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O furor de Fúlvia: em torno de sua presença e crueldade na narrativa de Dião Cássio
Fulvia’s frenzy: on her presence and cruelty in the narrative of Cassius Dio
O furor de Fúlvia: em torno de sua presença e crueldade na narrativa de Dião Cássio
Classica - Revista Brasileira de Estudos Clássicos, vol. 37, pp. 1-18, 2024
Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos
Recepción: 05 Agosto 2024
Aprobación: 18 Octubre 2024
Resumo: A partir da comparação da obra História Romana, de Dião Cássio, com outras documentações compostas no decorrer da Antiguidade, é possível identificarmos uma particularidade inerente à narrativa de tal historiador no que concernia à atuação de Fúlvia durante as guerras civis romanas das décadas de 40-30 a.C.: o autor, como defenderemos, é particular e categórico ao retratar Fúlvia como uma mulher cruel e inescrupulosa. Neste artigo, objetivamos, portanto, levantar duas possibilidades de interpretação acerca dessa característica. Primeiramente, buscamos argumentar que a peculiaridade do trabalho de Dião Cássio em relação à figura de Fúlvia está relacionada, em partes, à sua principal fonte de consulta, o Memórias de Augusto, e à particular construção de memória dela feita por Otaviano e Marco Antônio à época da transição. Em seguida, procuramos defender que essa especificidade também está intimamente conectada ao contexto no qual Dião Cássio produziu sua obra e às críticas que o autor teceu às guerras civis e lideranças das mesmas.
Palavras-chave: Fúlvia, Dião Cássio, História Romana, Crueldade Feminina, Memórias de Augusto.
Abstract: Comparing Cassius Dio’s Roman History with other sources from Antiquity, we can identify a particularity inherent to his narrative regarding the actions of Fulvia during the 40-30s B.C. Roman civil wars. Dio, we will argue, is categorical in portraying Fulvia as a cruel and unscrupulous woman. Therefore, in this paper, we aim to raise two possibilities of interpretation regarding this characteristic. Firstly, we seek to argue that the peculiarity of Dio’s work is related, in part, to Augustus’ Memories, the main source he used while writing his work, and to the particular construction of Fulvia’s memory made by Octavian and Mark Antony during the end of the Republic. Next, we claim that this specificity is furthermore closely connected to the context in which Dio produced his book and the criticisms the author had to the civil wars and their leaders.
Keywords: Fulvia, Cassius Dio, Roman History, Female Cruelty, Augustus’ Memories.
Fúlvia, o apogeu de uma vilã
Tendo nascido por volta dos finais da década de 80 a.C., Fúlvia era a última sobrevivente de dois ramos familiares plebeus muito ricos e influentes, os Fulvii e os Sempronii Tuditani. Sabemos que, no decorrer de sua vida, ela se casou três vezes: a primeira com Públio Clódio Pulcro, em 60 a.C.; a segunda, em 52 a.C., com Escribônio Curião; e a terceira com Marco Antônio, em 49 a.C. Com tal histórico matrimonial, a aparição de Fúlvia na documentação antiga esteve, com frequência, em conexão direta com as carreiras de seus maridos, assim como com as suas reputações.
Como apontou Sarah B. Pomeroy (1975, p. 150), os limites da influência das mulheres republicanas se davam de acordo com seus relacionamentos com parentes do sexo masculino. A partir do século II a.C., em decorrência das Guerras Púnicas e da consequente modificação dos parâmetros de competição e ocupação de cargos dentro da elite, as motivações que levavam ao casamento passaram a ser predominantemente políticas, ao invés de, via de regra, financeiras, o que ocasionou um aumento considerável da influência de personagens femininas provenientes de famílias tradicionais, culminando na sua maior interferência nos assuntos públicos (Fontes, 2021, p. 273-4). Isso, por sua vez, gerou repercussões sociais e, como demonstraremos, literárias, em termos de repreensão e críticas sobre comportamentos considerados não adequados, como foi o caso de Fúlvia. Com efeito, sua atuação política ganhou mais tração a partir de 44 a.C., depois do assassinato de Júlio César: momento no qual seu marido, Marco Antônio, se tornou central no desenvolvimento de diversos acontecimentos militares que marcaram a época (Delia, 1991, p. 197-9). Desse modo, como personagem de grande influência, a protagonista de nosso artigo, Fúlvia, foi foco inesgotável de vitupérios, tanto provenientes de autores a ela coetâneos quanto posteriores.
No corpus ciceroniano, por exemplo, cujo autor é responsável pela maior parte das menções a Fúlvia na Antiguidade,1 ela fez aparição significativa nas Filípicas – um conjunto de discursos proferidos por Marco Túlio Cícero contra Marco Antônio, sob encomenda de Otaviano, composto por volta de 44 ou 43 a.C. Nesses discursos, o orador faz cinco acusações contra Fúlvia, todas mirando a reputação de seu esposo. Primeiro, Cícero a acusa de conduzir os negócios da República a partir de sua casa, de seu gineceu – o que, além de implicar o fato de que Marco Antônio não tinha pulso o suficiente para controlá-la, o usurpava do papel de cônsul que ele ocupava na época (Cic. Phil. 2. 95). Depois, Cícero afirma que Marco Antônio teria levado Fúlvia consigo para os campos de batalha, deixando implícito que, até no que concernia aos assuntos militares, Marco Antônio era controlado pelas mulheres de sua vida (Cic. Phil. 6. 4; 13. 18). Ainda, o autor sugere que o par teve um caso antes de se casarem, o que indicava hipocrisia e imoralidade por parte de Marco Antônio – talvez, até o sustento de um relacionamento homoafetivo com Clódio (Cic. Phil. 2. 48; 3. 99). Além disso, Cícero criticou Marco Antônio por ter escolhido casar-se com Fúlvia, uma mulher que ele considerava demasiado gananciosa (Cic. Phil. 2. 45; 3. 16). Por fim, o orador acusou Fúlvia de ser incapaz de trazer sorte aos seus cônjuges, afirmando desejar que Marco Antônio encontrasse o mesmo destino que seus dois maridos anteriores – ou seja, a morte prematura (Cic. Phil. 2. 11.3).
Apesar de essas citações a Fúlvia parecerem extremas, ao incluir tais referências nas Filípicas como uma forma de ataque a Marco Antônio, Cícero não fugia da tradição oratória romana; afinal, a vilanização feminina era um topos da retórica latina e uma comum injúria ao homem romano era a sua falta de controle sobre a própria esposa, o que significava, automaticamente, dano à sua reputação (Delia, 1991, p. 200). Através de sua invectiva ao pulso do general pela sua permissividade para com Fúlvia, o orador pintava uma imagem de Marco Antônio como um falso romano: ele era nada mais que um submisso corrompido pelas mulheres de sua vida. No entanto, mesmo que, na obra ciceroniana, o papel dessa matrona enquanto mulher que empunhava espada fosse um artifício retórico que buscava emascular Marco Antônio ao máximo, a influência que Fúlvia desenvolveu nessa época a tornou um problema político. Caso Fúlvia fosse desconhecida das camadas dirigentes de seu tempo, não teria como e nem porque Cícero investir contra ela de maneira repetida em sua obra, mesmo que fosse apenas como “a esposa de Marco Antônio”. Sem dúvidas, o esquecimento renegado a outras mulheres anônimas conhecidas como “esposas de” e “filhas de” não foi o destino de Fúlvia, dado que, ao fim das Filípicas, ela já tomava posição como uma nada ideal mulher-general (Brennan, 2012, p. 356-60). E foi justamente sua ocupação desse posto, seu papel público, que a tornou um problema político durante a década de 40-30 a.C. e fez com que ela fosse eternizada sob lentes turvas nas obras de tantos autores.
Marcial é um desses autores que demarca tal posição de Fúlvia. Em um epigrama (11.20) creditado a ele, mas supostamente escrito pelo então Augusto, o poeta faz uma conexão causal entre o ciúme que ela tinha dos casos extraconjugais de Marco Antônio e a Batalha de Perúsia2 – uma campanha da guerra civil em andamento nos anos 41-40 a.C. O eu lírico do epigrama descreve uma situação na qual Fúlvia teria afirmado estar atraída por Otaviano – à época, seu genro3 – e solicitado que os dois engajassem em relações sexuais. Algumas linhas do epigrama, desse modo, fazem com que o estopim da Batalha de Perúsia tenha sido um ultimato por parte do desejo carnal de Fúlvia pelo seu genro: ou ele se deitava com ela, ou eles lutavam. Repugnado pela proposta de sua então sogra e confiante em suas habilidades bélicas, Otaviano preferiu ir à guerra a se relacionar com Fúlvia. Pode-se deduzir, então, que, para quem quer que tenha composto o epigrama, essa batalha foi um resultado da paixão sexual de Fúlvia e, em última instância, um conflito sustentado apenas entre ela e Otaviano.
Não obstante tais exemplos esclarecedores, nenhum autor antigo foi tão incisivo na construção de uma imagem condenável de Fúlvia quanto Dião Cássio, que a caracterizava, com frequência, como uma mulher extremamente cruel – especialmente quando da descrição da atuação dessa matrona durante as guerras civis dos anos 40-30 a.C., das quais ela teria participado, de acordo com o autor, como liderança e comandante de facto de legiões romanas. Para ilustrar essa afirmação, reproduzamos aquela que é, muito possivelmente, a cena mais emblemática da atuação de Fúlvia nas guerras civis, segundo o relato de Dião Cássio – o momento da decapitação de Marco Túlio Cícero, perpetrada pela matrona:
(...) δεξιᾶς, ὥσπερ ἀπετέτμητο, ὁρῷτο: ἡ δὲ δὴ Φουλουία ἔς τε τὰς χεῖρας αὐτὴν πρὶν ἀποκομισθῆναι ἐδέξατο, καὶ ἐμπικραναμένη οἱ καὶ ἐμπτύσασα ἐπί τε τὰ γόνατα ἐπέθηκε, καὶ τὸ στόμα αὐτῆς διανοίξασα τήν τε γλῶσσαν ἐξείλκυσε καὶ ταῖς βελόναις αἷς ἐς τὴν κεφαλὴν ἐχρῆτο κατεκέντησε, πολλὰ ἅμα καὶ μιαρὰ προσεπισκώπτουσα.
(...) e Fulvia, com raiva, puxou a cabeça [de Cícero] em suas mãos e então cuspiu nela e a colocou sobre seus joelhos, abriu sua boca e arrancou sua língua e a perfurou com agulhas que usava no cabelo, ao mesmo tempo que proclamava ofensas sobre ela (Cass. Dio. 47.8.4, tradução nossa)
Nessa passagem, Fúlvia é apresentada como brutal em seus maus-tratos ao cadáver de Cícero. Pela leitura desse relato, podemos assumir que, através de seu frenesi sobre a cabeça decapitada de Cícero, Fúlvia buscava vingança em nome de Marco Antônio (e por ela mesma) contra seu inimigo mais odiado, aquele que se colocou perante o Senado para discursar contra ele. Simbolicamente, após seu êxtase, Fúlvia teria ordenado que tanto a cabeça quanto as mãos de Cícero fossem penduradas nos rostra, local de onde o orador havia proferido algumas das Filípicas contra Marco Antônio. Por isso, Ronald Cluett (1998, p. 82) sugere que esse tratamento de Fúlvia à cabeça de Cícero possa ser interpretado como um ato de lealdade a Marco Antônio, mesmo que vingativo. Contudo, é importante destacarmos que Dião Cássio é o único autor a atribuir a Fúlvia papel tão importante na morte de Cícero, e os macabros detalhes de sua narrativa não se encontram reproduzidos em nenhuma outra documentação, contemporânea ou posterior ao fato.
Veleio Patérculo sequer menciona Fúlvia em seu relato sobre a morte de Cícero, muito menos seus potenciais maus-tratos ao cadáver do orador (2.66.3). Apiano, por sua vez, afirma que foi Laena, um dos centuriões de Marco Antônio, aquele que perseguiu Cícero e, por iniciativa própria, arrancou a língua e as mãos do orador para presentear seu general, buscando obter seu favor (App. B. Civ. 4.4.19-20). Plutarco, por outro lado, relata que foi Marco Antônio quem buscou sua vingança sobre Cícero, ordenando tanto a sua decapitação quanto que lhe cortassem sua mão direita, aquela responsável pela escrita das Filípicas (Vit. Ant. 20.3). Certamente, dada a estranheza do fato, o vilipêndio de um cadáver, sobretudo o de um orador de destaque como Cícero foi, não passaria despercebido pela maioria dos autores da Antiguidade. A diferença dessas narrativas para aquela construída por Dião Cássio é gritante.
Porque, então, a Fúlvia de Dião Cássio possui essa distinção? Como apontou Allison Weir (2007, p. 104), esse autor, por vezes, foi hostil a Cícero em sua narrativa e, portanto, é possível que ele tenha exagerado a brutalidade de sua morte propositadamente. De fato, ainda em alinhamento com Weir, se considerarmos a passagem na qual Apiano (B. Civ. 4.2.8) nos informa que apenas as cabeças dos proscritos foram levadas aos triúnviros – para recolhimento do pagamento das recompensas devidas aos assassinos do orador –, é improvável que Fúlvia tivesse tido acesso ao cadáver de Cícero antes do seu desmembramento. Apesar disso, a participação de Fúlvia no destino do orador romano aparece com clareza e abundância de detalhes na História Romana.
E essa não é a única ocasião da narrativa de Dião Cássio que demonstra a inclinação cruel do caráter de Fúlvia em sua atuação nas guerras civis. Segundo o autor, a matrona também teria desempenhado um papel significativo durante a Batalha de Perúsia. No entanto, como apontou Ronald Syme (2002, p. 210-5), é impossível compreendermos o que, de fato, aconteceu nos eventos que precederam essa campanha, principalmente porque suas causas são cercadas, em ambos os lados, por propaganda. Enquanto Apiano (B. Civ. 5.5.43), por um lado, aponta Lúcio Antônio – irmão de Marco Antônio – como líder dos exércitos contrários ao futuro Augusto, Dião Cássio (48.5.3-4), por outro lado, apresenta tanto Lúcio Antônio quanto Fúlvia como pessoas egoístas que usaram o nome de Marco Antônio para promover seus interesses privados em busca de poder no decorrer desse embate. Para esse autor, Fúlvia era arrogante e dominadora, e Lúcio Antônio não passava de um tolo desajeitado. Há, ainda, pouco antes dos trâmites da guerra civil, a participação de Fúlvia nas proscrições dos anos 43/42 a.C.: Dião Cássio (47.8.2-3) também sugere que a matrona se intrometia nos assuntos públicos de Marco Antônio e que, por nutrir uma natureza cruel ao extremo, adicionou diversos homens à lista de proscritos, apesar de não enfatizar, como Apiano, que esses eram seus inimigos pessoais.
Assim, como apontou Anthony Barrett (2002, p. 117), e esperamos que tenha ficado evidente na presente seção, no decorrer da narrativa de Dião Cássio, o autor constrói, aos poucos, uma determinada imagem de Fúlvia: desde seu papel nas proscrições até a posição que passou a ocupar como comandante militar na campanha de Perúsia, Fúlvia teve a si assegurada a memória de ser uma “megera enlouquecida pelo poder”, alguém que, em seus delírios, ultrapassou todos os limites ao interferir nas tropas romanas. Não temos, porém, um meio de precisarmos o papel que Fúlvia, de fato, teve em todos esses eventos. A julgar pelo contexto de sua época e pelas repetidas menções nominais na documentação antiga, somente podemos, com alguma segurança, afirmar que a matrona sustentou uma vida política ativa e influente. No entanto, os diferentes relatos sobre o grau e natureza da participação de Fúlvia nas guerras civis, bem como as diferentes versões sobre suas ações, definitivamente nos proíbem de aceitar, sem questionamentos, a versão dessa personagem histórica que nos apresenta Dião Cássio.
Tal posição do autor pode ser explicada de diferentes maneiras, afinal dentro de uma narrativa histórica existem diversas verdades. Como narrativa, a História, enquanto área do conhecimento, é altamente interpretativa – sobretudo quando levamos em consideração o fato de que nos baseamos majoritariamente em documentações literárias – e, dessa forma, é possível que um mesmo evento, registrado pelas penas dos mais variados autores, seja alvo de diversas, e por vezes até contraditórias, interpretações (Topolski, 1994, p. 9-85). Na História Romana, de Dião Cássio, a Fúlvia cruel é uma personagem. Resta perguntamo-nos o porquê de ela ter tomado a forma que tomou. Nas seções seguintes, começaremos a tentar responder a essas questões, através do desenvolvimento de dois argumentos tanto distintos quanto complementares.
A memória de Fúlvia: vilã e culpada?
Assim como fazemos hoje, a análise e descrição dos eventos feitas pelos historiadores na Antiguidade se baseava nos relatos daqueles que vieram antes deles e, portanto, vivenciaram tais acontecimentos. Dião Cássio não era exceção. Como apontou Tim Cornell (2013, p. 50), Dião Cássio (44.35.3) identificou nominalmente somente duas de suas fontes para o período do Triunvirato, dentre as quais estava a obra Memórias de Augusto. Na verdade, o autor da História Romana afirma ter tido acesso a diversos tipos de documentos, declarando que teria lido quase tudo aquilo que já havia sido composto por qualquer pessoa que o havia precedido; mas, na composição de sua própria obra, o autor afirma ter sido bastante seletivo (frag. 1.2).
Não temos aqui, porém, nenhuma intenção de sugerir que a instrumentalização da produção augustana enquanto fonte histórica tenha sido despropositada por parte de Dião Cássio. Como será mais bem desenvolvido no início da seção seguinte deste artigo, esse historiador foi um grande defensor do sistema monárquico de governo. Guiado por suas próprias convicções de que este era o único modelo possível para a boa administração de Roma, sua narrativa e interesse pelo período dos Triúnviros – quando ocorreram as guerras civis de 40-30 a.C. e quando a atuação política de Fúlvia foi mais relevante –, foi profundamente marcado pelo resultado dele: o Principado. Dessa forma, para Dião Cássio, a história tendia à conclusão inescapável de que Otaviano se tornaria o único governante de Roma e toda a narrativa concernente às guerras civis demonstrava apenas a necessidade da monarquia e de um governante que fosse exatamente como Augusto foi (Gowing, 1992, p. 35).
Dião Cássio certamente não escolheu se apoiar nas Memórias de Augusto em vão. O historiador selecionou, entre as fontes que tinha disponíveis, aquela que ele julgou que melhor poderia lhe dar subsídio para escrever uma obra historiográfica – uma forma específica de relatar eventos que tinha, tradicionalmente, o objetivo principal de oferecer às elites políticas um instrumento analítico para a construção de modelos comportamentais e, também, para a construção de uma memória cívica e da identidade coletiva romana (Nicolai, 2007, p. 13-5).
Escritas na década de 20 a.C., as Memórias de Augusto estão perdidas para nós, mas a lembrança das guerras civis decerto ainda era muito recente quando de sua composição. Nessa obra, é provável que o futuro imperador de Roma tenha feito questão de que a memória dos apoiadores de Marco Antônio, seu adversário em tal conflito, fosse manchada. Considerando o fato de que Fúlvia também foi uma possível oponente de Otaviano nas guerras civis, sua presença tão negativa na História Romana, sobretudo em oposição ao futuro Augusto, não é surpreendente. O uso das Memórias e o apreço que seu autor sustentava pelo imperador e pela monarquia afetou, dessa forma, a narrativa apresentada por Dião Cássio e a maneira que os eventos presentes em sua obra tomaram forma, haja vista que o livro de Augusto foi objeto da propaganda de seu governo – possivelmente buscando justificar sua ascensão.
Em sua História Romana, ao tratar sobre a figura de Fúlvia, Dião Cássio pinta um retrato colorido e negativo das ações dessa mulher, sobretudo no que tange à sua atuação na Batalha de Perúsia. O autor a descreve como tendo a capacidade de ocupar a Palestrina, acompanhada por senadores e equestres que a aconselhavam e através dos quais ela enviava ordens para onde quer que fosse necessário, inclusive aos soldados ali presentes, enquanto ela mesma cingia uma espada (48.10.3-4). E, dessa forma, acabou por estabelecer o conflito como fruto da ânsia de poder de Fúlvia, que, ao fim e ao cabo, tornou a guerra pessoal ao angariar o apoio de Lúcio Antônio e a ofensa de Otaviano.
Assim, chegamos à conclusão de que as narrativas da ação de Fúlvia durante as proscrições e, sobretudo, no decorrer da Batalha de Perúsia, parecem ter o objetivo explícito de sobressaltar o domínio dessa mulher sobre seu então esposo, Marco Antônio, seus aliados e parentes e, em consequência, diminuir o peso não apenas da participação dele e de Otaviano nesses conflitos, mas também, de esvaziar a importância que esses eventos, em si, tiveram para a História de Roma no geral (Gowing, 1992, p. 81). No entanto, como afirmamos anteriormente, não temos certeza sobre a participação real de Fúlvia na Batalha de Perúsia. Sabemos que ela tinha uma vida política ativa anterior à guerra civil e, quiçá, teve papel na incitação da mesma: como é comum quando nos referenciamos a uma matrona de grande poder como foi Fúlvia, as referências mais convincentes nas quais ela exerce poder, principalmente no decorrer de tal conflito, estão relacionadas ao seu papel como esposa (Delia, 1991, p. 205). Ainda, o grau de sua participação nos acontecimentos da guerra civil difere entre os relatos mais completos que temos – ou seja, entre Apiano e Dião Cássio, nossas duas principais referências no que tange ao seu comando militar. No mais, com exceção do Epigrama de Marcial, convenientemente de suposta autoria do próprio Augusto, não há nenhuma outra indicação de que Fúlvia poderia ter investido militarmente contra Marco Antônio e Otaviano, fosse por ciúmes ou qualquer outro motivo. Portanto, as diferentes narrativas de sua posição como mulher que empunhava espada anuviam nossa percepção dela enquanto agente e tornam a interpretação de Fúlvia enquanto figura que detinha poder difícil, ao mesmo tempo em que enfatizam seu papel como uma personagem usada somente como artifício retórico para a crítica de seu esposo. E, assim, a cruel e ciumenta Fúlvia da Batalha de Perúsia como registrada por Dião Cássio parece ser, antes de mais nada, uma invenção (ou uma hipérbole verossímil) da propaganda de Augusto que buscava ocultar, para a posteridade, os verdadeiros motivos do conflito sustentado entre ele mesmo e Lúcio Antônio.
Com efeito, algumas contradições internas das narrativas dos autores da Antiguidade nos permitem identificar a construção deliberada do discurso propagandístico augustano que posiciona Fúlvia enquanto bode expiatório para os acontecimentos ocorridos desde as proscrições até a Batalha de Perúsia. O relato mais enfático e que sustenta tal argumento é o de Plutarco (Vit. Ant. 30.5-6), onde de forma rápida e conveniente, a morte de Fúlvia em 40 a.C. chega para ajudar os planos de Marco Antônio e Otaviano, com a memória dela sendo avidamente abandonada pelo seu esposo. É interessante notarmos que, em momento algum, em outros escritos da Antiguidade, Marco Antônio é representado como um viúvo enlutado que se lamenta pela morte de sua fiel esposa; e a passagem de Plutarco é efetiva em demonstrar uma demasiada falta de sentimentos por parte dele em relação a ela. Desse modo, destaca-se que, até em sua morte, Fúlvia adicionou à reputação de seu esposo ao se tornar aquela que foi, ao fim das contas, responsabilizada pela Batalha de Perúsia e, portanto, facilitou sua reconciliação com Otaviano – o que significou, na prática, o fim da guerra civil, pela qual ela também foi parcialmente responsabilizada.
A morte de Fúlvia eliminava qualquer lealdade que pudesse existir entre ela e Marco Antônio e, dessa forma, ele se aproveitou da situação para colocar a culpa dos conflitos somente em sua esposa morta. Como a morte dela tornou aparente a disposição entre Marco Antônio e Otaviano de se aliarem ao culparem-na pela Batalha de Perúsia, Apiano (B. Civ. 5.6.59) postula como extraordinariamente conveniente que Fúlvia morresse a tempo de que os dois triúnviros chegassem a um acordo de benefício mútuo. Apesar de afirmar que seu esposo se sentia culpado pelo seu falecimento prematuro (App. B. Civ. 5.6.59), há de se destacar que, para esse autor, Marco Antônio enxergava a morte de Fúlvia apenas como um obstáculo a menos em sua reconciliação com Otaviano.
Tais relatos, quando confrontados uns com os outros, nos levam à hipótese de que, apesar de não podermos chegar a conclusões definitivas sobre o papel em si ocupado por Fúlvia no decorrer da Batalha de Perúsia, ela teve sua memória a posteriori construída como a vilã da história em ordem de se encaixar na narrativa conveniente criada tanto por Marco Antônio quanto por Otaviano de que eles foram apenas dois homens submissos manipulados pelos esquemas de grandeza de uma mulher dissimulada. Dião Cássio (48.28.3), inclusive, sugere que, mesmo na época na qual esses conflitos devastavam a cidade de Roma, Fúlvia foi publicamente aceita como a causa primária da guerra e que, quando a notícia de sua morte chegou a Roma, os triúnviros, de imediato e sem hesitação, se reconciliaram, fosse porque ela realmente havia causado as hostilidades que eles sustentavam ou porque eles escolheram fazer da sua morte uma desculpa devido ao medo que nutriam um pelo outro.
Ou seja, Dião Cássio, mesmo admitindo não saber qual foi o papel de Fúlvia no conflito, faz dela uma possível causa da guerra e afirma que, depois da sua morte, não havia mais nenhum obstáculo à reconciliação entre Marco Antônio e Otaviano. Assim, não apenas Cássio, mas a maioria dos autores da Antiguidade, ao tratarem sobre o assunto, parecem concordar que, para os triúnviros, a Batalha de Perúsia foi o resultado dos esquemas de uma mulher ciumenta. Ambos os homens, portanto, tinham bons motivos para fazer de Fúlvia o bode expiatório de suas ações, caso buscassem justificar sua ascensão conjunta.
No caso de Marco Antônio, passar a culpabilizar Fúlvia pelos eventos de Perúsia fazia sentido pois justificava, perante o povo romano, a posição que tomou, durante os anos das guerras civis, contra a própria cidade. A partir do momento no qual Fúlvia passou a ser a mandante principal dos eventos e não mais a agir por mando de seu então esposo, ele se retirava dos olhos do povo e, principalmente, das ordens dirigentes, como um potencial inimigo, e se reconsolidava como um aliado de confiança que foi apenas invalidado pelos delírios de sua esposa. Inclusive, se levarmos a obra de Apiano (B. Civ. 5.6.59) em consideração, é possível que algumas versões do evento relatassem Marco Antônio repreendendo Fúlvia pelo seu papel no caso da Batalha de Perúsia, apesar de o autor não especificar se ele o fez por Fúlvia ter instigado uma guerra contra Otaviano ou por ter falhado em seus objetivos.
No que tange ao caso de Otaviano, talvez suas motivações tenham sido as mesmas de Marco Antônio. Como foi demonstrado por Adriano Scatolin (2015, p. 52-3), um dos maiores desafios encontrados por Otaviano, desde o assassinato de Júlio César em 44 a.C. até seu estabelecimento enquanto Augusto, era provar seu valor perante as ordens dirigentes romanas. Ele precisava, com frequência, justificar – perante o Senado, seus pares e o povo –, suas ações e capacidades político-militares de liderar Roma e suas tropas apesar de sua idade tenra, por conta da memória da ditadura de César e da ilegalidade dos procedimentos que adotava. Um dos meios que Otaviano parece ter usado para justificar sua capacidade enquanto governante foram as Filípicas; e um dos procedimentos ilegais que adotou para que pudesse governar foram as proscrições, que realizou em conjunto com Marco Antônio logo depois.
Ao fim das guerras civis e com a situação da Perúsia chegando à sua conclusão, Otaviano e Marco Antônio precisavam angariar forças em seu favor. Muitos homens das ordens dirigentes romanas haviam sido afetados pela situação da guerra por ambos os lados do conflito; caso não se unissem, corriam o risco de, eles mesmos, sofrerem mais antagonismos. Fúlvia, que, como temos demonstrado, parece ter sido uma figura de destaque à época, era o escape lógico. Ao culparem-na não só pelo estopim da guerra, mas também ao colocarem-na no campo de batalha, comandando tropas, esses homens se abstinham de suas responsabilidades pelos eventos decorridos nessas campanhas e, logo, os atribuíam aos desejos alucinados de uma mulher forte e vingativa. Uma das evidências de que Otaviano teria voluntariamente colaborado para a construção dessa imagem de Fúlvia, por exemplo, é o já citado Epigrama de Marcial (11.20), no qual o eu lírico do poema, supostamente Augusto, acusa-a de ter incitado a guerra não só por ciúmes, mas, também, por desejá-lo sexualmente.
É essa a Fúlvia das Memórias de Augusto, então? Não sabemos dizer, dado que essa obra foi perdida. Mas a Fúlvia andrógina que Dião Cássio depreendeu de sua leitura e incorporou em sua obra pode ser evidência da caracterização que ali se encontrava: uma matrona tomada pelo seu desejo insaciável de vingança e crueldade em suas ações sangrentas, mesmo que fossem aquelas que, ao fim e ao cabo, eram tomadas em benefício de seu esposo. Haja vista sua composição nos anos 20 a.C. e sua proximidade ao fim do conflito civil, fazia sentido para Otaviano a construção de uma memória que estabelecesse seu antigo adversário como fraco e submisso, ao mesmo tempo em que reforçasse a ideia de Fúlvia como dominadora e cruel. Sobretudo após a morte de Marco Antônio em 30 a.C., o reforço da memória desse homem como tolo era necessária, dada a consequente adoção de sua prole por parte do futuro Augusto. E, de mãos dadas com essa imagem de Marco Antônio, vinha a consolidação da personagem de Fúlvia como cruel. Ao estabelecer a memória de tais personagens dessa forma no discurso de sua propaganda imperial, ao justificar sua ascensão e ao lembrarem dos conflitos civis, mas também ao contemplarem a linhagem familiar de Augusto, o imperador garantia que o povo o pensasse como piedoso. Ou seja, por meio da vilanização de Fúlvia e da construção de uma memória negativa dela, Augusto foi capaz de demonstrar sua magnanimidade e provar sua pietas, clementia e benevolentia para a plebe romana, bem como para as ordens dirigentes remanescentes, justificando, assim, sua ascensão (Fontes, 2021, p. 200-2, 257-61).
Enquanto reprodutor da propaganda augustana, mesmo que séculos após seu apogeu, não é de surpreender que esse discurso se cristalize na obra de Dião Cássio. De fato, há de se destacar que, enquanto os eventos narrados pelo autor vão se aproximando da Batalha de Perúsia, Fúlvia vai ficando cada vez mais cruel e dominadora – não só de Marco Antônio, mas, também, de outros. Tal aspecto de sua narrativa, é claro, deve muito ao fato de o autor ter-se baseado nas Memórias de Augusto para a composição de sua obra. No entanto, existem aspectos particulares ao contexto do próprio Dião Cássio que parecem ter, de algum modo, influenciado no retrato negativo uniforme que o autor pintou dessa mulher. Esses serão tratados na próxima seção.
A Fúlvia de Dião Cássio: construção narrativa e horror das guerras civis
Na presente seção, buscaremos demonstrar que o fato de Dião Cássio ter pintado um retrato tão desfavorável de Fúlvia está conectado não apenas à fonte consultada para a composição da História Romana e à memória coletiva dela na sociedade, argumento da seção anterior de nosso artigo, mas, também, ao presente no qual Dião Cássio vivia e às críticas que o mesmo tinha aos líderes de seu próprio tempo. Para tanto, precisamos partir para um estudo focado, mais precisamente, no narrador da História Romana.
De acordo com o que a historiografia contemporânea pôde inferir até o momento, Dião Cássio nasceu em algum momento por volta de 165 d.C., tendo falecido em torno de 231 d.C. Nos seus mais de sessenta e cinco anos de vida, ele construiu sua trajetória enquanto historiador romano, político e membro das classes dirigentes do Principado, principalmente na dinastia dos Severos (Scott, 2018, p. 1-3). Tudo isso, destacamos, o tornou um personagem de interesse para um sem-número de pesquisadores da Antiguidade, que se debruçaram sobre seus trabalhos, carreira e círculos intelectual e social. O grande volume de estudos sobre Dião Cássio, não obstante, deixa evidente sua complexidade enquanto autor.
Nativo de Nicéia, na Bitínia, Dião Cássio foi, no correr de sua trajetória de vida, bem-sucedido enquanto funcionário público e historiador. Com efeito, o sucesso que o autor experimentou foi fruto exemplar do estabelecimento inegável de uma política de abertura em relação aos orientais iniciada por Roma desde o século II d.C. O contato progressivamente mais extensivo com essas províncias tornou possível tanto o enriquecimento das elites locais quanto a maior participação das mesmas na burocracia do Principado (Gowing, 1992, p. 284). Assim, como filho de Cássio Aproniano – que fora cônsul, senador e, também, governador da Cecília e Dalmácia –, Dião Cássio teve, aos dezessete anos, a oportunidade de mudar-se para Roma e integrar-se aos círculos da administração imperial, tendo exercido as funções de pretor, governador, tribuno militar e de cônsul, por duas vezes (Millar, 1964, p. 8-17; Swan, 2004, p. 1-3).
Como ator histórico, portanto, a possibilidade da existência de Dião Cássio enquanto a personalidade que foi está completamente atrelada às oportunidades que o Principado ofertou – oportunidades essas que, na realidade republicana, estavam distantes dos provincianos. Em consequência disso, como mencionamos na primeira seção deste artigo, é possível detectar, na História Romana de Dião Cássio, fortes tendências pró-monárquicas (Cass. Dio. 44.2). Ainda, é possível observar essa inclinação através da constatação do interesse especial dispensado ao futuro Augusto, cuja ascensão ao poder foi garantida através de penosas guerras civis – conflitos que, como Jesper Madsen (2019, p. 471) defende, estão retratados no trabalho de Dião Cássio como um passo necessário na trajetória de Roma em direção a um período de paz.
Apesar disso, ao contrário do que se poderia esperar, a relação de Dião Cássio com o Principado era bastante complexa. Cássio viveu em um período deveras marcado pela difícil compatibilidade entre um poder monárquico, que concentrava, no princeps, poderes extraordinários, e uma estrutura de res publica que deveria garantir, aos senadores, colaboração ativa no governo – do qual o princeps deveria participar apenas como um primus inter pares.4 Ainda que a grande maioria dos imperadores tenha buscado algum tipo de conciliação com o Senado, pelo menos desde Cômodo era evidente que os ocupantes da Cúria, enquanto elite política, viviam constantemente ameaçados pelo imperador (Furtado, 2013, p. 241-5). Ainda, tendo Dião Cássio sido contemporâneo aos assassinatos de Cômodo, Hélvio Pertinaz e Dício Juliano por suas guardas pretonianas e, também, tendo testemunhado a guerra civil que garantiu a sucessão de Sétimo Severo ao poder – durante a qual o futuro imperador executou senadores que apoiaram seus rivais (Gonçalves, 2020, p. 236-9) –, o autor da História Romana foi um grande crítico do governo sob o qual vivia e outros. Consequentemente, como funcionário público e testemunha ocular de conflitos sangrentos, Cássio demonstrou profunda insatisfação com a interferência de tropas romanas em questões relativas à política imperial.
Assim, as incisivas e implícitas passagens de desaprovação a imperadores específicos convivem, na História Romana, lado a lado com a defesa firme do sistema monárquico. Acreditamos, então, que uma das grandes complexidades do texto de Dião Cássio é a possibilidade que temos de testemunhar suas aparentes contradições. Como não poderia deixar de ser, elas existem e percorrem a maioria dos temas de seu trabalho que são atravessados pela sua constante luta em encontrar um ponto de equilíbrio entre tecer críticas a líderes do Principado e, ao mesmo tempo, defender esse sistema como aquele mais adequado para se viver. Desse modo, as guerras civis da República, mobilizadas na obra de Dião Cássio como parte inevitável do caminho de Roma até o Principado, como já mencionamos, são também utilizadas como recursos narrativos constantes para que o autor pudesse expressar seu descontentamento com os próprios líderes.
Esses líderes poderiam ser, como esperado, homens – abarcando desde o imperador a outros cidadãos e generais de exército que assumiam posições de destaque na burocracia administrativa de Roma e movimentavam o cenário político da época. No entanto, como defendemos na seção anterior, Dião Cássio foi extensivamente influenciado pela propaganda de Otaviano, com a qual teve contato a partir da leitura e mobilização das Memórias de Augusto. Nessa obra, como também discutimos, é muito provável que Fúlvia tenha sido usada como artifício para atingir dois objetivos de extrema importância: 1) vilanizar um oponente de Otaviano e 2) servir como escudo para que as críticas mais pesadas ao principal rival do futuro princeps não atingissem, de fato, Marco Antônio – pai biológico dos filhos adotivos de Otaviano. Em consequência disso, na obra de Dião Cássio, Fúlvia tornou-se a líder de facto da coalizão oposta a Otaviano, comandando exércitos e, mais importante do que isso: sendo cruel e imprópria enquanto eliminava seus inimigos.
Façamos, pois, um retorno completo ao início deste trabalho: é o momento de recuperarmos a passagem reproduzida na primeira seção, na qual Dião Cássio narra o momento em que Fúlvia tripudia sobre o cadáver de Cícero (Cass. Dio. 47.8.4). A teatralidade da cena é seu ponto mais marcante, mas não seu elemento mais surpreendente: a dramaticidade é, ao contrário, marca bastante característica e conhecida de um texto elaborado sob a pena de um autor que foi, muito provavelmente, influenciado pelos sofistas (Swan, 2004, p. 27). Aprender com esses mestres da eloquência trouxe um impacto muito profundo na forma como Dião Cássio pensava seu texto, em como ele o organizava e, sobretudo, nos dispositivos retóricos que ele escolhia usar. Nesse trecho específico, podemos identificar uma estratégia muito específica: a da enumeração (Borges, 2023, p. 71).
Esse artifício, muitas das vezes, é usado para amplificar – aumentar a presença. Para provar algo ou para convencer o leitor, são dispostas, à frente do mesmo, uma a uma, partes do todo de uma cena (Perelman, 1996, p. 267). Nesse caso, Dião Cássio aponta, um por vez, cada um dos abusos consumados por Fúlvia sobre a cabeça de Cícero: primeiro, ela cospe na mesma; depois, com a cabeça apoiada sobre seus joelhos, a matrona força sua boca a ser escancarada; em seguida, ela puxa para fora a língua do falecido orador e perfura a mesma; por fim, durante todo o tempo em que tais violações ocorriam, Fúlvia proferia zombarias terríveis contra os restos mortais de Cícero. A descrição da cena, dividida em partes e com suas minúcias enumeradas, torna inescapável o desenrolar do processo na imaginação do leitor, que é guiado, do primeiro ao último ponto, a visualizá-la – muito mais concreta, depois de tão bem detalhada.
Houve, portanto, de modo consciente, certo exagero na descrição desse episódio. Sua teatralidade, porém, não era leviana quando empregada na História Romana, especialmente não quando este compunha o quadro dos relatos concernentes às guerras civis da República. Nesses casos, tais recursos narrativos serviam, como defendemos, para melhor compor um cenário de puro horror e de tragédia relacionados a esses tipos de conflito – o que, por sua vez, funcionava como uma forma de crítica ao presente do autor através da mobilização do passado histórico.
Para melhor desenvolvermos esse ponto, podemos citar o trabalho de Gianpaolo Urso (2016, p. 22): o autor demonstra como, em discursos atribuídos a César, aos Triúnviros e outros, uma espécie de perversidade/crueldade imputada a Sila é sempre relembrada. Isso é feito, porém, associando-a, por exemplo, ao discurso de Sétimo Severo quando este assumiu o cargo de imperador – logo, a postura e ações do princeps, que não poderiam ser nada além de elogiadas, eram criticadas por alusão, através da associação com os tempos da República que Dião Cássio havia se proposto a recontar. Em complemento a esse artifício, podemos, também, refletir sobre uma conexão importante entre duas passagens da História Romana. Na primeira, Dião Cássio (Cass. Dio. frag. 102) relata o sangrento saque de Mário a Roma durante sua guerra civil contra Sila quando, segundo o autor, o general teria, entre outras atrocidades, decapitado membros de grande proeminência na sociedade. A segunda passagem (Cass. Dio. 76.7-8), por sua vez, trata de quando Sétimo Severo, após a guerra contra Albino, enviou a cabeça do rival para ser exposta e, em pronunciamento ao povo romano, elogiou as ações passadas de Mário e sua crueldade; em seguida, também ordenou a execução de diversos cidadãos que foram seus inimigos durante sua guerra civil. Dião Cássio não explora o horror desses assassinatos, em seu tempo, com o mesmo afinco que faz com os da época de Mário, mas a correlação dos dois momentos, feita pelo próprio autor a partir da citação de Mário no discurso de Severo, deixa implícita a sua crítica (Borges, 2023, p. 70).
Para além dos paralelos entre a brutalidade de Severo e Mário e, também, entre Severo e Sila, ainda é possível reconhecer, na História Romana, semelhanças entre ações do princeps que Dião Cássio tanto queria criticar e momentos correlatos de profundo desespero causado na população pelas mãos de Júlio César e Pompeu (Madsen, 2019, p. 480-484). Muitas das críticas que o historiador traçou sobre os líderes, no contexto das guerras civis, relacionavam-se à crueldade deles (Cass. Dio. 47.3-6). Parece existir, na obra de Dião Cássio, um horror à guerra interna que está muito conectado às más lideranças, como desenvolveremos logo a seguir. Portanto, a narrativa de Dião Cássio envolvendo os conflitos internos da República estava, mais do que tudo, marcada por uma descrição intensa das violências perpetradas ou facilitadas por aqueles que detinham ou disputavam o poder.
Apesar de ser mulher, pelos motivos argumentados nas primeiras seções deste artigo, Fúlvia participava da narrativa de Dião Cássio como uma personagem que assumiu função de liderança nas guerras civis das décadas de 40-30 a.C. Muitos desses líderes, no entanto, como discutimos, eram alvos de críticas. Isso porque, no trabalho do historiador aqui analisado, grande parte deles tinha uma característica compartilhada: o apelo ao individualismo em oposição à inclinação para trabalhar em prol do bem-comum. Na História Romana, isso está relacionado ao que o autor entende como a própria “natureza humana”. Essa concepção aparece em Dião Cássio como uma força maligna e poderosa, que atrai os seres humanos para uma constante busca por vontades e poderes individuais, tornando diversos líderes inaptos a praticarem, como seria seu dever, a harmonia e a moderação (Swan, 2004, p. 12; Borges, 2023, p. 67; Cass. Dio. 44.2).
O magnetismo quase irresistível dessa força não afetava, para Dião Cássio, todos os líderes e/ou governantes – como fica claro pelas opiniões expressas sobre Marco Aurélio (Cass. Dio. 72.33-6) e pelo interesse basilar que dispensa ao futuro Augusto (Gowing, 1992, p. 35). No entanto, não eram muitos os que não eram corrompidos dessa forma. Marco Antônio, alvo constante das críticas do historiador, o teria sido; sua esposa, excessivamente cruel, como trabalhamos ao longo deste artigo, era evidência de sua emasculação e falta de pulso. Mais do que isso, porém, ao participar, na História Romana, como comandante de facto de diversas legiões e oponente direta de Otaviano, Fúlvia passou a operar também, na narrativa de Dião Cássio, como epítome daquilo que o autor mais parecia depreciar em um líder: um indivíduo demasiado autocentrado e, em última instância, capaz de horrores absurdos contra o próprio povo.
Assim, a teatralidade da cena da decapitação de Cícero é extremamente emblemática e, argumentamos, exemplar. Isso pois, nela, Fúlvia se mostra como a liderança cruel que Dião Cássio temia e enxergava em seu próprio tempo. A descrição da violação e desonra feitas aos restos mortais de um cidadão é, portanto, intensa como é porque tem toda a intenção de chocar o leitor: a elite letrada de Roma. Esse aspecto é compatível com o objetivo cívico do gênero historiográfico, como aludimos na seção anterior deste artigo. Os gregos – como Dião Cássio e os que vieram antes dele – pareciam operar com uma concepção de História perpétua, uma sequência sem fim de acontecimentos que precisava ser registrada em uma espécie de cânone, sendo dever do historiador a continuidade do mesmo (Matijašić, 2018, p. 123-7). Essa longa e contínua narrativa funcionava, desde Heródoto, com base em uma cronologia de eventos e tinha um caráter marcadamente pedagógico: assim, a configuração, disposição e caracterização dos eventos relatados atendiam ao propósito da criação de paradigmas, fossem eles éticos, militares, políticos ou outros (Matijašić, 2018, p. 128-34). Desse modo, ao mobilizar o passado republicano e retratar Fúlvia como o fez, Dião Cássio possivelmente pretendia, com sorte, alertar seus pares contra os perigos de um tipo muito específico de líder: aquele que levava romanos a lutarem contra romanos não pelo bem-comum, mas porque estavam cegos pela sua própria sede de poder.
Considerações finais
Fúlvia foi uma mulher que exerceu importante papel político na década de 40 a.C. O que sabemos sobre ela, no entanto, é um retrato imperfeito – como não deixa de ser, de diferentes formas, o caso de todos os atores sociais do Mundo Antigo que conhecemos somente através de fontes que chegaram a nós, principalmente quando se trata de personagens femininas.
Enfim, como esperamos que nosso artigo tenha conseguido defender, a crueldade atribuída a Fúlvia por Dião Cássio é fruto do esforço de registro de um autor muito particular, que estava preocupado, em primeira instância, com seu próprio tempo e suas próprias convicções. Na História Romana, a matrona é ainda mais cruel, desmedida e sanguinária do que suas símiles em outras narrativas. E a forma como essa personagem foi narrativizada pode revelar, para nós, a luta do autor entre o que ele acreditava ser correto e melhor para Roma – o sistema monárquico – e o que seus olhos testemunharam – a corrupção do poder imperial e seus líderes. Ainda, na sociedade romana, a invisibilidade e o silêncio feminino eram parte da ordem das coisas. Sua garantia era responsável pela manutenção de uma cidade pacífica: a aparição pública de mulheres era considerada possível causa de medo, um distúrbio da ordem estabelecida. Assim, o papel que Fúlvia ocupou na década de 40 a.C. possivelmente causou desconforto às suas contrapartes masculinas, e uma forma de silenciá-la foi a construção de sua memória como uma megera manipuladora e dominadora, mesmo à sua época. No entanto, sua imagem como personalidade cruel e atroz deve-se, também e em grande parte, à mobilização dessa figura enquanto personagem na narrativa da História Romana de Dião Cássio. O autor, então, a teria escolhido, para a instrumentalização retórica de seus descontentamentos, justamente por ser um alvo fácil.
Otaviano, desde sua encomenda das Filípicas a Cícero até a composição de suas Memórias, entendia o poder que havia em controlar a narrativa, em ser capaz de convencer outros sobre uma verdade cuidadosamente cultivada. A Fúlvia de Dião Cássio é, também, consequência disso. Sua imagem na História Romana, composta séculos após os eventos narrados, já havia sido manipulada em uma antítese da matrona romana ideal – cuja obrigação primária era a submissão para promover uma vida doméstica harmoniosa, não o conflito – muito antes da composição dessa obra. Nela, talvez tenhamos uma distorção grotesca dos eventos que ocorreram envolvendo Fúlvia, mas, como demonstramos, esse “exagero” e teatralidade na obra de Dião Cássio são propositais. E, assim, não podemos ignorar ou diminuir o fato de que esse autor adicionou à tradição, tornando Fúlvia o pior exemplo possível de comportamento para uma matrona projetado pelos homens romanos e transformando-a, ademais, em um estereótipo feminino andrógino: uma mulher que empunhava espada.
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Notas