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A recepção da filosofia de Heráclito pelo jovem Nietzsche

The young Nietzsche's reception of Heraclitus Philosophy

Gabriel Ferreira Quattrer
Universidade de São Paulo, São Paulo – SP, Brasil, Brasil

A recepção da filosofia de Heráclito pelo jovem Nietzsche

Classica - Revista Brasileira de Estudos Clássicos, vol. 37, pp. 1-17, 2024

Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos

Recepción: 22 Junio 2024

Aprobación: 31 Octubre 2024

Resumo: Nesse artigo abordaremos a interpretação que Nietzsche realizou da filosofia de Heráclito em sua obra de juventude. Explicitaremos a leitura nietzschiana dos principais conceitos atribuídos ao filósofo grego, destacando a importância que Heráclito adquire na primeira fase de seu pensamento como a principal figura dentre os chamados “filósofos pré-platônicos”. Buscaremos destacar a maneira como Heráclito surge para o jovem Nietzsche como a imagem ideal do verdadeiro filósofo, bem como o principal proponente de uma filosofia trágica, que salvaguarda o mundo do vir a ser a partir de uma justificação estética, destacando a beleza e a necessidade inerentes a toda criação e destruição, através dos conceitos de “jogo” e “luta”.

Palavras-chave: Nietzsche, Heráclito, Pré-socráticos, Pré-platônicos, Estudos de Recepção.

Abstract: In this article, we will address Nietzsche’s interpretation of Heraclitus’ philosophy in his early work. We will elucidate Nietzsche’s reading of the key concepts attributed to the Greek philosopher, emphasizing the importance that Heraclitus assumes in the first phase of Nietzsche’s thought as the primary figure among the so-called “pre-Platonic philosophers.” We will seek to highlight how Heraclitus emerges for young Nietzsche as the ideal image of the true philosopher, as well as the main proponent of a tragic philosophy, that safeguards the world of becoming through an aesthetic justification, underscoring the beauty and inherent necessity in all creation and destruction, through his concepts of “game” and “strife”.

Keywords: Nietzsche, Heraclitus, Presocratics, Pre-platonics, Reception Studies.

Introdução1

Este artigo pretende fazer uma análise da interpretação que Nietzsche realizou do pensamento de Heráclito, parte dos chamados filósofos “pré-socráticos”. Nietzsche, por sua vez, denomina-os mais especificamente como filósofos “pré-platônicos”. É importante notar que os dois principais escritos nos quais Nietzsche trata desse grupo de filósofos, A Filosofia na Era Trágica dos Gregos (PHG/FT) e Lições sobre os filósofos Pré-platônicos (PPP), foram redigidos durante o seu chamado “período de juventude” (1869-1876). Essa etapa de sua obra é amplamente marcada pela influência exercida sobre ele pela leitura de Schopenhauer e Wagner, bem como pelo projeto de renovação da cultura alemã a partir de uma nova forma de se relacionar com a antiga cultura grega, em uma espécie de renovação do espírito helênico na Alemanha moderna a ser conquistada, principalmente, através da arte.

Heráclito aparece, já nas obras desse primeiro período, como uma das grandes referências para o jovem Nietzsche, que o citará até o fim de seus escritos como o filósofo mais próximo de seu próprio pensamento com o qual já se deparou (EH/EH, “O Nascimento da Tragédia”, §3). Na PHG/FT (1873), nosso principal documento para as suas opiniões sobre Heráclito, os fragmentos do filósofo de Éfeso são retratados como o mais alto grau de manifestação de uma filosofia trágica, avançando um pensamento que justificaria esteticamente todo criar e destruir presente no cosmo. Nessa obra, Nietzsche entende a filosofia de Heráclito, do ponto de vista temático, como uma continuação da reflexão acerca do problema do vir a ser, identificado primeiramente por Anaximandro, que pode ser resumido na questão: “como pode ser que algo que tenha vindo a ser, tenha de perecer?” (PHG/FT, §4).2 Ao mesmo tempo, Heráclito é retratado como uma espécie de antípoda intelectual, tanto de Anaximandro como de Parmênides: enquanto Heráclito surge como o filósofo que busca salvaguardar o mundo das aparências e da mudança como única realidade e como possuidor de uma justiça intrínseca e divina, Anaximandro e Parmênides aparecem como os primeiros grandes metafísicos, responsáveis por rebaixar o mundo sensível à categoria de mera aparência e a estabelecer um Ser transcendente que seria a única esfera possuidora de verdadeira realidade.

Em PPP, Nietzsche também trata de forma extensa sobre o pensamento de Heráclito, dessa vez, entretanto, seguindo as linhas gerais de abordagem adotada nesse escrito, que possui um caráter muito mais filológico e tradicional do que a PHG/FT, uma vez que é constituído das anotações de um curso universitário sobre os filósofos “pré-platônicos” que Nietzsche ministrou na Universidade da Basiléia no início da década de 1870. Nesse texto, Nietzsche constantemente aproxima e elucida as ideias do filósofo grego a partir de teorias científicas modernas, promovendo um diálogo fluido entre a Antiguidade e ideias científicas e filosóficas de seu próprio tempo. Essa “mistura” de abordagens, que combina filosofia, filologia, trabalho literário e ciência é uma das marcas dos escritos do jovem Nietzsche que, embora tenha sido motivo de duras críticas em sua época, é hoje, talvez, a parte mais instigante de sua obra de juventude e, em especial, de seu tratamento dos primeiros filósofos gregos.

Sendo assim, buscaremos, nesse artigo, explicitar os principais elementos da interpretação nietzschiana da filosofia de Heráclito conforme ela aparece nesses dois escritos de juventude, segmentando nossa análise a partir dos temas centrais que ele identifica no pensamento do filósofo grego, conforme segue: (i) a justiça do vir a ser (ii) o Logos universal, (iii) o fogo como princípio cosmológico, (iv) a luta entre os contrários, (v) a natureza dos contrários e (vi) a ideia do mundo como um jogo da divindade.

I. A justiça do vir a ser

Logo após sua interpretação do pensamento de Anaximandro em A Filosofia na Era Trágica dos Gregos, Nietzsche passa ao exame da filosofia de Heráclito de Éfeso. Em sua visão, existe uma continuidade entre o pensamento desses dois filósofos, que o leva a estabelecer uma comparação entre a filosofia de ambos. Enquanto, em Anaximandro, a esfera do vir a ser é uma esfera de culpa, para a qual deve haver uma expiação através da destruição, Nietzsche enxerga na figura de Heráclito “o filósofo que afirmou a totalidade como um eterno vir a ser regido por uma justiça imanente” (PHG/FT, §5). Ele ressalta o caráter afirmativo que Heráclito dá ao vir a ser de todas as coisas ao dizer, na voz do filósofo do Éfeso:

Heráclito de Éfeso surgiu no meio da noite mística que envolvia o problema do devir em Anaximandro, e iluminou-o com um raio de luz divino: ‘Contemplo o devir’, diz ele [Heráclito], ‘e nunca alguém contemplou com tanta atenção o fluxo e o ritmo eternos das coisas. E o que é que eu vi? [...] Contemplei, não a punição do que no devir entrou, mas a justificação do devir. Quando é que o crime, a secessão se manifestou em formas invioláveis, em leis piedosamente veneradas? Onde domina a injustiça, depara-se com o arbitrário, a desordem, a irregularidade, a contradição; mas onde só reinam a lei e a diké, filha de Zeus, [...] como poderia aí vigorar a esfera da culpa, da expiação, da condenação e, por assim dizer, o lugar de suplício de todos os condenados’? (PHG/FT, §5)

O Heráclito de Nietzsche surge, portanto, como uma figura que ilumina a problemática do devir de Anaximandro, como “um raio de luz divino”. Essa imagem do pensar relampejante do grego, que clareia tudo de forma súbita, rápida e intensa remete ao fragmento 64 de Heráclito, que diz: “De todas (as coisas) o raio fulgurante dirige o curso” (Souza, 1996, DK 22 B 64).3 Ao contemplar o mundo, Heráclito percebeu intuitivamente duas coisas fundamentais: primeiramente, que tudo está em devir e, em segundo lugar, que esse devir acontece de forma regular e ordenada. Desse par de constatações fundamentais, ele retirou uma conclusão: o vir a ser, por ser a totalidade e, portanto, a única realidade, apresenta-se como a última instância do que é justo, e não como algo que possa ser julgado a esse respeito. Essa intuição é reforçada pela observação de que o devir das coisas acontece segundo leis invariáveis. Ora, o âmbito da injustiça é, ao mesmo tempo, o âmbito do caos, da desordem e da irregularidade. No cosmo, portanto, onde reinam “a lei e a dikē, filha de Zeus”, só pode imperar a justiça.

Mais significativo ainda é o fato de, segundo Nietzsche, não existir para Heráclito uma realidade do “vir a ser” e uma outra do “ser” (como na dicotomia entre os entes definidos e o apeiron, em Anaximandro), conforme o seguinte trecho deixa claro:

Em primeiro lugar, [Heráclito] negou a dualidade de dois mundos totalmente diferentes, que Anaximandro se vira obrigado a admitir; já não distingue um mundo físico e um mundo metafísico, um domínio de qualidades definidas e um domínio da indeterminação indefinível. Após este primeiro passo, também já não pôde coibir-se de uma maior audácia da negação: negou o ser em geral. [...] Heráclito exclamou mais alto do que Anaximandro: “Só vejo o devir. Não vos deixeis enganar!” (PHG/FT, §5).

Hershbell e Nimis destacam que Nietzsche baseia sua interpretação de Heráclito como um filósofo que entende o cosmo como um fluxo eterno e incessante, na interpretação de seu pensamento presente já em Platão e Aristóteles. Essa posição antiga parece ter sido construída, principalmente, a partir dos fragmentos em que se estabelece, presumivelmente, uma analogia entre o devir e o fluxo dos rios (Hershbell; Nimis, 1979, p. 27), nos quais Heráclito diz: “Para os que entram nos mesmos rios, correm outras e novas águas” (Bornheim, 2000, DK 22 B 12) e “Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos” (Souza, 1996, DK 22 B 64). O outro, e talvez mais famoso “fragmento do rio”, afirma: “Não se pode entrar duas vezes no mesmo rio” (Bornheim, 2000, DK 22 B 91).

Desde a antiguidade esses fragmentos parecem ter sido interpretados como significando a contínua mudança e o vir a ser de todas as coisas, e é a essa opinião que Nietzsche subscreve sua própria interpretação. Essa leitura platônico-aristotélica, porém, deixou de ser unânime e foi combatida, por exemplo, por Kirk, Raven e Schofield no século XX, que argumentam que Heráclito usou a qualificação “mesmo rio” para ressaltar que existe estabilidade e unidade durante a mudança. Para eles, o foco do fragmento de Heráclito é “a medida inerente à mudança, ou seja, o aspecto que permanece estável através do vir a ser e que o governa” (Kirk, Raven; Schofield, 2010, p. 201-203). Entretanto, com o livro de Charles Kahn, The Art and Thought of Heraclitus (1981), um dos mais influentes escritos sobre Heráclito no século XX, em que ele estabelece um posicionamento intermediário entre Kirk e a tradição platônico-aristotélica, uma nova importante interpretação para esses fragmentos foi lançada. Para ele, o fragmento de Heráclito, ao dizer que o rio é “o mesmo”, afirma que a forma do rio permanece, apesar de seu conteúdo material (as águas) serem sempre diferentes. Segundo ele, “o pensamento expresso pela imagem do rio reforça aquela do fogo: a preservação de uma estrutura ao interno de um processo em fluxo, no qual uma unidade unitária é mantida, enquanto o seu ‘preenchimento’ material é constantemente perdido e substituído” (Kahn, 1981, p. 168). Nesse procedimento, Kahn une os dois fragmentos do rio, propondo o seguinte sentido completo: “Não se pode entrar duas vezes no mesmo rio. Pois, para os que entram nos (supostos) mesmos rios, correm outras e novas águas” (Kahn, 1981, p. 169). Dessa forma, em resumo, o rio de Heráclito é e não é o mesmo, simultaneamente: é o mesmo enquanto mantém uma mesma forma, e é outro enquanto é composto de uma matéria em fluxo contínuo. Assim sendo, para Kahn, Heráclito não enfatiza em seu pensamento nem o que permanece estável através da mudança, nem a própria mudança incessante, mas a relação necessária que existe entre esses dois polos, exemplificada pelo par matéria e forma.

Nietzsche, por sua vez, como dissemos, subscreve-se à interpretação platônico-aristotélica, dominante no século XIX, de que os fragmentos de Heráclito significam que o rio está em constante fluxo. O “tudo flui” seria o lema de sua filosofia. Para ele, qualquer percepção de estabilidade que possamos notar nos objetos é resultado unicamente da limitação de nosso aparato cognitivo. Segundo Nietzsche, enquanto a tradição filosófica ocidental se moveu cada vez mais na direção de uma rejeição dos sentidos porque eles atestavam o vir a ser e a mudança onde a razão queria enxergar o ser, fixo e imutável, Heráclito rejeitou os sentidos pelo motivo contrário: justamente por atestarem permanência e estabilidade onde existe apenas um eterno fluxo.

Para afirmar a justiça intrínseca ao vir a ser não bastava a Heráclito, entretanto, notar que tudo está em processo de vir a ser o tempo todo, mas, também, que esse vir a ser segue uma determinada ordem, uma medida que seria o sinal de sua justiça interna. Uma tal regularidade só poderia representar a justiça. Para Nietzsche, Heráclito chamou a essa medida que tudo governa de Logos.

II. O Logos universal

Este Logos, os homens, antes ou depois de o haverem ouvido, jamais o compreendem. Ainda que tudo aconteça conforme este Logos, parecem não terem experiência experimentando-se em tais palavras e obras, como eu as exponho, distinguindo e explicando a natureza de cada coisa. Os homens ignoram o que fazem em estado de vigília, assim como esquecem o que fazem durante o sono (Bornheim, 2000, DK 22 B 1).

Para Nietzsche, na concepção cosmológica de Heráclito, os entes com qualidades definidas encontram seu fim não no não-ser absoluto, mas em sua transformação em um outro ente que também possui qualidades definidas, diversas das do primeiro, seguindo um certo Logos, ou seja – na leitura que Nietzsche faz desse termo – uma certa medida, ordem ou proporção. Não existe, portanto, destruição em sentido estrito de nenhum ente, apenas sua transformação em outro. Assim sendo, o fim de qualquer coisa é, ao mesmo tempo, o processo necessário para o nascimento de uma nova. Esse Logos, por sua vez, não é compreendido por Heráclito, segundo Nietzsche, como uma lei ou uma regra que é ditada aos entes por uma esfera superior da existência, isto é: o logos heraclitiano não é uma lei ou uma categoria transcendente, mas é a própria resultante das transformações de um ente em outro, ou seja, a proporção e ordenamento imanentes ao próprio processo de vir a ser dos entes, não tendo qualquer “propósito” superior e nem encontrando um “porquê” fora do próprio processo de interação e transformação. Longe, portanto, de ser uma inteligência divina que impõe uma medida sobre o devir, estando, ela mesma, fora e alheia a esse devir, o Logos de Heráclito é, para Nietzsche, a medida que pode ser percebida pelo observador atento às eternas transformações que caracterizam o real. Segundo Schüler, “[e]sta lei não está escrita nos astros. Graças a impulsos situados no interior da physis, o desdobramento da vida obedece a princípios desde a origem até a extinção” (Schüler, 2000, p. 70). Nietzsche, concebendo, como veremos mais adiante, a interação entre os “elementos” que produzem o vir a ser na filosofia de Heráclito sob a forma fundamental do combate, explicita como a justiça (ou seja, a regra, a medida) não é exterior à própria interação entre os “elementos”, mas que: “Heráclito não podia considerar os pares a lutar e os juízes como separados uns dos outros; os próprios juízes pareciam estar a lutar, os próprios lutadores pareciam julgar a si mesmos” (PHG/FT, §6).

Em linha com as características do pensamento “pré-socrático” jônico, entretanto, Heráclito não se manteve na pura abstração ao entrever o Logos como conceito fundamental para se entender o devir universal, mas enxergou no fogo a imagem sensível desse mesmo princípio.

III. O Fogo como princípio cosmológico

Esse mundo, igual para todos, nenhum dos deuses e nenhum dos homens o fez; sempre foi, é e será um fogo eternamente vivo, acendendo-se e apagando-se conforme medida (Bornheim, 2000, DK 22 B 30).

A esse processo de eterno devir dos entes, no qual algo sempre é consumido para dar à luz algo novo, Heráclito chamou de Fogo. Segundo João Melo Neto, para Nietzsche, “o filósofo de Éfeso teria usado a metáfora do fogo em eterna combustão para simbolizar a unicidade do eterno vir a ser da totalidade cósmica” (Melo Neto, 2020, p. 26). De forma análoga ao que Nietzsche diz sobre Tales, no início da PHG/FT – que ele havia contemplado a unidade de todas as coisas e, na hora de dar voz exterior a esse pensamento, se viu falando de água, devido ao fato de ainda não existir um pensamento completamente abstrato e desconectado de qualquer referência a algo material e natural em seu tempo (PHG/FT, §1) – Heráclito, ao perceber que o mundo não possui estabilidade, mas é um eterno processo de transformação que, consumindo-se (ou seja, apagando conforme medida), cria a si mesmo (acendendo conforme medida), carrega consigo destruição e criação simultaneamente, viu, no fogo, a mais pura realização sensível desse mesmo processo e, portanto, concluiu que ele devia ser o princípio fundamental de toda realidade. Para Nietzsche, o fogo de Heráclito não é, portanto, uma “causa material pura”, como a tradição aristotélica o interpretou, mas é, antes, a própria encarnação do mundo enquanto um eterno processo de consumir e criar, dadas as possibilidades e peculiaridades do pensamento pré-socrático.

Em sua interpretação, Nietzsche atribui, portanto, um caráter duplo ao fogo heraclitiano, compreendendo-o tanto como elemento material quanto como a medida (Logos) para as transformações entre as coisas. Essa interpretação é corroborada por um fragmento do filósofo grego, que diz: “O fogo se transforma em todas as coisas e todas as coisas se transformam em fogo, assim como se trocam mercadorias por ouro e ouro por mercadorias” (Bornheim, 2000, DK 22 B 90). O ouro, enquanto objeto material, é o que é trocado pelas mercadorias no comércio e, ao mesmo tempo, é ele que estabelece a medida do quanto deve ser trocado. Dessa forma, o Fogo não é apenas a matéria (aquilo que é trocado), mas também a medida da troca.

O efésio julga, portanto, que a única coisa verdadeiramente sábia de que o homem é capaz é compreender o Logos comum a todos. Dessa forma, se a interpretação nietzschiana estivesse correta, deveríamos encontrar, em seus fragmentos, alguma relação entre o saber e o fogo. É justamente isso que encontramos em fragmentos nos quais Heráclito confirma a relação esperada entre o calor com o saber e a vida, e a umidade com a inconsciência e a morte: “Tornar-se úmidas, para as almas, é prazer ou morte” (Bornheim, 2000, DK 22 B 77). Em um outro, ele diz: “Para as almas, morrer é transformar-se em água” (Bornheim, 2000, DK 22 B36). A alma, faculdade que nos permite conhecer, é, portanto, relacionada ao fogo, enquanto a umidade é seu contrário.

IV. A luta entre os contrários

De onde surge, porém, o eterno vir a ser de todas as coisas pelo qual a efetividade se caracteriza? Segundo Nietzsche, em Heráclito:

Todo o devir nasce do conflito dos contrários; as qualidades definidas que nos parecem duradouras só exprimem a superioridade momentânea de um dos lutadores, mas não põem termo à guerra: a luta persiste pela eternidade afora. Tudo acontece de acordo com esta luta, e é esta luta que manifesta a justiça eterna (PHG/FT, §5).

Heráclito, de fato, afirmou em seus fragmentos, por exemplo, que “tudo se faz por contraste; da luta dos contrários nasce a mais bela harmonia” (Bornheim, 2000, DK 22 B 8) e que “a guerra é o pai de todas as coisas e de todas o rei; de uns fez deuses, de outros, homens; de uns escravos, de outros, homens livres” (Bornheim, 2000, DK 22 B 53). Conforme Nietzsche o compreende, Heráclito tomou o combate entre os contrários como o processo primordial através do qual se dá todo vir a ser do cosmo. Para ele, que já havia escrito outros trabalhos dedicados ao papel dado à noção de disputa entre os gregos, essa era a ideia que fazia de Heráclito o mais grego dentre todos os gregos. Em uma importante passagem, ele relaciona a disputa entre os contrários em Heráclito com a boa Éris de Hesíodo:

É uma ideia admirável, oriunda da mais pura fonte do gênio helênico, que considera a luta como a ação contínua de uma justiça homogênea, severa, vinculada a leis eternas. Só um Grego era capaz de fazer desta representação o fundamento de uma cosmodiceia; é a boa Éris de Hesíodo, transfigurada em princípio cósmico. (PHG/FT, §5)

Se as partes constituintes de todas as coisas são os “contrários” que se encontram em eterno combate, é a “supremacia momentânea” de um contrário sobre outro durante a luta aquilo que percebemos como sendo o “objeto” na natureza. Conforme Nietzsche entende o seu pensamento, o que existe na realidade não são “coisas”, mas sim: “um [processo de] vir a ser e um declínio desprovido de qualquer justificação moral. [...] [O]nde reina a inocência, mas também a criação e a destruição” (PPP, §10). A realidade de Heráclito é, para o filósofo alemão, pura efetividade, ou seja, o eterno exercer-se de um contrário sobre outro.

Essa ideia de que a realidade se caracteriza, acima de tudo, como pura efetividade e de que ela carrega consigo a ideia de conflito por supremacia é algo que, segundo o próprio Nietzsche, ele aprendeu com a filosofia de Schopenhauer. Ao tratar desse tema na PHG/FT, ele inclusive reproduz algumas citações de O Mundo como Vontade e Representação, das quais citamos a que consideramos mais significativa:

É necessário que a matéria persistente mude incessantemente de forma, porque fenômenos mecânicos, físicos, químicos, orgânicos, guiados pela causalidade, lutam com avidez pelo primeiro plano e dilaceram mutuamente a matéria, já que cada um quer manifestar a sua ideia. Este conflito pode observar-se em toda a natureza, porque também ela só existe mediante este conflito. (PHG/FT, §5)

Embora o processo descrito na passagem acima por Schopenhauer seja extremamente semelhante à descrição do conflito entre os contrários como essência da realidade que Nietzsche atribui a Heráclito, ele ressalta as diferenças que percebe entre essa concepção conforme elaborada pelo filósofo de Éfeso e pelo de Frankfurt. Nesse sentido, ele afirma: “a tônica fundamental dessa descrição já não é a de Heráclito porque a luta, para Schopenhauer, não passa de uma prova da autocisão do querer-viver, uma autocorrosão deste instinto sombrio e confuso; é um fenômeno absolutamente horroroso, nada beatificante” (PHG/FT, §5). Assim sendo, Nietzsche considera que Schopenhauer estava certo em sua consideração a respeito da natureza da realidade material: toda realidade é constituída pela tentativa de um ente exercer a sua “ideia” (o que ele é) em detrimento dos outros, que também tentam a mesma coisa, mostrando que a realidade é caracterizada em sua essência pela disputa entre as coisas que existem. Entretanto, ele considera que, enquanto em Schopenhauer esse processo de disputa é causado pela cisão da vontade (da coisa em si) ao objetivar-se na esfera da representação e é, portanto, um processo “horrível”, em Heráclito, que entende essa disputa em termos da boa Éris de Hesíodo e dos combates homéricos, esse horror é transfigurado em beleza, em algo digno e que até mesmo se deseja contemplar. Em outras palavras, embora Nietzsche ainda entenda em termos schopenhauerianos como se daria “fisicamente” o vir a ser de Heráclito, ele defende que o filósofo grego adota uma valoração contrária para essa realidade: o que é horror em Schopenhauer é a suprema beleza e justiça em Heráclito. Para Nietzsche, é justamente a concepção grega da luta que permite a Heráclito transformar o horror do combate inerente à realidade em algo sublime.

Se a totalidade, porém, caracteriza-se por ser um devir incessante, de onde vem a aparência de estabilidade que o homem costuma perceber nas coisas? Por que nós não experimentamos tudo mudando o tempo todo? O jovem Nietzsche fornece pelo menos três respostas diferentes para essa questão: por um lado, o homem utiliza-se da igualação do semelhante para, assim, tornar igual o que é sempre diferente e poder agir no mundo de forma mais hábil e eficiente (WL/VM, p. 35).4 Isso não vale apenas para quando se compara um objeto com outro, mas também quando se compara um objeto a si mesmo em momentos diferentes. O segundo motivo é que, devido à necessidade que a linguagem possui de subsunção da multiplicidade a conceitos para que seja possível a comunicação, nós pensamos a partir de conceitos e estes são, necessariamente, fixos (WL/VM, p. 37). Ao transpormos nossas categorias mentais às coisas, atribuímos a elas, portanto, fixidez, um caráter de “essência” que não existe na realidade, mas apenas na forma do entendimento humano.

Nietzsche nos oferece, entretanto, uma terceira explicação para a aparente sensação de estabilidade no mundo em suas aulas sobre os Filósofos Pré-Platônicos que não é de caráter lógico-filosófico, como as anteriores, mas de natureza científica, seguindo o perfil desse escrito. Esse exemplo vale ser reproduzido aqui tanto pela força de sua argumentação, quanto pelo fato de ser uma das mais interessantes instâncias na qual as ciências naturais de sua época influenciam sua interpretação dos “pré-platônicos”.

Ele nos conta que, em 1860, Karl Ernest von Bär5 deu uma aula denominada “Que concepção da natureza é a correta?”, na qual ele oferece um memorável exercício de pensamento. Ele relata que, nessa palestra, von Bär propõe que o ritmo das sensações e dos movimentos voluntários dos animais seja aproximadamente proporcional ao seu ritmo cardíaco. Dada essa premissa, se o ritmo cardíaco de um coelho é quatro vezes mais rápido que o de um boi, os coelhos irão “experimentar” quatro vezes mais e serão capazes de realizar quatro vezes mais atos da vontade em um mesmo período de tempo que o boi. Dessa forma, a vida interna das espécies animais (incluindo o ser humano) avança através de um mesmo tempo-espaço astronômico em ritmos internos diferentes, e é de acordo com esses ritmos internos que eles julgam subjetivamente o padrão do tempo.

O exercício de pensamento de von Bär pede, então, que imaginemos que o curso da vida humana seja reduzido para sua milésima parte, ou seja, que o nascer, crescer, envelhecer e morrer do homem ocorra em apenas um mês e que, por sua vez, a sua frequência cardíaca seja mil vezes mais rápida. Nessas condições nós conseguiríamos acompanhar sem dificuldades o trajeto de uma bala em pleno ar com a nossa visão. Se dividíssemos esse período novamente por mil, ou seja, uma inteira vida humana passaria em apenas quarenta minutos, e nós consideraríamos a grama e as flores como coisas tão absolutamente persistentes como pensamos hoje das montanhas; nós pensaríamos do crescimento de uma semente o mesmo que pensamos hoje dos períodos geológicos da terra. Nós não conseguiríamos perceber totalmente o movimento dos animais, pois eles seriam muito lentos, e teríamos de concebê-los como algo tão fixo como hoje percebemos os movimentos dos corpos celestes.

Se, por outro lado, nós expandíssemos enormemente o tempo de vida humano e diminuíssemos sua frequência cardíaca, teríamos uma visão de mundo totalmente diferente. Imaginemos que o façamos por mil vezes, como no exemplo anterior. Nossa vida duraria oitenta mil anos, e nós teríamos, em um ano, a mesma quantidade de experiências que atualmente temos em oito ou nove horas; dessa forma, a cada quatro horas veríamos a passagem do inverno, o gelo derreter, as flores nascerem, árvores crescerem e darem frutos e então toda vegetação secar novamente. Muitas coisas que hoje percebemos como “desenvolvimentos” não seriam mais percebidas assim, e veríamos plantas brotarem de repente, como uma fonte. Dia e noite se alternariam como luz e sombra em apenas alguns momentos, e o sol correria pelo arco do céu muito velozmente. Se nós fizéssemos mais uma multiplicação por mil dessa vida já expandida, um ser humano seria capaz de realizar apenas 189 percepções em um ano solar, o que destruiria a diferença entre dia e noite e toda vegetação iria simplesmente surgir e desaparecer como se viesse “do nada”. Nesse estado de percepção, toda aparência de persistência desapareceria e todos os eventos seriam devorados na selvagem tempestade do vir a ser.

Em resumo, se pudéssemos pensar em uma percepção humana infinitamente multiplicada (e seu tempo de vida infinitamente reduzido), nós teríamos a aparência de eterna estabilidade de todas as coisas durante nossa vida; se, por sua vez, fizéssemos o processo contrário, teríamos a percepção de um mundo em eterno movimento, sem qualquer aparência de estabilidade (PPP, §10).

Nietzsche nos diz, logo após esse exemplo, que foi a esse conhecimento adquirido recentemente pela ciência moderna que Heráclito chegou de forma natural: “essa é a percepção intuitiva de Heráclito; não existe nenhuma coisa da qual podemos dizer ‘ela é’. Ele rejeita o Ser. Ele conhece apenas o vir a ser, o fluir. Ele considera a crença em algo persistente como erro e tolice” (PPP, §10).

Essas considerações nos levam, entretanto, ao seguinte questionamento, ao qual já aludimos acima, mas que ainda não investigamos: se o que existe é apenas esse conflito, eternamente renovado, e o que chamamos de “ente” não é nada mais que o estado temporário de uma certa hegemonia de alguns contrários sobre outros, conforme percebida pelo homem, o que Nietzsche pode nos dizer a respeito da natureza dos próprios contrários para Heráclito? Seriam eles substâncias eternas, e o devir a simples recombinação dessas substâncias imperecíveis?

V. A natureza dos contrários

Não devemos, segundo Nietzsche, compreender os contrários de Heráclito segundo o conceito de “substância”, pois isso seria entender o seu pensamento à luz de teorias filosóficas posteriores, que não são as suas (PPP, §10).6 Nietzsche nos diz que, segundo o filósofo grego, não existe nenhuma entidade permanente, aí incluso qualquer tipo de qualidade, elemento, forma etc.

Mas não parece agora que o devir é apenas o evidenciar de uma luta de qualidades eternas? Não se deveria voltar à fraqueza peculiar do conhecimento humano, quando falamos do devir – enquanto na essência das coisas talvez não haja devir algum, mas unicamente a coexistência de múltiplas realidades verdadeiras que se subtraem ao devir e à destruição? Eis saídas e falsos caminhos que não são dignos de Heráclito; ele grita pela segunda vez: “o uno é o múltiplo”. As inúmeras qualidades de que podemos aperceber-nos não são essências eternas, nem fantasmas dos nossos sentidos, não são um ser rígido e arbitrário, nem a aparência fugidia que atravessa os cérebros humanos. (PHG/FT, §6).

Segundo Nietzsche, para interpretarmos corretamente os contrários de Heráclito, não devemos entendê-los como substâncias capazes de subsistência independente, mas, sim, que os próprios contrários são uma unidade apenas enquanto são, ao mesmo tempo, uma multiplicidade (“o uno é múltiplo”). Podemos pensar nessa questão difícil de algumas maneiras diferentes: primeiramente, uma relação de oposição e contrariedade, enquanto é uma, exige uma multiplicidade de termos para que ocorra. Só pode existir oposição se existirem pelo menos dois termos, de modo que a unidade de uma oposição só vem a ser a partir de uma multiplicidade de termos. Por outro lado, uma “unidade” (ou seja, um ente determinado) só ganha o seu verdadeiro sentido e só pode ser apreendido em sua essência, quando contraposto ao que se lhe opõe. Para sabermos o que é o úmido, devemos entender o que é o seco; para entendermos o calor, precisamos contrapô-lo ao frio e assim por diante. Por fim, os contrários representam aquele ente no qual o seu oposto encontra seu fim. Ou seja, quando a luz cessa, temos a escuridão, quando o calor se esvai, temos o frio, quando termina a justiça, a injustiça surge e assim sucessivamente. Dessa forma, os opostos de Heráclito não são “entidades antagônicas”, que existem separadamente uma do outra, mas são, na realidade, os polos opostos de uma mesma unidade. Nietzsche considera que o filósofo grego toma o frio, por exemplo, como um grau do quente, e não como algo independente e oposto a ele: “se tudo deve ser fogo, então, em todas as possibilidades de sua transformação, não pode haver nada que fosse seu contrário absoluto”7 (PHG/FT, §6). Nesse sentido, um outro fragmento de Heráclito que corrobora essa interpretação nos diz: “Não houvesse isto (a injustiça), ignorariam o próprio nome da justiça” (Bornheim, 2000, DK 22 B 23). O fragmento 57, em que Heráclito diz: “ele [Hesíodo], que nem sabia distinguir o dia da noite. Pois é uma e a mesma coisa” (Bornheim, 2000, DK 22 B 57), também avança uma ideia semelhante, mostrando que o par noite e dia não são contrários independentes, mas apenas os polos mais distantes de uma mesma unidade.

Para Nietzsche, sob forte impressão causada pelas teorias científicas de seu tempo, os contrários de Heráclito são compreendidos como análogos a forças eternamente em disputa (Marton, 1993, p. 41). O filósofo alemão escreve: “Para a moderna ciência da natureza, o ‘tudo flui’ é um princípio fundamental. Em lugar algum há permanência absoluta porque, em última instância, nos encontramos sempre na presença de forças” (PPP, §10).8 A visão de mundo que Nietzsche entende como sendo a de Heráclito é a de que a realidade é composta, fundamentalmente, por forças em eterno conflito, cuja hierarquia temporária é percebida por nós como sendo um mundo. As forças, por sua vez, segundo Nietzsche as compreende, não são “substâncias” que existem em si e por si, mas são, na realidade, relações de poder, completamente fluidas e dadas no tempo (ou seja, pertencentes, elas também, ao âmbito do vir a ser). Uma força só existe na medida em que exerce sua ação sobre outrem, ou melhor dizendo, na medida em que ela é esse próprio exercer sobre outrem, não sendo, portanto, passível de ser separada de seu efeito e, consequentemente, impossível de ser compreendida como uma entidade independente (Marton, 1990, p. 52). Assim sendo, a realidade caracteriza-se por ser um mundo não de coisas ou elementos fixos, mas, sim, de processos. A efetividade é um “agir sobre”, um efetuar-se de forças, cujo conflito nunca encontra término e que ocorre sem qualquer teleologia ou propósito. Para Scarlett Marton, portanto, “o cosmos nietzschiano-heraclítico consistiria numa unidade dinâmica constituída por forças contrárias e interligadas” (Marton, 1993, p. 44).

Concluindo, podemos dizer que Nietzsche entende que o pensamento de Heráclito, ao conceber a oposição entre contrários como natureza última da realidade e, os próprios contrários, como os polos em disputa dentro de uma unidade, caracteriza a physis como uma realidade dinâmica, opondo-se à busca por princípios últimos da natureza que sejam estáveis e fixos, fato que caracteriza boa parte das investigações dos “pré-platônicos”. A arkhē heraclitiana, enquanto fogo, é justamente a imagem sensível desse processo dinâmico de criação, destruição e transformação que é o fundamento da natureza, e não uma matéria originária e estável que permanece a mesma através da mudança.

Entretanto, Nietzsche se pergunta, ainda, como Heráclito teria justificado a existência desse mundo. Em outras palavras, por que o que existe efetivamente é o movimento puro, e não a estabilidade ou até mesmo o nada?

VI. O jogo da divindade

A única explicação que Nietzsche encontra nos fragmentos do filósofo grego para essa pergunta é de que a criação é um fenômeno criativo e livre, um jogo. O cosmo é um grande jogo de criar e destruir, completamente inocente. Heráclito diz: “O tempo é uma criança que brinca, movendo as pedras de jogo para lá e para cá” (Bornheim, 2000, DK 22 B 52).9 Nietzsche interpreta esse fragmento do seguinte modo: “a tendência moral da totalidade assim como a teleologia são excluídas [do pensamento de Heráclito]: pois a criança cósmica não age segundo fins, mas apenas conforme uma diké imanente” (PPP, §10), e, ainda: “Mas, se se quisesse propor a Heráclito a questão: por que o fogo não é sempre fogo? Por que ora é água, ora é terra? A isso, ele responderia apenas: ‘É um jogo, não tomeis tão pateticamente e, antes de tudo, não o tomeis moralmente!” (PHG/FT, §7).

Heráclito justificaria, portanto, na leitura de Nietzsche, todo vir a ser (e o sofrimento dele decorrente) a partir de duas ideias fundamentais: a da criação enquanto luta e enquanto jogo. Nós já vimos de que forma Nietzsche entende que a luta, a partir de sua aproximação com o agōn homérico e a boa Éris de Hesíodo, pode transformar o horror da existência em algo sublime. Falta, no entanto, analisarmos com mais detalhes como a noção de jogo realizaria um processo análogo e se existe alguma relação que une esses dois conceitos na filosofia de Heráclito.

Ao analisar o pensamento de Heráclito e buscar uma compreensão do seu conceito de jogo, Nietzsche encontra uma confirmação e um espelho antigo de sua própria teoria estética de juventude: o vir a ser do mundo é tornado sublime e digno de ser contemplado (e, portanto, digno em si mesmo de existir) porque ele contém em si o princípio da criação artística (PHG/FT, §7). Ele, inclusive, critica abertamente as interpretações posteriores de Heráclito que deixaram de perceber o fundamento estético de seu filosofar: “De resto, Heráclito não escapou aos ‘espíritos medíocres’; já os Estoicos o interpretaram superficialmente, rebaixando a sua percepção estética fundamental do jogo do mundo para a consideração vulgar pelas conveniências do mundo, sobretudo pelas vantagens dos homens” (PHG/FT, §7).

O fogo de Heráclito, interpretado por Nietzsche como princípio criativo da natureza, não rege o mundo teleologicamente ou com quaisquer fins morais, mas:

Neste mundo, só o jogo do artista e da criança tem um vir à existência e um perecer, um construir e um destruir sem qualquer imputação moral em inocência eternamente igual. E, assim como brincam o artista e a criança, assim brinca também o fogo eternamente ativo, constrói e destrói com inocência – e esse jogo joga-o o Eon consigo mesmo. [...] Não é a perversidade, mas o impulso do jogo sempre despertando de novo que chama outros mundos à vida. Às vezes, a criança lança fora o brinquedo: mas depressa recomeça a brincar com uma disposição inocente. Mas, logo que constrói, liga e junta as formas segundo uma lei e em conformidade com uma ordem intrínseca (PHG/FT, §7).

O mundo conforme Heráclito o descreve é entendido por Nietzsche como sendo o fruto do jogo inocente de crianças, que criam e destroem sem qualquer fim, mas seguindo uma determinada “lógica interna” (essa lógica é o Logos enquanto “medida” e, portanto, o mesmo que a justiça). A compreensão heraclitiana da natureza como um “jogo da divindade” e a interpretação nietzschiana do jogo como processo análogo ao da criação artística, faz com que, para o filósofo alemão, Heráclito seja o primeiro filósofo a propor umajustificação estética do mundo.

Nietzsche, porém, em sua busca por atribuir uma interpretação estética ao pensamento de Heráclito de modo a conformá-lo a suas teorias de juventude a respeito da arte, precisa explicar por que referências à arte não aparecem em nenhum dos fragmentos do filósofo. Segundo ele, Heráclito não teria usado diretamente a comparação entre vir a ser cósmico e a criação da obra de arte, preferindo a comparação com o jogo de crianças “porque ele (Heráclito) ignora a arte, ele recorre à imagem do jogo da criança. Aqui reina a inocência, mas também a criação e a destruição” (PPP, §10).10 Apenas o símile entre o processo de criação da natureza e o do jogo da criança e, após a intervenção de Nietzsche, entre este e o da criação artística, permite que o mundo seja compreendido em sua essência mais profunda. O filósofo alemão afirma: “Podemos tornar clara para nós essa intuição apenas na atividade do artista, a imanente diké [justiça] e gnómē [conhecimento], o pólemos [combate] como o âmbito dessas últimas e novamente a totalidade como brincadeira; o artista criador que contempla e domina o todo e, por sua vez, é idêntico com a sua obra” (PPP, §10). Para Nietzsche, “Heráclito descreve apenas o mundo que está aí e encontra nisso o bem-estar contemplativo com que o artista olha para sua obra vindo a ser” (PHG/FT, §7). Possuidor de uma visão estética do mundo, Heráclito não tentava demonstrar que este mundo fosse o melhor de todos: “bastava-lhe que ele fosse belo, o inocente jogo do Eon” (PHG/FT, §7). O jogo, portanto, realiza a transformação do horrível em sublime. Em NT, Nietzsche escreve de forma a evidenciar a conexão que existe entre a transfiguração sublime da realidade pela arte trágica e o caráter lúdico, presente na filosofia de Heráclito:

Esse aspirar ao infinito, o bater de asas do anelo, no máximo prazer ante a realidade claramente percebida, lembram que em ambos os estados nos cumpre reconhecer um fenômeno dionisíaco que torna a nos revelar sempre de novo o lúdico construir e destruir do mundo individual como eflúvio de um arquiprazer, de maneira parecida à comparação que é efetuada por Heráclito, o Obscuro, entre a força plasmadora do universo e uma criança que, brincando, assenta pedras aqui e ali e constrói montes de areias e volta a derrubá-los (GT/NT, §24).11

Heráclito, transposto pela percepção atordoadora do eterno fluir de todas as coisas, justificou o real transformando o assombroso em sublime. Guervós comenta, no mesmo sentido:

É na Filosofia na época trágica dos gregos que a dimensão do jogo adquire uma definição mais precisa, pois o que em O Nascimento da Tragédia marcava a dicotomia entre Dioniso-Apolo, ser-aparência, é reconduzido ao jogo inocente da grande criança do mundo, Zeus. Esta criança-Zeus tem os traços da criança-Dioniso (Guervós, 2011, p. 59).

Heráclito surge, portanto, como o primeiro proponente de uma filosofia dionisíaca para Nietzsche em sua juventude. No mesmo sentido da tragédia (que é a forma de arte sublime por excelência, pois, ao sujeitar o êxtase e a embriaguez dionisíaca à forma apolínea da bela aparência, permite que a essência terrível da realidade seja contemplada em segurança) se move o pensamento de Heráclito, ao permitir que a realidade terrível do devir de todas as coisas seja redimida.

As concepções heraclitianas de “jogo” e “luta” também estão, para Nietzsche, intimamente conectadas. A luta em Heráclito, conforme Nietzsche a entende, não é a busca pela destruição absoluta do adversário (o que, cosmologicamente falando, levaria à destruição completa de um oposto, fato que não é possível sem a destruição simultânea também do outro oposto), mas é a luta entendida enquanto disputa por uma hegemonia necessariamente momentânea sobre o oponente. O jogo para os gregos, é, por sua vez, antes de mais nada “disputa”, o que pode ser visto nas competições atléticas e também nas artísticas, nas quais mesmo a tragédia, a mais profunda das obras de arte, era apresentada em um concurso onde se elegia um vencedor. Dessa forma, Heráclito teria afirmado a realidade como um jogo da divindade consigo mesma, sob a forma essencial do combate. Conectando todos esses pontos, Nietzsche afirma sobre o pensamento de Heráclito:

Nem mesmo uma gota de ἀδικία [injustiça] deve permanecer no mundo. O fogo sempiterno, o αἰὼν [tempo eterno], brinca, constrói e destrói. O Πόλεµος [combate] daquele afrontamento das diferentes qualidades, conduzido pela ∆ίκη [justiça], deve ser compreendido apenas como fenômeno artístico. Isso é uma contemplação puramente estética do mundo. Tanto a tendência moral do todo como a teleologia estão excluídas: pois a criança cósmica não age segundo finalidades, mas sim segundo uma δίκη [justiça] imanente (PPP, §10).

Dessa forma, o jogo da divindade, que é responsável pelo vir a ser, é um jogo que se dá através da disputa dos contrários, sob a observância de uma determinada lógica interna, cuja única justificativa é de natureza estética e não moral. Todo criar e destruir (fruto do combate), quando entendido sob a ótica de um jogo que o “eon joga consigo mesmo”, é, para Nietzsche, a forma através da qual Heráclito interpreta o devir natural à luz da livre criação, que o filósofo alemão considera como típica da criação artística. Consequentemente, o pensamento de Heráclito forneceria uma justificação estética do mundo, análoga à realizada pela grande tragédia ática. Nesse duplo movimento, Nietzsche entende que o pensamento de Heráclito completa a transfiguração de uma “physis abissal” em “physis sublime”, eternamente justificada por si mesma, sendo, portanto, de importância capital para seu projeto de juventude: o renascimento de uma filosofia trágica na modernidade.

Referencias

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GUERVÓS, Luis Enrique de S. A dimensão estética do jogo na filosofia de Nietzsche. Cadernos Nietzsche, n. 28, 2011.

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KAHN, Charles. The Art and Thought of Heraclitus. Cambridge: Cambridge University Press, 1981.

KIRK, Geoffrey S.; RAVEN, John E.; SCHOFIELD, Malcom. Os Filósofos Pré-Socráticos. Trad. Carlos Alberto Louro Fonseca. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.

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NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

NIETZSCHE, Friedrich. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. Trad. Fernando R. de Moraes Barros. São Paulo: Editora Hedra, 2012.

NIETZSCHE, Friedrich. The Pre-platonic Philosophers. Trad. Greg Whitlock. Chicago: University of Illinois Press, 2006.

SCHÜLER, Donaldo. Heráclito e seu (dis)curso. Porto Alegre: L&PM, 2000.

SOUZA, José Cavalcante de (org.). Os Pensadores: Os Pré-socráticos. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

Notas

1 Esse artigo adota a convenção de citação proposta pela edição Colli/Montinari das Obras Completas de Nietzsche, na qual cada texto de autoria de Nietzsche é citado por meio de uma sigla, seguida do número da seção/aforismo correspondente. Siglas em português acompanham, porém, as siglas em alemão, no intuito de facilitar o trabalho de leitores pouco familiarizados com os textos originais, obedecendo à seguinte correspondência:

PHG/FT: Filosofia na Era Trágica dos Gregos

PPP: Lições sobre os filósofos pré-platônicos

EH/EH: Ecce Homo

GT/NT: O Nascimento da Tragédia

WL/VM: Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-moral

O tradutor dos textos de Nietzsche aparecerá em nota na primeira ocorrência, e não será mais citado posteriormente.

2 Tradução: Maria Inês Vieira de Andrade (2008).
3 É interessante notarmos o recurso do qual Nietzsche se utiliza nesse momento, pois ele aparece outras vezes em suas considerações sobre os “pré-platônicos”. Ele utiliza a imagem criada pelo fragmento 64, que, ao que tudo indica, se refere ao fogo (“raio fulgurante”) como princípio dirigente de todo devir cósmico, e se apropria dela em outro contexto para pintar um retrato da sabedoria de tipo oracular do filósofo. Essa apropriação livre de certas sentenças dos “pré-platônicos” como elementos reveladores de suas personalidades é um dispositivo muito utilizado por ele na PHG/FT.
4 Tradução em português: Fernando R. de Moraes Barros (2012)
5 Von Bär (1792-1876) foi um importante médico e biólogo russo, crítico de Darwin e precursor da embriologia comparativa.
6 PPP, §10. Nietzsche explica que o conceito de “elementos” aparece pela primeira vez na filosofia de Empédocles, com a denominação de “raízes”, e, mais tarde, se consolida no pensamento de Aristóteles, não estando presente ainda em Heráclito.
7 Absoluto, nesse contexto, significa: que exista de forma completamente independente.
8 João Melo Neto afirma que “a noção de ‘contrário’ pode ser aproximada ao que o filósofo virá a entender como ‘força’ e, posteriormente em sua obra, como vontade de potência, isso é, um impulso belicoso de domínio e expansão. (Melo Neto, 2020, p. 39).
9 É importante termos em mente, entretanto, que não existe consenso entre os especialistas de que o jogo ao qual Heráclito se refere nesse fragmento seja um jogo de “criar” e “destruir”, conforme Nietzsche o compreende.
10 A própria tragédia, forma suprema da arte para o jovem Nietzsche, relaciona-se ao jogo, como ele escreve no Fragmento Póstumo KSA 1870 7 [29]: “A tragédia é bela na medida em que o impulso, o qual produz o assombroso da vida, aparece aqui como impulso artístico, com seu sorriso, como uma criança que brinca. Nisso consiste o comovente e emocionante da tragédia em si, de que vemos diante de nós o impulso horrível convertido em arte e impulso de brincar”. Nietzsche não explica, entretanto, em que sentido e por qual razão “Heráclito ignoraria a arte” Tradução em português: Roberto Machado (2005).
11 Tradução em português: J. Guinsburg (2005).
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