudos modernos têm possibilitado uma profícua interação com a física, no estudo por exemplo da acústica, mas também para cálculos aplicados necessários ao fabrico moderno de réplicas de instrumentos antigos: por exemplo, como resolver a questão da pressão das cordas sobre os braços de madeira da lira, para estes não romperem? Assim, a investigação aplicada, baseada na cooperação com luthiers, tem sido igualmente indispensável para se poder recriar instrumentos musicais gregos. Já as representações visuais alimentam três disciplinas: a própria organologia, a arqueologia e a iconologia musical, sem deixarem de ser muito úteis aos modernos fabricantes de instrumentos antigos ou a músicos que desafiam hoje os séculos para recriar a música praticada pelos antigos gregos.

No Brasil, um número reduzido de pesquisadores se dedica há algum tempo ao campo de estudo da música grega e romana antiga, com reconhecimento nacional e, em alguns casos, inclusive internacional, enraizados principalmente em três universidades (UFPel, UFPR e UnB). Nos últimos anos, porém, desenvolveram-se pesquisas de pós-graduação relacionadas à música no Mediterrâneo antigo em diferentes universidades brasileiras, tais como UNICAMP, USP, UFG, UFRJ e UERJ. Mas de modo geral o desenvolvimento da área em nosso país está superlativamente muito abaixo da importância que a cultura musical tinha entre os antigos. Surge quase um fenômeno de inversão, pois, na comparação com o volume dos estudos relacionados à literatura, ao teatro, às línguas antigas, à arquitetura, à filosofia e à ciência antigas, a impressão gerada é que a música seria menos importante que essas manifestações. Esta é no entanto uma falsa impressão, muito distante da verdade. Ocorre, portanto, um notável descompasso entre a importância que a música tinha para os antigos e o seu espaço nos estudos da Antiguidade em nosso país. Preocupados com este descompasso, situação que não se justifica manter, este núcleo de pesquisadores baseados na UFPel, na UFPR e na UnB vem pensando estratégias para reverter essa situação. Cientes da necessidade de impulsionar, integrar e agregar os estudos sobre a música antiga no Brasil, planejava-se como primeiro passo a realização de um evento.

Como em 2019 ocorreria a vigésima edição da XX Jornada de História Antiga da UFPel, dado seu caráter comemorativo, pareceu adequado eleger como tema a música na Antiguidade grega e romana. Assim, Pelotas, povoada em sua paisagem central por liras e cítaras, por Apolos e Musas, outrora conhecida como Atenas do Sul, foi escolhida para realizar o primeiro evento sobre o assunto, que seria o primeiro passo de uma estratégia para estruturar o campo no Brasil. Montamos a proposta, definimos os convidados e encaminhamos o pedido de financiamento às agências, com certo ceticismo com relação aos possíveis resultados, haja vista a situação em que se encontrava o país. No entanto, fomos positivamente surpreendidos com a aprovação integral dos pedidos, por parte das duas principais agências de fomento federais: a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), do Ministério da Educação, e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), do Ministério de Ciência e Tecnologia, contribuindo assim para garantir ao evento o desejado porte internacional.

Na verdade, o encontro, denominado “Melodias visuais, poesias musicais: Antiguidades sonoras”, não foi somente o primeiro evento no Brasil. Tanto quanto nos alcança saber, foi o primeiro evento na América Latina dedicado exclusivamente à música na Antiguidade. Ao elaborarmos a proposta, porém, pensamos ser pertinente uma abordagem mais abrangente e inclusiva, do ponto de vista cronológico e geográfico, permitindo por exemplo a participação de colegas egiptólogos ou assiriólogos, mas também de especialistas em música pré-colombiana, assim como estudos sobre a música indiana. Deste modo, tendo em vista no Brasil as áreas de História Antiga e História Medieval comporem uma mesma área nas agências de fomento, e considerando nossa vontade de uma maior interação com colegas e estudantes da área de música, decidimos incluir na proposta a música medieval, o que possibilitou também inserir na programação mais apresentações musicais – visto que a prática da música antiga greco-romana ainda não se desenvolveu em nosso país, achamos importante nos aproximarmos de músicos que praticam a música medieval, de modo a seduzi-los sobre as possibilidades de performance musical de repertórios de temporalidades mais recuadas. Vale ressaltar que as perspectivas da performance (da e a partir) da música grega antiga, ontem e hoje, foram um dos focos privilegiados neste encontro, buscando aproximar os estudos históricos, filológicos, filosóficos, iconográficos e arqueológicos das possibilidades da prática musical. Abordagens sobre recepção e sobre fazer música grega hoje estiveram presentes.

No formato de nossa proposta, pensamos em um evento multifacetado e procuramos combinar diferentes estratégias. Uma foi oportunizar aos estudantes de graduação e pós-graduação, assim como aos pesquisadores brasileiros, o contato com alguns pesquisadores internacionais de referência dentro da área. Essa aproximação se mostrou exitosa, não só como fonte para estímulo, mas também para se viabilizar a articulação de redes mais ampliadas em torno da temática. Convidamos alguns pesquisadores europeus e uma pesquisadora brasileira atuante em instituição europeia: assim integraram o rol de palestrantes os pesquisadores Christophe Vendries (Université de Rennes), Eleonora Rocconi (Università di Pavia), Daniela Castaldo (Università del Salento) e Sylvain Perrot (CNRS), aos quais se somaram Erica Angliker (Univesity of London). De outro lado, olhamos também para a aproximação com os países vizinhos no Cone Sul, Uruguai e Argentina, de onde vêm respectivamente os palestrantes Adrián Castillo (Universidad de la Republica, Montevideo) e María Cecilia Colombani (Universidad de Morón; Universidad Nacional de Mar del Plata).

Ao mesmo tempo, buscamos tornar a jornada um espaço de valorização e aproximação de pesquisadores juniores que têm se dedicado ao tema da música antiga, sob enfoques variados, em diferentes universidades espalhadas pelo país, jovens pesquisadores que concluíram seus mestrados e doutorados nos últimos dez anos. Graças ao financiamento obtido, pudemos convidar todos aqueles que fizeram mestrado e doutorado na área de música na Antiguidade. Praticamente todos se fizeram presentes. Isto era para nós fundamental, dado o objetivo de criar, a partir desta jornada, um grupo nacional ou latino-americano de estudos sobre a música antiga. Nossa percepção é que estes jovens pesquisadores, em início de carreira, sentiram-se muito empolgados, em muitos casos tendo sido o primeiro convite recebido para palestrar em um evento internacional, na condição de pesquisadores emergentes.

Com isso se propiciou um ambiente muito interessante, pois conseguimos mesclar, em um ambiente horizontalizado, conferencistas estrangeiros europeus e sul-americanos, palestrantes nacionais seniores e juniores, e estudantes de graduação e pós-graduação. Paralelamente às atividades destinadas aos palestrantes convidados, abrimos o Call for papers que resultou em um número bastante expressivo de inscritos, entre os quais graduandos, mestrandos, doutorandos, provindos das mais variadas universidades brasileiras, argentinas e uruguaias (ao todo 41 trabalhos). Assim, para além dos pesquisadores que já conhecíamos, a abertura para inscrição de propostas possibilitou alargar significativamente a rede de pessoas envolvidas com a música antiga, como tema direto ou indireto de pesquisa.

Quanto às inscrições de trabalhos, dado o perfil interdisciplinar do encontro, a divulgação buscou chegar a pesquisadores e estudantes, graduandos e pós-graduandos, brasileiros mas também de outros países, com destaque aos países vizinhos do Cone Sul, dedicados a áreas tais como história, arqueologia, música, literatura, filosofia, história da arte, entre outras especialidades, como epigrafia ou iconografia. Tivemos particular interesse em explorar as potencialidades de estudo do passado musical a partir do cruzamento entre a cultura material e a iconografia.

Como um dos principais resultados, foi na jornada que nasceu o Grupo Brasileiro de Estudos sobre a Música Grega e Romana Antiga e sua Recepção – que talvez se reconfigure em um grupo sul-americano e que tem abertura para estudiosos de música egípcia e mesopotâmica, de um lado, mas também de música medieval, de outro. Um dos resultados foi o planejamento de um segundo encontro, que ocorreria em novembro de 2020 na Universidade Federal do Paraná, em Curitiba, mas que não pôde ser realizado em razão da pandemia.

Acreditamos que demos passos importantes para que os estudos sobre a música na Antiguidade conquistem mais visibilidade nos Estudos Clássicos no Brasil. Na conferência de abertura do encontro de grupos de estudo promovido pela Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos, em modo remoto, em julho de 2020, pudemos divulgar a criação do grupo e a valorização da temática perante colegas de outras especialidades.

Uma de nossas deliberações, como estratégia para fortalecimento da área no país, foi a produção de publicações coletivas, coletâneas ou dossiês temáticos, que ao mesmo tempo agreguem pesquisadores, deem visibilidade à área e estimulem novos estudos e novas carreiras. Buscando cumprir este escopo, propusemos à Classica este dossiê, que procura apresentar pesquisas atuais, em curso ou concluídas, que têm como objeto a música na Antiguidade, num espectro multi e interdisciplinar. Nosso objetivo é apresentar um cenário de estudos em desenvolvimento no Cone Sul, na Argentina, Brasil e Uruguai, como perspectiva inicial para impulsionar a dimensão para a qual está vocacionado o Grupo Brasileiro de Estudos sobre a Música Grega e Romana Antiga e sua Recepção.

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O dossiê compõe-se assim de sete textos, em português e espanhol, resultado da escrita de nove autores, vinculados a sete universidades (Universidad Nacional de Mar del Plata, Universidad de la Republica Oriental del Uruguay, UFPel, UFPR, UnB, UNICAMP e USP). Apesar de a maioria dos textos estar associada à tradição da música antiga grega e romana, incluindo as possibilidades de performance contemporânea, um dos textos tem como objeto a música na Índia antiga, colocando-a em diálogo, numa perspectiva antropológica, com a tradição musical grega. Aqui o leitor encontrará contribuições vindas da filologia, da mitologia, da iconografia, da arqueologia, da filosofia, da teoria musical, da musicologia e dos estudos da cultura performativa grega antiga.

Abre o dossiê o texto de Lidiane Carderaro dos Santos, pesquisadora especializada na iconografia da música grega antiga, que recentemente concluiu seu doutorado no Museu de Arqueologia e Etnologia da Unversidade de São Paulo, sob o título Relações entre música e mitologia na iconografia de vasos gregos – a representação de seres mitológicos com atributos musicais. Sua contribuição, neste dossiê, intitula-se “A arte das Musas! Uma introdução às relações entre música e mito na Grécia Antiga”. O foco na mitologia é oportuno para se iniciar a pensar o lugar da música no imaginário grego, pois vemos a centralidade da música entre os fundamentos homéricos da cultura grega. A documentação iconográfica está bastante presente no argumento e em ilustrações (em desenhos elaborados pela autora), que trazem narrativas variadas do envolvimento de personagens mitológicas com a música.

A segunda contribuição, de autoria de João Gomes Braatz e Carolina Kesser Barcellos Dias, nos transporta ao subcontinente indiano. João Gomes Braazt é historiador, mestrando em História pela Universidade Federal de Pelotas, que desde a graduação se interessa pela Índia antiga, assim como pelos encontros culturais greco-indianos na Báctria. Carolina Dias, professora permanente do PPG em História da UFPel, é arqueóloga, especializada na ceramologia grega antiga, com grande domínio nos estudos de iconografia e de atribuição. Os dois pesquisadores se juntaram para trazer esta brilhante contribuição, sob o título “‘No clangor das conchas’: o som da guerra em Mahabharata”. Artigo iminentemente interdisciplinar, percorrendo evidências arqueológicas, iconográficas e literárias, aliando-se a uma reflexão teórica consistente sobre o som, adentra o processo de ritualização da guerra, com foco na sociedade guerreira indiana descrita no Maabárata (Mahabharata), poema épico sânscrito que tem como plano de fundo uma guerra de proporções grandiosas, cujas narrativas teriam sido compiladas entre o século III a.C. e o século III d.C., e remontariam relatando eventos memoriais, em que mito e história se mesclam, que remontariam aos séculos IX e VIII a.C., relatando eventos memoriais, em que mito história se mesclam.

Os autores analisam trechos selecionados da obra que narram detalhadamente as ações dos guerreiros durante o conflito, para buscar compreender a importância do som, e especificamente do som das conchas, para a guerra na Antiguidade indiana. Traçam paralelos com outros contextos, sobretudo exemplos da cultura grega, dada a analogia encontrada no uso do som e dos sopros em atividades militares. Observam no Maabárata a importância do som como rito, uma maneira de estar em contato com o sagrado antes e após o combate. O som configura-se, também, como o meio de amedrontar o inimigo: o alto som das conchas sopradas pelos heróis da batalha, das batidas de tambores e dos gritos de guerra demonstram a dimensão de um exército poderoso que se mobiliza para o início da ação, e delimita o sucesso no combate.

Os autores avançam no campo da arqueoorganologia, ao aprofundarem o estudo do uso de conchas como instrumentos musicais de sopro. Inclusive, em perspectiva comparativa, trazem exemplares indianos do instrumento, de datação posterior, conservados em coleções museológicas, que evidenciam a singularidade destes na cultura musical indiana, dada sua importância e presença na tradição musical ao longo de muitos séculos, e sobejamente sua relação com o contexto militar, como demonstram testemunhos iconográficos conservados de épocas posteriores.

O terceiro artigo do dossiê nos redireciona aos estudos sobre a música antiga desenvolvidos a partir da filosofia. Há muito a obra de Platão vem despertando o interesse dos estudiosos com relação ao papel da música. Mas é com Aristóteles que a autora, Viviana Suñol, se ocupa, em especial com a Política. Professora de filosofia antiga da Universidad Nacional de La Plata, Argentina, e pesquisadora do CONICET, a autora tem se dedicado ao tema da educação musical em Aristóteles e seu papel para a felicidade e para a vida política. Em sua contribuição, intitulada “La relevancia filosófica de la educación musical en la Política de Aristóteles”, Viviana Suñol estuda o livro VIII da Política. Foca em geral a educação, mas em específico as reflexões de Aristóteles sobre como se deveria praticar a mousiké no melhor regime político. Ela trata esta passagem como uma das mais importantes para se estudar a música antiga. Porém, além disso, ressalta a escassez de investigações que destaquem a relevância filosófica que a música tinha no pensamento aristotélico, apesar de ele mesmo reconhecer não ser um especialista na área. Entretanto, o papel que atribui à música em seu programa educativo ideal, e a hierarquia de funções que a ela atribui, mostram a relevância que esta tinha em seu projeto ético-político.

O objetivo do artigo de Viviana Suñol é mostrar que, para Aristóteles, a música não somente era uma parte essencial da vida e da organização política, como também uma condição para a vida feliz dos cidadãos. A autora, em um primeiro momento, mostra como a música se insere no projeto político aristotélico, para, em um segundo momento, analisar as funções que a música possuía, a hierarquia dessas funções e a interdependência entre elas.

A quarta contribuição nos faz avançar para o último século antes da era comum. Com Filodemo de Gadara (110-35 a.C.), Adrián Castillo nos coloca em um terreno em que filosofia e teoria musical estão intrinsecamente imbricadas uma na outra, e já em um contexto em que estudar a música grega implica também pensar sua relação com o mundo romano. Adrián Castillo Giovanatti é professor de grego e de filosofia antiga da Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación da Universidad de la Republica, Montevidéu, Uruguai, pesquisador focado na filosofia helenística, com trajetória nos estudos e traduções de autores das escolas estoica e epicurista. Em seu artigo “Sobre el significado de μουσική en los Comentarios sobre música de Filodemo”, ele explora a discussão que Filodemo de Gadara promove em torno do conceito de mousiké, em especial a problemática da relação entre poesia e música, em que sua concepção epicurista se coloca em oposição à visão de seus adversários estoicos, mais vinculados neste aspecto à tradição platônica. Por essa razão, Adrián Castillo explora essa relação também nos textos de Platão, em que a música é defendida como uma arte poético-musical, com um lugar determinado na educação moral dos jovens. A originalidade da contribuição do autor uruguaio está em colocar em paralelo as longas citações d’As leis, em que Platão propugna a dependência da música com relação à poesia, e a segunda parte dos comentários, em que Filodemo, na perspectiva epicurista, defende a independência da música relativamente à poesia.

O quinto texto da coletânea intitula-se “Orfeu e noções de música em Proclo”, tendo como autores Michel Mendes e o organizador deste dossiê. Michel Mendes tem sua formação vinculada à UNICAMP, mais especificamente ao Programa de Pós-Graduação em Linguística, Área de Letras Clássicas, onde realizou seu mestrado sobre música romana e conclui em dezembro de 2020 seu doutorado, intitulado De Institutionemusicade Boécio: um olhar romano tardio sobre a música. Em sua tese, avança sobre a Antiguidade Tardia, buscando a concepção de música neste neoplatônico romano, nascido em torno de 480 d.C. em Roma e falecido em 524 d.C. em Pavia, que foi uma das principais pontes entre o pensamento antigo e medieval, autor em que a dimensão filosófica da música, com base em uma tradição platônica tardia, alia-se a sólidos conhecimentos de teoria musical. Este artigo resulta de um desafio que nos propusemos, em razão de preocupações comuns em torno de querer compreender as concepções sobre a música grega na Antiguidade Tardia. Tendo em vista ser a figura de Orfeu músico muito presente na iconografia romana tardo-imperial (em suportes variados, tais como mosaicos e cerâmica sigilata), colocamo-nos o objetivo de buscar entender como esta personagem é mobilizada no pensamento filosófico neoplatônico do quinto século e como se articulam concepções sobre a música em torno de sua figura. Nesta perspectiva, propusemos o artigo “Orfeu e noções de música em Proclo”, em que investigamos o lugar de Orfeu e a música a ele relacionada na Teologia platônica procliana, considerada uma das mais extensas obras que chegaram até nós de Proclo de Lícia (410-485 d.C.), nascido em Constantinopla e educado em Atenas a partir de 430 d.C., que veio a suceder a Siriano de Alexandria (falecido em 437 d.C.) na liderança da escola platônica ateniense.

A Teologia platônica revela uma interessante concepção do mito órfico no sistema teológico procliano. Mas fomos também aos comentários de Proclo às obras de Platão, em que se repetem considerações sobre Orfeu, assim como aos Hinos órficos a ele atribuídos, que consistem em um conjunto de fragmentos de sete hinos compostos sobre as principais divindades que parecem estar relacionadas ao culto órfico que este conhecia. Porém, Orfeu em si não é citado de maneira direta nesses hinos, pelo menos nos fragmentos supérstites. Nessa medida, focamos mais especificamente o hino III, em que se encontram evidências de seu conhecimento sobre a “música cósmica”, tradição pitagórica conservada no neoplatonismo, como confirma a Teologia platônica.

A sexta contribuição tem como autor Roosevelt Rocha, professor de grego da Universidade Federal do Paraná, autor da primeira tradução para o português do tratado Sobre a música de Plutarco (ou Pseudo-Plutarco), publicada por Coimbra, assim como da tradução em elaboração de tratados remanescentes de Aristóxeno de Tarento (360-300 a.C.). Pela sua dedicação à tradução dos tratados de teoria musical, é um destacado conhecedor em nosso país, hoje, do campo da teoria da música grega antiga. Seu texto nesta coletânea, intitulado “O sistema de notação musical usado na Antiguidade Clássica: uma introdução”, traz assim ao leitor um debate atualizado sobre a notação musical grega, ao mesmo tempo que permite que aquele que ainda não tenha familiaridade com o tema possa adquirir uma compreensão inicial sobre a prática dos antigos gregos de terem adotado alguns sistemas de notação musical, que tiveram sua evolução ao longo de alguns séculos, sempre em relação com as situações de performance musical e com o alcance dos conhecimentos teóricos de cada época.

Roosevelt Rocha apresenta assim informações básicas sobre a origem e o desenvolvimento do sistema de notação musical utilizado pelos músicos da Antiguidade greco-romana. Tomando como base Martin West, Thomas Mathiesen e Stefan Hagel, trata da relação entre a evolução do sistema de notação e as transformações que aconteceram no que diz respeito à performance musical, mostrando que a notação surgiu a partir de um núcleo simples de símbolos e se expandiu até um sistema complexo e extenso, cuja extensão mais complexa nos é dada a conhecer graças a um achado muito especial, as chamadas Tábuas de Alípio, um professor de música que teria atuado em Roma e que entre o final do século IV e início do século V d.C. teria compilado em sua Introductio musica inúmeros conhecimentos precedentes a que teve acesso.

Em meados do século XIX, impactado pelo potencial desta descoberta, Friederich Bellermann teria publicado a primeira obra sobre a notação musical grega, intitulada Die Tonleitern und Musiknoten der Griechen (Berlin, 1847), abrindo caminho para a decifração do Epitáfio de Seikilos (séc. II d.C.) e dos dois Hinos délficos a Apolo (séc. II a.C.), textos musicais conservados na pedra, de modo praticamente integral, descobertos algumas décadas mais tarde, publicados e transcritos para nosso sistema moderno de notação, respectivamente, por William Mitchell Ramsay, em 1883, e por Théodore Reinach, em 1893.

Estas tábuas de Alípios, analisadas por Roosevelt Rocha, qual tabelas de um manual, continham 15 tropoi ou tonoi, que podemos aproximadamente traduzir como escalas, organizados em dois grupos de sinais gráficos: o primeiro, notação musical para o canto, para a voz; o segundo, para o instrumento. O autor propõe-se demonstrar que é importante adotar o paradigma histórico para compreender o funcionamento da escrita musical grega, em sua relação com a prática e com a teoria musical.

O dossiê se encerra com a contribuição de Marcus Mota, professor do Departamento de Artes Cênicas da Universidade de Brasília, onde coordena o Laboratório de Dramaturgia. O pesquisador se notabiliza por trabalhos que envolvem a cultura performativa da Antiguidade grega e suas várias possibilidades de ser transformada em uma performance presente, e aqui acumula experiências, quer seja na composição musical e na montagem de espetáculos (musicais, teatrais e coreográficos), com amplo domínio de recursos cibernéticos, em que não se limita apenas a interpretar textos musicais antigos, mas acha caminhos para criar contemporaneamente música/dança/teatro gregos, quer a partir da música grega. Sua contribuição em nosso dossiê, “Música grega antiga em performance: modalidades e experimentos a partir do Laboratório de Dramaturgia da Universidade de Brasília”, traz assim um importante registro das investigações híbridas entre filologia e performance, as quais foram referência para pesquisas e realizações estéticas realizadas neste laboratório. O autor discorre assim sobre modos de aproximação e tensão entre Estudos Clássicos, Musicologia e Dramaturgia, campos multi e transdisciplinares em que as descontinuidades entre erudição acadêmica e processos criativos interartísticos têm possibilitado espaços para proposição e revisão de conceitos e experiências que partem da cultura performativa grega antiga (mousiké).

Assim, entendemos que este dossiê cumpre seu papel, ao mostrar o Cone Sul como um espaço de emergência do campo da música do Mundo Antigo nas Américas, com vistas à estruturação deste importante e necessário domínio de estudos da Antiguidade grega. Ao mesmo tempo, apresenta as múltiplas direções que os estudos da música antiga seguem entre nós, articulando filologia, mitologia, filosofia, iconografia, arqueologia da música, teoria musical e performance. A participação de pesquisadores juniores e em formação indica o potencial de expansão da área nos anos vindouros.

Fábio Vergara Cerqueira,

o organizador.

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