Artigos de Revisão | Review Articles
O Carm. 1.3 de Horácio, duas traduções de Elpino Duriense e duas imitações quinhentistas
Horace’s Odes 1.3, Elpino Duriense’s two translations, and two Portuguese imitations of the Sixteenth Century
O Carm. 1.3 de Horácio, duas traduções de Elpino Duriense e duas imitações quinhentistas
Classica - Revista Brasileira de Estudos Clássicos, vol. 34, núm. 1, 2021
Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos
Recepción: 31 Marzo 2020
Aprobación: 03 Junio 2020
Resumo: Neste artigo pretendo discutir a presença do Carm. 1.3 de Horácio nas letras portuguesas, em particular em duas traduções de Elpino Duriense e duas imitações quinhentistas, uma de Antônio Ferreira (Odes 1.6) e outra de Luís de Camões em Os Lusíadas (4.102-4), no discurso do Velho do Restelo. Apesar de algumas críticas à composição horaciana como a de um poeta imaturo, parece que o poema teve importante fortuna, já na Antiguidade, e de maneira particular no séc. XVI português. As imitações quinhentistas tiveram sua fortuna nas letras portuguesas e Elpino Duriense considera a de Antônio Ferreira em uma de suas traduções.
Palavras-chave: Horácio, Odes 1.3, tradução, Elpino Duriense, Antônio Ferreira, Camões.
Abstract: In this article I intend to discuss the presence of Horace’s Odes 1.3 in Portuguese Literature, in particular in two translations of Elpino Duriense and in two Portuguese poets of the sixteenth century, namely Antônio Ferreira (Odes 1.6) and Luís de Camões (Os Lusíadas 4.102-104). Although Odes 1.3 was perceived to be immature by some scholars, the poem was translated into Portuguese since the sixteenth century and imitated since Antiquity. Some Portuguese imitations stand out in Portuguese Literature and Elpino Duriense has that of Antônio Ferreira as a model for one of the two translations.
Keywords: Horace, Odes 1.3, translation, Elpino Duriense, Antônio Ferreira, Camões.
O Carm. 1.3 de Horácio teve apreciação muito variada ao longo do tempo. A começar pelos poetas antigos, encontramos, pelo menos, três alusões ao texto horaciano: Ovídio, em Am. 2.11; Sêneca, em Med. 301-8; Estácio, em Silv. 3.2.1 Parece, portanto, que a ode era bem conhecida e, por ser emulada, foi considerada modelar. A posição de destaque, colocada na primeira sequência decimal, chamada modernamente Parade Odes (1.1-10),2 certamente favoreceu o poema, que tem como personagem o poeta e amigo Virgílio, responsável por introduzi-lo no círculo de Mecenas.3 Depois do Carm. 1.1, em que se dirige a Mecenas (v. 1), e do Carm. 1.2, em que louva Mercúrio-Otaviano (vv. 41-52), surge Virgílio, mais de uma vez elogiado por Horácio, alma pura a que o poeta está muito afeiçoado.4 No entanto, entre alguns filólogos modernos5 – nomes importantes que já muito contribuíram para o estudo de Horácio –, a ode não pareceu bem composta, obra de poeta ainda imaturo. Há evidentemente dissenso neste julgamento do Carm. 1.3 entre os estudiosos.6 O objetivo, porém, deste artigo não é tomar posição numa disputa, por vezes, subjetiva, de gosto pessoal em relação à ode horaciana. Propomo-nos a discutir duas traduções de Elpino Duriense e duas imitações quinhentistas, a de Antônio Ferreira, em suas Odes (1.6), e a de Camões, em Os Lusíadas (4.102-104), que evidenciam a fortuna do poema nas letras portuguesas e como, por vezes, a tradução incorpora imitações do poema traduzido.
Veremos, primeiramente, a tradução de Elpino Duriense, nome árcade de Antônio Ribeiro dos Santos, publicada em 1807, em que propõe a translação literal das Odes e Epodos, censurando partes ou poemas inteiros.7 Porém, reproduzimos, antes de mais nada, o texto original latino estampado na referida edição, com as notas em que o poeta-tradutor explica as escolhas das várias edições8 compulsadas para o estabelecimento do texto, o que mostra, primeiramente, cuidadosa leitura do original:
Ad navim Virgilii9
Sic te Diva potens Cypri,
sic fratres Helenae, lucida sidera,
ventorumque regat pater,
obstrictis aliis praeter Iapyga,
navis, quae tibi creditum 5
debes Virgilium, finibus Atticis
reddas incolumem, precor,
et serves animae dimidium meae.
Illi robur et aes triplex
circa pectus erat, qui fragilem truci 10
commisit pelago ratem
primus, nec timuit praecipitem Africum
decertantem Aquilonibus,
nec tristis Hyadas, nec rabiem Noti;
quo non arbiter Hadriae 15
major, tollere seu ponere volt freta.
Quem mortis timuit gradum,
qui siccis oculis10 monstra natantia,
qui vidit mare turbidum et
infamis scopulos Acroceraunia? 20
Nequicquam Deus abscidit
prudens Oceano dissociabilis11
terras, si tamen inpiae
non tangenda rates transiliunt vada.
Audax omnia perpeti, 25
gens humana ruit per vetitum nefas.12
Audax Japeti genus
ignem fraude mala gentibus intulit.
Post ignem aetheria domo
subductum, Macies et nova Febrium 30
terris incubuit cohors:
semotique prius tarda Necessitas
leti corripuit gradum.
Expertus vacuum Daedalus aëra
pennis non homini datis. 35
perrupit Acheronta Herculeus labor.
Nil mortalibus arduum13 est;
caelum ipsum petimus stultitia; neque
per nostrum patimur scelus
iracunda Jovem ponere fulmina. 40
Das três notas de Elpino Duriense para o texto latino, a primeira ao v. 18 (siccis oculis) e a terceira ao v. 26 (vetitum nefas) seguem a “lição vulgar”, como fazem os comentários e edições mais modernos. No entanto, ainda hoje se comenta a conjectura de Bentley (rectis oculis), mas apenas para rejeitá-la. Porém, para o v. 22 (prudens Oceano dissociabilis) o tradutor português deixa a “lição vulgar” (dissociabili), em que o adjetivo caracteriza Oceano, para relacioná-lo, como faz Bentley, com terras (v. 23). A lição, contudo, não teve grande fortuna e a mais conservadora (dissociabili) é, em geral, a adotada nas edições modernas. De fato, parece não haver necessidade de correção do texto transmitido, já que a incompatibilidade indicada pelo adjetivo dissociabilis (“incompatível”) pode ser atribuída tanto a um como a outro.
Na primeira tradução, nos lugares de disputa do texto, o tradutor oferece versão alternativa, caso se escolha a lição não adotada por ele. Por vezes, apresenta mais de uma alternativa para o mesmo trecho, como é o caso dos vv. 21-23 da ode aqui analisada: “Indo pela lição vulgar diremos: Em vão próvido Deus com o Oceano / insociável separou as terras. Ou: Debalde co’Oceano insociável / prudente retalhou as terras Jove”. Não se encontra, em geral, essa preocupação de dar tradução para lições ou conjecturas não adotadas pela edição, algo que também distingue o trabalho de Elpino Duriense dos demais tradutores.
O texto latino segue ao lado da tradução, que reproduzimos na sequência:
Ao navio de Virgílio
Assim a Deusa poderosa em Chipre,
assim os irmãos d’Hélena, brilhantes
astros, e o rei dos ventos, só co’ Jápis,
prendendo os mais, te reja,
ó nau, que és de Vergílio devedora, 5
que a ti se confiou, rogo-te, o ponhas
salvo nas terras Áticas, e guardes
metade de minha alma.
Enzinho e tresdobrado bronze havia
em torno ao peito quem ao pego iroso 10
o baixel frágil cometeu primeiro,
nem já temeu o Ábrego,
co’os Aquilões brigando impetuoso,
Híadas tristes, nem de Noto a raiva,
que é d’Ádria o mor senhor, ou erguer queira, 15
ou amainar as ondas.
Que gênero temeu de morte aquele
que a olhos secos viu nadantes monstros,14
que viu túrgido mar e Acroceraunos
infamados cachopos? 20
Em vão próvido Deus com o Oceano
as terras retalhou insociáveis,
se contudo os baixéis ímpios trespassam
os não tocandos mares.15
Audaz a sofrer tudo, a gente humana 25
por defesas maldades se despenha;
audaz a prole de Japeto às gentes
com fraude iníqua o fogo
trouxe. Depois que o fogo à casa etérea
se furtou, a magreza e nova tropa 30
de febre sobreveio à terra, e o fado
vagaroso da morte,
dantes remota, apressurou o passo.
Tentou, com penas ao mortal não dadas,
Dédalo o ar vazio; o Aqueronte 35
rompeu trabalho hercúleo.
Nada aos mortais é árduo: cometemos,
loucos, o mesmo céu, e não deixamos
c’os nossos crimes, que deponha Jove
os iracundos raios. 40
Da translação literal
A tradução chamada “literal” é feita em quartetos compostos por três decassílabos (heroicos ou sáficos) seguidos por um hexassílabo. No original, porém, temos dísticos ou a primeira estrofe asclepiadeia, formada por glicônico seguido por asclepiadeu menor. Contudo, se se aceita a lei de Meineke, segundo a qual todas as odes de Horácio seriam divisíveis em quartetos, como faz boa parte das edições modernas, a proposta de Elpino seria, em parte, correspondente. Seguindo o mesmo número de versos do original (40 vv.), o tradutor ainda acompanha de perto o andamento sintático desenvolvido, em geral, no espaço estrófico de quatro versos. A única exceção, no confronto com o original, é a passagem da sétima para a oitava estrofe (vv. 28-9), em que, diferentemente de Horácio, Elpino faz encavalgamento. Embora o uso não seja estranho nas Odes (e.g. Carm. 1.5.4-5; 12-13), tal fenômeno não ocorre na passagem do Carm. 1.3. Ressaltamos, por fim, antes de análise mais minuciosa da tradução, o título que se dá a cada ode na edição portuguesa, que, embora não seja horaciano, remonta já a comentadores mais antigos.
Elpino Duriense é leitor muito atento do original latino, observando na tradução a posição das palavras, as figuras e os tropos. Observam-se, por exemplo, com rigor as anáforas16 (vv. 1-2: “assim ... / assim ...”, que traduzem: sic ... / sic ...; vv. 17-19: “que gênero ... / que a olhos ... / que viu ...”, refazendo: quem mortis ... / qui siccis ... / qui vidit ...; vv. 25 e 27: “audaz a sofrer ... / audaz a prole ...”, que repõem: audax omnia ... / audax Iapeti ...). Já se chamou atenção17 para a colocação particular de terras (v. 23), palavra qualificada por dissociabilis (v. 22) – na lição adotada por Elpino –, adjetivo separado por estar em verso diferente. O tradutor parece observar a significativa separação ao interpor entre o substantivo (“terras”) e o adjetivo (“insociáveis”) o verbo retalhar (“retalhou”), tudo no mesmo verso (v. 22). A hipálage final (v. 40), com destaque para a colocação do adjetivo (iracunda) em primeira posição e o substantivo (fulmina) como conclusão, encerrando o todo, é observada no verso final da tradução: “os iracundos raios”. Destaque-se ainda o uso do acento latino para “Hélena”, ressaltado por coincidir com a sexta sílaba do decassílabo heroico. O nome da personagem grega é destacado no original, ocupando a posição central do verso (v. 2), na sequência de três perífrases para nomear: Vênus (v. 1: sic te Diva potens Cypri: “Assim a Deusa poderosa em Chipre”), os dióscuros, Castor e Pólux (v. 2: sic fratres Helenae, lucida sidera: “assim os irmãos d’Hélena, brilhantes / astros”),18 e Éolo (v. 3: ventorumque regat pater: “[...] e o rei dos ventos [...]”).
Não se observa, porém, a colocação dos nomes dos ventos, destacados no original em fim de versos sucessivos (vv. 12-14): Africum (“Ábrego”), o vento sudeste; Aquilonibus (“co’os Aquilões”), vento do norte/nordeste, e Noti (“de Noto”), vento do sul. Só o primeiro deles vem ao final na tradução, que é caracterizado por “impetuoso”, adjetivo colocado no fim do verso seguinte (v. 13), fazendo hipérbato inexistente no original, já que temos no v. 12 o adjetivo seguido pelo substantivo: ... praecipitem Africum. No entanto, o hipérbato na tradução de Elpino, que faz concordância de substantivo com adjetivo colocados em fins de versos subsequentes, é muito comum em Horácio.19 Também em fim de verso, no original latino, está anteriormente o vento favorável à navegação (v. 4: Iapyga), que impele da Apúlia em direção à Grécia, vento noroeste, o “Jápis”, posto neste caso na mesma posição pelo tradutor.
Da tradução parafrástica
Dez anos depois da publicação da tradução das Odes e Epodos de Horácio, no terceiro volume das poesias do poeta português, publicado em 1817, encontram-se duas traduções de odes horacianas (Carm. 1.3 e 2.14), sob o título de “tradução parafrástica” (p. 32-7). Deixaremos por ora o Carm. 2.14, que será estudado em publicação futura, e passaremos, para o propósito deste artigo, a comparar a “translação literal” com a “parafrástica”, que reproduzimos na sequência:
Assim de Chipre a Deusa soberana,
assim os irmãos de Hélena, no Olimpo
claras estrelas, e o grão rei dos ventos
solto somente o Japyx,
pelo alto mar te levem, 5
ó Nau, do meu Virgílio devedora,
que em depósito tens; rogo-te, o ponhas
sobre as Áticas praias livre e salvo;
e guardes a querida
metade da minh’alma. 10
De duro roble, ou tresdobrado bronze
tinha por certo o peito seu murado,
aquele, que sem custo ousou primeiro
o mal seguro pinho
fiar das bravas ondas; 15
Que não temeu nem Áfrico arrojado
c’os Aquilões brigando, ou tristes Híades;
nem já de Noto desabrido a fúria,
que mais que todos d’Ádria
os mares senhoreia. 20
A qual morte houve medo, o que nadantes
monstros chegou20 a ver com secos olhos,
a ver as ondas d’alto pego irosas
e os infames cachopos
da negra Acroceráunia. 25
Debalde Deus com suma providência
c’os limites do mar, que nos separam,
as terras retalhou, se trespassando
vão ímpias naus as ondas
que tocar não deveram: 30
Tudo audaz acomete, e por maldades,
que veda a Lei, precipitada corre
humana geração: com fraude iníqua
trouxe aos mortais o fogo
o filho de Japeto. 35
Já desde então de lívidas doenças
nova coorte se postou na terra,
e a morte, d’antes vagarosa e lenta,
contra a mísera gente
acelerou seus passos. 40
Com asas, nunca aos homens concedidas,
o ar vazio Dédalo tentava;
e o mesmo centro do profundo Averno
por meio de Aqueronte
rompeu Hércules forte. 45
Nada aos loucos mortais, nada é difícil;
o mesmo céu insanos cometemos;
nem com nossas maldades consentimos,
que Júpiter deponha
os iracundos raios.21 50
A primeira – e evidente – diferença entre as duas traduções é a extensão: a parafrástica tem dez versos a mais, organizados em quintetos, formados por três decassílabos (heroicos e sáficos), seguidos por dois hexassílabos. Assim, se a tradução literal não seguia, a rigor, esquema métrico latino, havia, porém, certa correspondência, admitida a lei de Meineke; agora, contudo, os quintetos de Elpino Duriense não encontram correspondência com as estrofes líricas de Horácio. Ademais, cresce bastante o número de adjetivos: antes tínhamos, na literal, “e o rei dos ventos” para traduzir ventorumque ... pater (v. 2: “e o pai dos ventos”), mas, na parafrástica (v. 3), acrescenta “e o grão rei dos ventos”; na primeira (vv. 7-8), “e guardes / metade de minha alma” traduz, palavra por palavra, et serves animae dimidium meae (v. 8), mas, na segunda (vv. 9-10), novamente acresce adjetivo: “e guardes a querida / metade da minh’alma”; se, primeiramente, traduz (v. 9: ... robur et aes triplex) “[e]nzinho e tresdobrado bronze”, substitui “enzinho” por sinônimo (“roble”) e adjetiva mais uma vez (v. 11): “[d]e duro roble, ou tresdobrado bronze”; por fim, não sendo exaustivo, o v. 37 (nil mortalibus ardui est) é traduzido sem ocupar todo o verso, verbum ad verbum: “[n]ada aos mortais é árduo ...”, enquanto a última versão ganha a repetição de “nada” e novo adjetivo, substituindo o mais próximo “árduo” por “difícil”: “[n]ada aos loucos mortais, nada é difícil”. A tradução parafrástica, portanto, afasta-se um pouco mais do original latino, ganhando em extensão e adjetivação.
Outras mudanças, porém, não aumentam o tamanho nem mesmo o número de sílabas. É equivalente, por exemplo, “brilhantes / astros” (vv. 2-3, na literal) e “claras estrelas” (v. 3), que traduzem lucida sidera (v. 2). Tais modificações nos levaram, então, a outro modelo de Elpino Duriense, mencionado na epígrafe do primeiro volume da edição das traduções das Odes e Epodos, publicados em 1807: o poeta quinhentista Antônio Ferreira, que se destacou também por imitar Horácio em suas Odes e Epístolas. A epígrafe traz esses versos de Antônio Ferreira (Cartas 1.8): “A ti leiam, grã Flaco, após ti andem / meus olhos, trás os que também te seguem.” A citação de Elpino não só mostra como o árcade conhecia o quinhentista, mas também como Antônio Ferreira é imitador do poeta latino.
Da imitação quinhentista como modelo da tradução de Elpino
Vejamos, então, Odes 1.6 de Antônio Ferreira, incluída em seus Poemas Lusitanos, endereçada ao irmão e apontada já pelos comentadores como imitação de Carm. 1.3 de Horácio:22
A uma nau d’armada em que ia seu irmão Garcia Fróis
Assi a poderosa
deosa de Chipre, e os dous irmãos de Helena,
claras estrelas, e o grão rei dos ventos,
segura nau, e ditosa,
te levem, e [te]23 tragam sempre com pequena 5
tardança aos olhos que te esperam atentos;
que meu irmão, metade
da minha alma, que como encomendado
a ti deves, nos tornes vivo, e são
do fogo, e tempestade 10
a que se aventurou c’o esprito ousado.
Vença à dura fortuna a boa tenção.
Quem cometeu primeiro
ao bravo mar num fraco pau a vida
de duro enzinho, ou tresdobrado ferro 15
tinha o peito, ou ligeiro
juízo, ou sua alma lh’era aborrecida,
dino de morte cruel no seu mesmo erro.
Esprito furioso
Que não temeu o pego alto revolvido 20
(entregue aos ventos, posto todo em sorte)
do sempre tempestuoso
Áfrico, nem os vaus cegos, e o temido
Cila infamado já com tanta morte!
A que mal houve medo 25
Quem os monstros no mar, que vão nadando,
Com secos olhos viu? Quem o céu cuberto
de triste noite, e quedo
sem defensão, c’o corpo só esperando
está a morte cruel, que tem tão perto? 30
Se Deus assi apartou
com suma providência o mar da terra
que a nós, os homens, deu por natureza,
como houve homem que ousou
abrir por mar caminho mais a guerra 35
qu’a paz, e a morte mais, roubo, e crueza?
Que cousas não cometes,
ousado esprito humano, em mar, e em fogo
contra ti só diligente, e ingenhoso?
Que já te não prometes, 40
des qu’o medo perdeste à morte, e em jogo
tens o que de si foi sempre espantoso?
Um o céu cometeu;
outro o ar vão experimentou com penas
não dadas a homem; outro o mar reparte 45
que por força rompeu.
Senhor, que tudo vês, que tudo ordenas,
pera a Ti só chegarmos dá-nos arte.
Como se percebe já pelo início, o poema de Antônio Ferreira serviu de modelo para as modificações feitas por Elpino em sua tradução parafrástica do Carm. 1.3 de Horácio. Já tínhamos chamado a atenção, por exemplo, para o acréscimo do adjetivo “grão” na tradução parafrástica de Elpino (v. 3), alteração que se vê retirada do verso do poeta quinhentista, ou melhor, o verso todo é tomado de Antônio Ferreira (v. 3) pelo árcade. Da literal para a parafrástica, Elpino substituiu o verbo “reja” (v. 4), que traduz regat do original latino (v. 3), por “levem” (v. 5), verbo mais afastado em relação à morfologia, à sintaxe e à semântica. Ora, o verbo se encontra da mesma maneira na ode de Antônio Ferreira (v. 5). Fizemos notar ainda que Elpino introduz na parafrástica o adjetivo “duro”, que qualifica “roble” (v. 11). Na tradução literal (v. 9), Elpino tinha escolhido o sinônimo “enzinho” para traduzir o original robur (“carvalho”; “roble’; “enzinho”), sem qualquer qualificação como aparece em Horácio. Novamente, quando se lê o poema do poeta quinhentista, encontra-se o adjetivo (v. 15): “de duro enzinho, ou tresdobrado ferro”. A substituição, por fim, da tradução “brilhantes / astros” (vv. 2-3) por “claras estrelas” (v. 3) – ambas traduzindo verbum ad verbum o original latino: lucida sidera (v. 2) – de novo é motivada pela imitação de Antônio Ferreira (v. 3: “claras estrelas”). Parece claro, portanto, que Elpino, ao refazer a tradução do Carm. 1.3, olhou não só para o original, mas também para a imitação cristã24 de Antônio Ferreira.
Para considerar ainda um outro ponto em relação à tradução parafrástica, é preciso retomar outra imitação quinhentista do poema horaciano:25 a conhecida passagem do Velho do Restelo n’Os Lusíadas de Camões (4.94-104). A presença do Carm. 1.3 de Horácio na passagem é reconhecida desde o comentário de Manuel de Faria e Sousa, publicado em 1639, em que no comentário à estrofe 102 não só recorda o lírico latino (p. 433), mas também a passagem da Medeia de Sêneca (vv. 301-2) e Propércio 1.17.13-4. O humanista português ainda lembra da ode horaciana ao comentar a estrofe 103 (p. 436). Leiamos, primeiramente, as estrofes d’Os Lusíadas que nos interessam para este artigo (4.102-4):
“Ó maldito o primeiro que no mundo
Nas ondas vela pôs em seco lenho!
Dino da eterna pena do profundo,
Se é justa a justa lei que sigo e tenho!
Nunca juízo algum alto e profundo
Nem cítara sonora ou vivo engenho
Te dê por isso fama nem memória,
Mas contigo se acabe o nome e glória!
Trouxe o filho de Japeto do céu
O fogo que ajuntou ao peito humano
Fogo que o mundo em armas acendeu,
Em mortes, em desonras – grande engano! –
Quanto milhor nos fora, Prometeu,
E quanto pera o mundo menos dano,
Que a tua estátua ilustre não tivera
Fogo de altos desejos, que a movera!
Não cometera o moço miserando
O carro alto do pai, nem o ar vazio
O grande arquitector co filho, dando
Um nome ao mar, e o outro fama ao rio.
Nenhum cometimento alto e nefando
Por fogo, ferro, água, calma e frio,
Deixa intentado a humana geração;
Mísera sorte! Estranha condição!”26
A fala do Velho do Restelo é ponto de longa discussão nos estudos sobre o épico português.27 Por que Camões inseriu um discurso contra a navegação em obra que se propõe justamente a celebrar a expansão marítima portuguesa, as viagens dos portugueses por “mares nunca d’antes navegados”? Não é o propósito deste texto discutir a razão de uma fala como essa n’Os Lusíadas; interessa-nos aqui somente mostrar como o Carm. 1.3 de Horácio era muito conhecido entre os poetas quinhentistas portugueses28 em vista da matéria – os perigos da navegação – e de que modo o poema aparece em Camões. Até aqui vimos traduções de Elpino Duriense e a imitação lírica de Antônio Ferreira. Agora, porém, os versos líricos são retomados em obra épica. Ora, a imitação camoniana do Carm. 1.3 em verso épico, a condenar a navegação, parece bem apropriada, se pensarmos como nas Odes horacianas a lírica se contrapõe, com frequência, à epopeia.29 Não é também novidade a mistura de um gênero em outro, como a lírica na épica, que já se encontra na Eneida de Virgílio,30 talvez o principal modelo d’Os Lusíadas.31 Porém, o início da fala do Velho do Restelo, como já anotara Manoel de Faria e Sousa, pela maldição contra o inventor da navegação,32 aproxima-se mais de Propércio (1.17.13-4) que de Horácio ou Virgílio.
A presença horaciana, porém, na passagem de Camões se dá, sobretudo, no catálogo de personagens mitológicas que cometeram ações desmedidas (4.103-104).33 De modo muito semelhante ao catálogo de Horácio, o poeta português começa com Prometeu, valendo-se da mesma perífrase do autor das Odes (1.3.27: ... Iapeti genus): “o filho de Japeto” (103.1). Além disso, “trouxe ... / o fogo ...” (103.1-2) traduz, com precisão, ignem ... intulit (1.3.28), deixando ainda a palavra “fogo” na mesma posição em que se encontra ignem, em início de verso. Na sequência, há inovação por parte de Camões, pois introduz a figura de Faetonte (104.1-2: “Não cometera o moço miserando34 / O carro alto do pai ...”), novamente em perífrase. Por fim, com outra perífrase, menciona Dédalo (“o grande arquitector”). A expressão “o ar vazio” pode também vir de Horácio (v. 34: ... vacuum ... aera). Vale ressaltar, porém, algumas diferenças: o poeta latino menciona explicitamente Dédalo (v. 34: Daedalus) e não alude ao filho Ícaro, o que faz Camões (104.4: “um nome ao mar, e o outro fama ao rio”). Está, contudo, ausente no catálogo d’Os Lusíadas a descida aos infernos de Hércules. É notável, a nosso ver, essa ausência, pois em Antônio Ferreira, no catálogo das personagens que ultrapassaram limites (vv. 43-6), embora Hércules ali esteja, não se menciona a descida ao Hades, mas a colocação das Colunas de Hércules (vv. 45-6: “... outro o mar reparte / que por força rompeu”).35 As duas imitações quinhentistas também se aproximam ainda, afastando-se do modelo horaciano, pela utilização apenas de perífrases para mencionar as personagens mitológicas.
Diferentemente de Antônio Ferreira, Camões não parece ser modelo para as traduções de Elpino Duriense. No entanto, causou-nos certa estranheza a colocação das traduções parafrásticas de Horácio no interior da edição das Poesias Completas de Elpino ou Antônio Ribeiro dos Santos (1817, v. 3, p. 32-37). Importa-nos observar que na sequência (p. 38-51) há um conjunto de poemas dedicado às navegações portuguesas e ao descobrimento da América: o primeiro (p. 38-41), ao infante D. Henrique, em que emula “o grande cantor do excelso Gama” (v. 1); o segundo, a Cristóvão Colombo (“Colon”), descobridor da América (p. 41-3); o terceiro, a Vasco da Gama (p. 44-6), e um último, intitulado “Ao mesmo assunto”, em que celebra os “Lusos Argonautas” (p. 47-51). Ao final do primeiro poema, ao infante D. Henrique, o poeta já anuncia os outros dois navegadores, Cristóvão Colombo e Vasco da Gama (vv. 57-60):
Dali, dali raiaram novas luzes,
brilhantes mais que o lume das estrelas
que guiaram depois a novos mundos
Colon, e o invicto Gama.
Ora, os poemas estão dispostos de maneira significativa, em sequência ordenada pelo autor a fim de celebrar as navegações e os descobrimentos. Se assim é, não parece sem importância a colocação das traduções parafrásticas, antecedendo-os: a tradução do Carm. 1.3 de Horácio (p. 32-4) é, como a fala do Velho do Restelo, um discurso contra o inventor da navegação e as viagens marítimas, desejando, porém, um percurso seguro; a segunda, do Carm. 2.14 (p. 35-7), é a lembrança da morte, que chega para todos (vv. 11-2: “... Príncipes potentes, / ou pobres lavradores”),36 temendo em vão os perigos da navegação, entre outros (vv. 14-6): “... em vão tememos / do Adriático mar, que se espedaça, / surcar as roucas ondas”.37 Então, a mostrar a grandeza dos feitos dos navegantes, em seguida, compõe odes, emulando Camões, para o infante D. Henrique, Cristóvão Colombo e Vasco da Gama.
A fortuna, portanto, do Carm. 1.3 de Horácio38 nas letras portuguesas passa, primeiramente, pelos poetas quinhentistas, inseridos na época das grandes navegações, em que, certamente, os debates sobre os perigos de se aventurar ao mar estavam em voga, os perigos de perder um ente querido – “por te cruzarmos, quantas mães choraram / quantos filhos em vão rezaram / quantas noivas ficaram por casar” –; esse passado, retratado, seja como louvor seja como maldição, é retomado pelos poetas posteriores, como Elpino Duriense, que, como seus antecessores, procura emular a tradição, tal como fizeram seus modelos em relação aos autores latinos. Se Elpino Duriense, no poema “À navegação portuguesa do infante D. Henrique”, diz (vv. 5-6): “Eu, que sou menos qu’ele [Camões], mor ainda / serei só por cantar teu nome ilustre”, Camões, por sua vez, no início d’Os Lusíadas, afirma, orgulhoso, emulando a tradição grega e latina (1.3):
Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandre e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre Lusitano,
A quem Neptuno e Marte obedeceram:
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.
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Notas
que com direitos olhos viu nadantes
monstros, e o bravo mar, e Acroceraunos. [Acrouceranos é o que está impresso]
Parecendo melhor a segunda de Cunningham, pode-se traduzir:
que com os olhos fixos viu nadantes
monstros etc.”
Em vão próvido Deus com o Oceano
insociável separou as terras.
Ou:
Debalde co’Oceano insociável
prudente retalhou as terras Jove.”