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PODER, LEGITIMAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO DE RIQUEZAS ENTRE OS AQUEUS (ILÍADA, CANTO I)1
POWER, LEGITIMACY, AND WEALTH DISTRIBUTION AMONG THE ACHAEANS (ILIAD, BOOK I)
PODER, LEGITIMAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO DE RIQUEZAS ENTRE OS AQUEUS (ILÍADA, CANTO I)1
Classica - Revista Brasileira de Estudos Clássicos, vol. 34, núm. 2, pp. 1-20, 2021
Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos
Recepción: 24 Junio 2020
Aprobación: 16 Julio 2020
Resumo: Uma interpretação do conflito entre Aquiles e Agamêmnon, no canto I da Ilíada, com o objetivo de analisar a lógica do poder por trás da sequência de incidentes que dão início à cólera (mênis) de Aquiles. A disputa, que começa como um embate entre o poder humano de Agamêmnon e o poder divino de Apolo através de seu sacerdote Crises, acaba por revelar toda uma dinâmica do poder humano e do poder divino, em que a capacidade de destruição, os privilégios sociais e a legitimação do poder se integram à ordem cósmica e política de Zeus.
Palavras-chave: Homero, Aquiles, Agamêmnon, honra, cólera.
Abstract: An interpretation of the conflict between Agamemnon and Achilles in Iliad’s book I with its main focus on analyzing the logic of power behind the sequence of events that give rise to Achilles’ wrath (menis). The dispute, which starts as a clash of Agamemnon’s human power against Apollo’s divine power, through his priest Chryses, ends up revealing the whole power dynamics of human and divine power, in which the potential for destruction, the social privileges and the legitimacy of power are integrated in Zeus’ cosmic and political order.
Keywords: Homer, Achilles, Agamemnon, honor, wrath.
É sempre bem lembrado como o principal guerreiro grego da Ilíada é apresentado, no proêmio do poema, por seu impacto negativo no próprio exército: as mortes e dores causadas por sua mênis, cólera que ameaça romper a ordem cósmica e social (I, 1-3).2 É também sempre bem lembrado como esse impacto é resultado de um conflito que envolve homens (Aquiles, o filho de Peleu, e Agamêmnon, o filho de Atreu) e deuses (Apolo, por meio do sacerdote Crises, e Zeus, com a articulação de Tétis).3 A proposta deste artigo é chamar a atenção para como, logo no início do poema, apresenta-se um conflito entre critérios diferentes para a avaliação do poder dos guerreiros que define cada um desses guerreiros e os enquadra numa estrutura social que responde à ordenação cósmica divina. Compreendo aqui poder, grosso modo, como a capacidade de coerção ou persuasão que, aplicada à tomada de decisões que envolvem um grupo de pessoas, estabelece hierarquias de comando.4 Legitimidade, como o reconhecimento social dessa capacidade.5
Os dois critérios conflitantes têm em comum estarem fundamentados na capacidade de destruição6 e na distribuição privilegiada de sinais de honra, a recompensa ou prêmio (géras) merecido conforme o prestígio ou privilégio (timḗ) de cada um.7 Essa recompensa é atribuída com a distribuição (dasmós) dos recursos obtidos nos saques realizados pelo exército. Tanto a distribuição quanto o privilégio que a orienta estão em jogo nos dois erros de Agamêmnon, que introduzem o recorte narrativo da Ilíada.
O início da desavença está também relacionado à capacidade de destruição divina. A primeira presença divina no poema é a deusa – a Musa, que possibilita o canto a respeito da mênis (I, 1). A segunda é Hades, que recebe em seus domínios as almas (psykhaí, I, 3) dos muitos guerreiros mortos, vítimas da mênis. A terceira é Zeus, cujo desígnio ou deliberação (boulḗ, I, 5) articula a construção narrativa do poema com a tradição poética e com a experiência do divino.8 A quarta é Apolo, que se apresenta como pivô do conflito entre Aquiles e Agamêmnon (I, 7-10). Quando Crises chega com as insígnias que o identificam como sacerdote de Apolo, ele invoca o deus e oferece um resgate (ápoina) por sua filha, levada por Agamêmnon como prêmio de guerra (I, 14-21). O exército imediatamente concorda que seu pedido seja respeitado (I, 21-22).9 Entretanto, ao contrário do interesse geral,10 o que se segue é o primeiro erro de Agamêmnon (I, 26-32):11
Ancião, que eu não tope contigo junto às cavas naus:
não te demores agora nem voltes mais tarde;
receio que o cetro e a grinalda do deus não te protejam.
Não libertarei tua filha; a velhice a pegará antes,
longe da pátria, em nossa propriedade em Argos,
ativa junto ao altar e procurando minha cama.12
Para a salvo voltares, não me provoques.13
Agamêmnon se vangloria mencionando a condição das vítimas da guerra, ameaça o sacerdote e despreza os sinais de sua relação especial com o deus.14 O erro aqui é, no momento de indignação, não levar em conta a capacidade de destruição do sacerdote (via Apolo) e, consequentemente, avaliar mal seu próprio direito de manter a divisão do produto do saque tal como estava. Percebendo-se impotente diante da destruição causada pelo deus, Agamêmnon tem que reconhecer que é melhor obedecê-lo pelo bem da tropa (I, 116-7).15 Por seu contato especial com Apolo (I, 33-43), Crises é capaz de convencê-lo a causar grande mortandade entre os aqueus (I, 50-3).16 Na narrativa da Ilíada, essa é a primeira ação de um deus em cena e a primeira demonstração do poder dos deuses sobre os humanos. O momento é poeticamente valorizado: ao assumir essa função terrível, Apolo, trazendo a morte, é representado com uma imagem oposta a sua associação ao Sol posterior, no período clássico:17 “chegou como chega a noite” (ὃ δ’ ἤϊε νυκτὶ ἐοικώς, I, 47). Os humanos devem respeitar (azómenoi, I, 21) os deuses e os que lhes são queridos por causa da capacidade que esses têm de matar em grande escala aqueles que contrariam seus interesses.
Curiosamente, a primeira aparição de Aquiles, anunciado nos primeiros versos como a causa de tantas mortes e sofrimentos aos aqueus,18 é uma reação às mortes dos guerreiros gregos, incitada por Hera, que se compadecia do exército (I, 53-6).19 No décimo dia de peste, Aquiles é quem convoca a assembleia e assume o papel de líder preocupado com o fracasso da guerra, com os motivos das mortes e com as possíveis soluções para a situação (I, 59-67).20 Ele até evita mencionar Agamêmnon quando levanta a necessidade de entender “por que razão se enraiveceu Febo Apolo” (ὅ τι τόσσον ἐχώσατο Φοῖβος Ἀπόλλων, I, 64).21 Calcas, o adivinho, com a garantia de que Aquiles o protegeria da possível raiva (khólon, I, 81) de Agamêmnon,22 revela a todos as causas e o modo de apaziguar o deus. Assim, indica a mênis de Apolo (I, 75), cólera com grande impacto destrutivo sobre os aqueus,23 contra o filho de Atreu, devido ao desrespeito com seu sacerdote (I, 94-5). Indica também que essa cólera poderia ser aplacada com a devolução da filha raptada sem a cobrança de um resgate, seguida de uma hecatombe (I, 99).
Nas palavras de Calcas, Agamêmnon é o homem que “chefia a todos os argivos, e os aqueus a ele obedecem” (I, 79). O verbo usado para indicar o exercício da autoridade é kratéō, a efetivação de seu krátos, “poder”.24 O exército aqueu é formado por soldados sob comando de chefes locais ou reis (basilêes).25 Entre os chefes, por sua vez, Agamêmnon tem uma posição privilegiada de comando. Essa posição poderia estar relacionada ao fato de liderar diretamente o maior contingente de soldados (II, 569-80) e de ter reunido o exército para a expedição contra Troia (I, 152-9).26 Entretanto, colocado à prova nesse início de poema, o seu desempenho como líder não é positivo. O próprio intervalo de nove dias (I, 53) entre o início das mortes e a reunião da assembleia pode ser uma marca negativa para sua atuação, ainda mais quando a iniciativa de se mobilizar para resolver a situação vem de outro chefe. Ainda assim, a decisão de devolver Criseida para evitar a morte de mais gente (I, 117) é acertada, mas essa resposta só acontece depois do insulto ao adivinho (I, 106-10) e da manifestação de sua preferência por Criseida em comparação com Clitemnestra, sua esposa legítima (I, 113-20). No canto I, mesmo quando Agamêmnon está tomando uma decisão razoável, sua caracterização é negativa.
O problema é que a exigência de Agamêmnon de ser ressarcido pelo exército para que não fique sem o reconhecimento material que julga adequado (I, 118-9) esbarra no modo como se organiza a posse de riquezas no exército aqueu. Assim que o produto do saque dos territórios inimigos é reunido, para formar o que pode ser chamado de um tesouro público (xynḗïa keímena, I, 124), ele é distribuído para donos particulares, de modo que não resta nenhuma reserva comum a partir da qual Agamêmnon possa ser indenizado.27 Esse processo é relatado por Aquiles: as riquezas capturadas pelos soldados são levadas a Agamêmnon, que redistribui o montante entre os outros chefes (IX, 330-4).28 Organizar essa distribuição é um privilégio consentido pelo exército ao líder, e o prêmio recebido é também um reconhecimento público da honra de cada um diante do exército, de modo que a distribuição é também tratada como um ato coletivo dos aqueus (I, 162).
Duas concepções fundamentais da moralidade guerreira homérica direcionam o segundo erro de Agamêmnon: a ideia de que as riquezas são distribuídas conforme o privilégio ou honra (timḗ) de cada um, e a importância dada à reputação pessoal, com a correspondência entre a identidade pessoal e a imagem social de um indivíduo.29 Como a sua imagem e o seu reconhecimento público são prioridades e como as riquezas já estão distribuídas, o único modo de evitar a desvalorização da timḗ de um guerreiro exige a desvalorização da timḗ de outro.30 Agamêmnon se vê num ponto tão alto da hierarquia entre os aqueus que propõe uma redistribuição que desonra Aquiles, ainda que o erro anterior tenha sido do próprio Atrida.31 O único poder que o líder dos aqueus reconhece como superior é o poder do deus, o de Aquiles não o preocupa (I, 179-182).
Aquiles, antes de propor que se triplique o butim de Agamêmnon na distribuição do saque na eventual queda de Troia (I, 128), já o trata como “o mais ganancioso de todos os homens” (philokteanṓtate pántōn, I, 122).32 Essa impressão é ainda amplificada quando o filho de Atreu nega a proposta e exige ser ressarcido com a parte que coube a Aquiles, Ájax ou Odisseu (I, 131-9). Esse momento é significativo por uma série de motivos. A prioridade de Agamêmnon é que a opinião pública sobre ele coincida com sua autoimagem de ser o mais poderoso e importante dos guerreiros aqueus. Para ele é inconcebível aparecer para os outros guerreiros numa posição de subordinação, por mínima que seja. Por isso, num primeiro momento, faz questão de se manter na posição de quem distribui as riquezas saqueadas como bem entende, mesmo que isso signifique realocar os bens já distribuídos. Mesmo a possibilidade de uma futura multiplicação de seu butim com o fim da guerra será ignorada, porque a manutenção pública de sua parte de honra no momento presente é o critério principal para a sua decisão. Agamêmnon insiste nessa aposta porque, além de ter a honra ou imagem pública como critério moral importante, ainda não sentiu os efeitos que a ausência de Aquiles vai causar no seu exército, efeitos que o obrigarão a ressarcir o filho de Peleu.
Como avalia que seu poder é superior entre os aqueus, Agamêmnon aceita causar o descontentamento de guerreiros que considera menos importantes. Para valorizar sua própria posição, ele pensa logo em três heróis que se destacam: Aquiles e Ájax, como os mais eficientes em combate (II, 768-9), além de Odisseu, o muito astucioso (polýmētis). Para Agamêmnon, nenhuma dessas capacidades rivaliza com o seu poder. Aquiles, no entanto, se dedica a expor para Agamêmnon a inadequação de sua distribuição de riquezas e avaliação de honras merecidas (I, 149-71).33 Não há, na Ilíada, uma narrativa detalhada da reunião do exército aqueu para a expedição contra Troia, mas ela aparece sucintamente neste trecho da argumentação de Aquiles:34 os aqueus, que, por si só, não têm nenhum problema com os troianos, estão ali seguindo Agamêmnon para obterem honra (timḗ) para Menelau (I, 152-9).35 Para Aquiles, esse papel de articulador da campanha é o que justifica a posição privilegiada de Agamêmnon.36 Entretanto, se essa posição possibilita que Agamêmnon tenha a maior parte das riquezas distribuídas ou que controle a sua distribuição, para Aquiles ela não corresponde à recompensa pelos esforços ou pela eficiência na guerra. A ganância e o egoísmo de Agamêmnon o impedem de valorizar devidamente seu poder de destruição (I, 165-8):
contudo, a maior parte da guerra encapelada
meus braços realizam, e se ocorre uma partilha (dasmós),
tua recompensa (géras) é muito maior, e levo uma pequena
e querida na volta às naus, quando lutei até a exaustão.
Para Aquiles, a divisão do esforço não corresponde à divisão das riquezas obtidas por meio desse esforço, com o detalhe de que o esforço em questão é a guerra, e a obtenção de riquezas, na verdade, é o saque de qualquer objeto de valor e o rapto de mulheres.37 O cansaço de Aquiles e sua maior eficiência em combate, de todo modo, não são compensados, e as riquezas são acumuladas por Agamêmnon. Esses argumentos voltam a aparecer na resposta de Aquiles a Odisseu na embaixada do canto IX, 318-333: Aquiles, saqueador de vinte e três cidades, com o exército e a frota dos aqueus ajunta grande quantidade de bens para o Atrida que apenas distribui pouco e fica com muito sem se arriscar. Trata-se de uma alegação exagerada de Aquiles, uma vez que Agamêmnon também luta (V, 38-40, 533-40) e chega a arriscar a sua vida (XI, 153-274), mas revela a sua indignação com a posição que tem no exército.
Isso revela que os dois chefes têm critérios diferentes e concorrentes para avaliar o mérito e o poder. A crítica de Aquiles tem a mesma fundamentação na ideologia guerreira aristocrática compartilhada por Agamêmnon, mas questiona diretamente quem tem a maior capacidade de destruição e, portanto, quem merece ser mais honrado e ter prioridade na distribuição de riquezas. Trata-se, portanto, de um questionamento da própria posição privilegiada de Agamêmnon. Para Aquiles, se Agamêmnon inicialmente é quem “agora proclama ser, de longe, o melhor dos aqueus” (Ἀγαμέμνονα […] ὃς νῦν πολλὸν ἄριστος ἐνὶ στρατῷ εὔχεται εἶναι, I, 90-1), ele se mostra, na verdade, quem “não honrou o melhor dos aqueus” (Ἀγαμέμνων […] ἄριστον Ἀχαιῶν οὐδὲν ἔτισεν, I, 411-2).38
Na continuação da discussão, Agamêmnon deixa sua perspectiva bem clara para Aquiles ao exigir a entrega de Briseida (I, 184-7):
[…] vou buscar Briseida bela-face,
tua recompensa (géras),39 eu mesmo indo à cabana, para bem saberes
quão superior a ti sou eu, e que outros se apavorem
de se crer igual a mim e de rivalizar face a face.
Agamêmnon se declara o mais forte (phértsero) entre os dois e, mais do que isso, superior a todos os outros aqueus.40 Aquiles, porém, interpreta a questão de forma diferente. Persuadido por Atena, enviada por Hera, a não tomar a decisão de matar o líder dos aqueus e a aceitar a previsão de riqueza multiplicada no futuro, em troca de restringir sua agressão a xingamentos (I, 188-218),41 Aquiles apresenta uma crítica feroz ao comportamento de Agamêmnon (I, 225-33): é um covarde que não participa da guerra, toma indevidamente as posses dos que questionam suas ações publicamente e só se mantém em posição de autoridade por reinar sobre homens que não valem nada (οὐτιδανοῖσιν ἀνάσσεις, I, 231), ou seja, que toleram indevidamente a covardia e a injustiça de sua acumulação e má distribuição de riquezas.42
Recorrentemente, a ação de Agamêmnon é avaliada nas falas de Aquiles e na de Atena com os termos morais que indicam a transgressão dos limites sociais: hyperoplía (I, 205), hýbris (I, 214), o verbo lōbáomai (lōbḗsaio, I, 232). Quando Aquiles diz que Agamêmnon é um chefe (basileús) “devorador de seu povo” (dēmobóros, I, 231),43 ele escolhe uma imagem que acrescenta à transgressão um aspecto material, o consumo das riquezas produzidas ou reunidas pelo povo. Não está distante da imagem de Hesíodo, que questiona a justiça das decisões desses chefes classificando-os como “devoradores de presentes” (dōrophágous, Trabalhos e dias, 39), embora não assuma a perspectiva do trabalhador rural: trata-se de um chefe insultando outro chefe. A imagem também aproxima Agamêmnon do grupo de transgressores da Odisseia, os pretendentes, que consomem o patrimônio de Odisseu sem contrapartida e sem permissão.44
É notável como são fundamentais para o guerreiro homérico alguns valores imateriais, como a excelência em combate, a habilidade nos discursos e a permanência na memória cultural dos feitos heroicos enquanto objeto de canto nas narrativas épicas. Entretanto eles parecem indissociáveis dos elementos materiais que são, ao mesmo tempo, privilégios de uma classe que detém as riquezas, inclusive, como signos sociais do reconhecimento público daqueles valores imateriais.45 Essa associação é também observada por Platão. Na República, 390e, ele faz seu Sócrates criticar o comportamento philokhrḗmaton, “ávido por riquezas”, do guerreiro homérico. Platão menciona, ainda que sem contextualização, o conselho de Fênix a Aquiles no canto IX (515-26): o herói deveria socorrer os aqueus, uma vez que está recebendo presentes; se não estivesse, não deveria amenizar a sua cólera (mênis).46 Aquiles, quando reclama da distribuição (dasmós, I, 166), atribui até um valor afetivo àquela parte do saque que lhe é atribuída: apesar de pouca, sua parte lhe era querida (ὀλίγον τε φίλον τε, I, 167). Isso é especialmente significativo quando essa parte inclui uma mulher escravizada, como Briseida.
Essa discussão termina com a confirmação da autoimagem de Agamêmnon como o mais poderoso entre os aqueus, que obtém Briseida como compensação (I, 318-48).47 Se considerarmos o caráter público da disputa entre os dois chefes, o narrador não informa o posicionamento dos aqueus em geral, mas apresenta a interferência de Nestor, que revela tanto qual é a tensão básica no que diz respeito ao exercício do poder entre os aqueus quanto o critério definitivo para a sua resolução.
O ancião intervém depois que Aquiles anuncia sua retirada da guerra e, como expressão de sua raiva e do desprezo pela ordem de Agamêmnon, atira no chão o cetro (I, 245), o objeto que sinaliza a autoridade de quem fala. Nestor é apresentado como grande orador (I, 248-50), como um sábio com experiência sobre as coisas humanas (I, 251-2) e como alguém bem-intencionado (I, 253). A introdução para seu bom conselho (que acaba ignorado) invoca o sentimento de união dos aqueus contra os troianos (I, 254-8) e contém o seu tema característico: as histórias do passado, a força dos homens daquela época e os seus próprios feitos de juventude (I, 259-74). É essa experiência o que sustenta a autoridade de sua fala entre os guerreiros. Seu conselho prático é uma tentativa de restabelecer tudo como era antes: Agamêmnon, o detentor de maior poder (phérteros, I, 280-1),48 não deve tirar Briseida de Aquiles (I, 275-6), que, por sua vez, ainda que mais poderoso individualmente por ser filho de uma deusa (karterós, I, 280), deve reconhecer a autoridade de Agamêmnon e continuar na guerra (I, 277-84).
Isso significa que a autoridade privilegiada de Agamêmnon não pode ser colocada em questão, ao mesmo tempo em que a sua decisão de tomar Briseida de Aquiles é um erro, porque os “filhos dos aqueus” já haviam lhe concedido o prêmio (I, 275-6).49 O líder age melhor quando contempla o conselho de outros aqueus e o desejo coletivo, mas a sua posição legítima de liderança não é invalidada caso considere apenas as suas próprias circunstâncias e cometa erros. Essa posição se sustenta por uma relação com a divindade.
O poder como concessão divina aparece, primeiramente, aplicado por Agamêmnon à força de Aquiles: “se és excepcionalmente possante (karterós), é porque um deus tal te concedeu” (I, 178).50 Essa condição o tornava detestável (“de todos os reis criados por Zeus, és para mim o mais odioso”, I, 176) pelo excessivo gosto por combates em que pode predominar sem um rival à altura. Agamêmnon sustenta a sua posição reconhecendo em Aquiles uma ameaça à hierarquia do exército. Por isso, Briseida deve ser tomada para servir de exemplo a qualquer outro que ouse questionar a sua superioridade (I, 184-7), e a ambição de Aquiles deve ser controlada (I, 287-91):
Mas esse homem quer estar acima de todos os outros,
quer ter poder (kratéein) sobre todos, ser senhor (anássein) de todos
e a todos dar ordens (sēmaínein), e não creio que será obedecido.
Se os deuses sempre vivos o fizeram lanceiro,
por isso o incumbem de discursar insultos?
Essa é a tensão construída desde a primeira menção a Agamêmnon no poema (I, 7), caracterizado como “senhor de homens” (ánax andrôn) em oposição ao divino (dîos) Aquiles.
Acontece que, socialmente e narrativamente, a posição de Agamêmnon, como a de Aquiles, também é justificada por uma relação especial com a divindade.51 Nestor, ao avaliar o poder do filho de Atreu, considera, além do comando sobre maior número de homens, uma autoridade conferida por Zeus (I, 277-9):
Nem tu, filho de Peleu, queiras rivalizar com um rei (basileús)
opondo forças, já que nunca recebe honra (timḗ) igual
o rei (basileús) porta-cetro a quem Zeus deu o triunfo (kŷdos).
Tradicionalmente traduzido como “glória”, kŷdos reúne em seu sentido as noções de vitória, brilho e favor dos deuses.52 Em contextos de batalha, kŷdos indica na maior parte de suas ocorrências o triunfo brilhante do guerreiro vencedor, concedido pela divindade no momento decisivo.53 Esse triunfo parece fundamentar a prevalência do privilégio (timḗ) daquele que o recebe e, consequentemente, atribuir autoridade como uma concessão de Zeus. Os usos desse termo não diretamente relacionados ao combate são mais raros, mas esta não é a única ocorrência. Ele aparece junto com a timḗ e com os privilégios materiais dos chefes também nesta fala de Menelau, (XVII, 248-51):
Amigos, líderes e dirigentes dos argivos,
os que junto ao Atrida Agamêmnon e a Menelau
bebem o que vem do povo e comandam
as tropas, e sua timḗ e kŷdos vêm de Zeus.
Aparece ainda quando Zeus envia Tétis com a ordem de que Aquiles entregue o cadáver de Heitor a Príamo em troca de um resgate, para que o corpo não seja roubado por Hermes, instigado por outros deuses (XXIV, 104-19). Dessa maneira, Zeus afirma que concede a Aquiles esse kŷdos (XXIV, 110), o triunfo glorioso e incontestável sobre o melhor dos troianos.54 A princípio, pode parecer deslocado o uso desse conceito para justificar socialmente as decisões e ações de uma figura de poder. Esse uso revela, entretanto, que o poder se manifesta e se exerce intrinsecamente como produto de uma disputa, e a resolução dessa disputa é diretamente associada a Zeus.55 Não é por acaso que os basilêes recebem a caracterização formular “criados por Zeus”,56 dita por Agamêmnon em I, 176, nem é por acaso que os chefes Odisseu e Nestor sejam chamados de “grande kŷdos dos aqueus”.57
Há ainda outra associação direta com os espaços de disputa pelo poder: além do combate (mákhē), apenas a assembleia (agorḗ) é caracterizada como kydiáneira, “que proporciona kŷdos aos homens”.58 Nesse ambiente, se o cetro sinaliza a autoridade de quem fala, o de Agamêmnon é ainda especial, porque foi feito por Hefesto e dado a Zeus, antes de ser repassado a Hermes, a Pélops, a Tiestes e, por fim, a Agamêmnon (II, 102-8), representando materialmente a continuidade entre a autoridade de Agamêmnon e a autoridade divina.
Nestor se refere a Agamêmnon na assembleia do canto IX com o superlativo kŷdistos, “o mais glorioso”, “o muitíssimo agraciado com kŷdos”,59 o “senhor de homens” (ánax andrôn, IX, 96), que recebeu de Zeus o cetro e a thémis (IX, 98-9), a justiça ou seu exercício como um ato ou prática que traz para a esfera humana a ordenação da esfera divina. Cetro e thémis são também os dons recebidos pelo basileús no discurso de Odisseu em defesa do comando de um único homem (II, 206).60 Portanto, o poder dos basilêes entre os humanos é uma concessão divina, e também o poder de Agamêmnon entre os basilêes, segundo Nestor (I, 277-9). O narrador revela essa ligação para os ouvintes ou leitores através do cetro, e, entre as personagens, são os outros chefes, Nestor e Odisseu, comprometidos com o glorioso triunfo (kŷdos) dos aqueus, quem defendem diante dos soldados essa integração da hierarquia do exército à ordenação cósmica divina, sob a autoridade de si mesmos como basilêes, e sob o comando superior de Agamêmnon.
Embora Aquiles admita que, mesmo para ele, é difícil lutar sem a participação ativa dos demais aqueus (XX, 356-7),61 a narrativa da Ilíada confirmará o seu desempenho como guerreiro, único e inigualável entre os humanos. Ao mesmo tempo, ela confirma e reabilita Agamêmnon como comandante com a reintegração de Aquiles ao exército aqueu. No canto IX, 115-61, o próprio Agamêmnon precisa aceitar a superioridade militar de Aquiles, embora encerre a sua fala defendendo sua posição pública como “mais chefe” (basileúteros) e “mais velho” (progenésteros).62 O poema mostrará, entre os cantos VIII e XVI, o estrago que a ausência de Aquiles causa aos gregos e, a partir daí, o estrago que sua presença causa aos troianos. Todo esse poder destrutivo, contudo, subordina-se à mesma organização cósmica de Zeus que concede o privilégio especial para Agamêmnon.
Não deixa de ser notável como o próprio Aquiles – que a princípio aparece, por ação de Hera, como o protetor do povo que sofre pelas más decisões de Agamêmnon – aceita ou mesmo causa o sofrimento desse mesmo povo quando é ele quem se vê desonrado publicamente (I, 241). Também é notável como as riquezas materiais estão associadas aos fundamentos da moralidade do guerreiro aristocrata homérico, seja como privilégio material de uma classe dominante, diretamente relacionada à percepção pública de seu valor, seja como representação simbólica de seu poder.63 Nessa dinâmica entre capacidade de destruição, distribuição de riquezas, honra, reputação e legitimação divina se revela o entendimento de poder na Ilíada.
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Notas