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O som ao redor: Apolo e Aquiles em Ilíada 1.1-42

The sound around: Apollo and Achilles in Iliad 1.1-42

Christian Werner
Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil, Brasil

O som ao redor: Apolo e Aquiles em Ilíada 1.1-42

Classica - Revista Brasileira de Estudos Clássicos, vol. 37, pp. 1-22, 2024

Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos

Recepción: 03 Marzo 2024

Aprobación: 08 Mayo 2024

Resumo: Neste artigo, demonstra-se (1) a densidade textual e coesão da abertura da Ilíada (Il. 1.1-42); (2) a enfática, ainda que implícita, comparação da cólera de Aquiles à de Apolo nessa passagem; e (3) as formas subliminares de se comunicar o poder de Apolo nos versos 8 a 42, ou seja, antes de sua epifania propriamente dita por meio da peste que atinge os aqueus. Para isso, procede-se sobretudo a um rastreamento das repetições sonoras e ao exame da arquitetura métrica para verificar como esses fenômenos poéticos reiteram ou suplementam o sentido superficial do texto poético.

Palavras-chave: Ilíada, repetições fônicas, Apolo, Aquiles, proêmio.

Abstract: In this article, we demonstrate (1) the textual density and cohesion of the opening of the Iliad (Il. 1.1-42); (2) the emphatic, albeit implicit, comparison of Achilles’ anger to Apollo’s in this passage; and (3) the subliminal ways of communicating Apollo’s power in verses 8 to 42, that is, before his epiphany itself through the plague that strikes the Achaeans. In order to do this, we will focus on sound repetitions and examine the metrical architecture to see how these poetic phenomena reiterate or supplement the surface meaning of the poetic text.

Keywords: Iliad, phonic repetitions, Apollo, Achilles, proem.



Above all, like air, the verbal fabric of poetry may at times be sensed
like a diaphanous layer surrounding, indeed enfolding, the listener.

Fuente: (Anastasia Erasmia-Peponi. Lyric atmospheres, p. 167)

Introdução1

Talvez o leitor deste artigo já tenha lido o início do primeiro canto da Ilíada um sem número de vezes e tenha uma ideia clara da sequência de eventos que redundam na “cólera de Aquiles”, o núcleo propulsor da narrativa do poema. Talvez ele também já tenha se detido no que há de estranho nesse início, que exemplifica a lição horaciana de se começar in medias res (Il. 1.1-16):2



Μῆνιν ἄειδε θεὰ Πηληϊάδεω Ἀχιλῆος
οὐλομένην, ἣ μυρί’ Ἀχαιοῖς ἄλγε’ ἔθηκε,
πολλὰς δ’ ἰφθίμους ψυχὰς Ἄϊδι προΐαψεν
ἡρώων, αὐτοὺς δὲ ἑλώρια τεῦχε κύνεσσιν
οἰωνοῖσί τε πᾶσι, Διὸς δ’ ἐτελείετο βουλή, 5
ἐξ οὗ δὴ τὰ πρῶτα διαστήτην ἐρίσαντε
Ἀτρεΐδης τε ἄναξ ἀνδρῶν καὶ δῖος Ἀχιλλεύς.
- Τίς τάρ σφωε θεῶν ἔριδι ξυνέηκε μάχεσθαι;
Λητοῦς καὶ Διὸς υἱός· ὃ γὰρ βασιλῆϊ χολωθεὶς
νοῦσον ἀνὰ στρατὸν ὄρσε κακήν, ὀλέκοντο δὲ λαοί, 10
οὕνεκα τὸν Χρύσην ἠτίμασεν ἀρητῆρα
Ἀτρεΐδης· ὃ γὰρ ἦλθε θοὰς ἐπὶ νῆας Ἀχαιῶν
λυσόμενός τε θύγατρα φέρων τ’ ἀπερείσι’ ἄποινα,
στέμματ’ ἔχων ἐν χερσὶν ἑκηβόλου Ἀπόλλωνος
χρυσέῳ ἀνὰ σκήπτρῳ, καὶ λίσσετο πάντας Ἀχαιούς, 15
Ἀτρεΐδα δὲ μάλιστα δύω, κοσμήτορε λαῶν·



A cólera canta, deusa, a do Pelida Aquiles,
nefasta, que aos aqueus impôs milhares de aflições,
remessou ao Hades muitas almas vigorosas
de heróis e fez deles mesmos presas de cães
e banquete de aves – completava-se o desígnio de Zeus –, 5
sim, desde que, primeiro, brigaram e romperam
o Atrida, senhor de varões, e o divino Aquiles.
Qual deus lançou-os na briga e os fez pelejar?
O filho de Leto e de Zeus: com raiva do rei,
atiçou danosa peste no exército, e a tropa perecia 10
porque a Crises, o sacerdote, desonrou
o Atrida. Veio às naus velozes dos aqueus
recuperar a filha trazendo resgate sem-fim,
com a grinalda de Apolo lança-de-longe nas mãos,
no alto do cetro dourado, e suplicou a todos os aqueus 15
sobretudo aos dois Atridas, ordenadores de tropas3

Estruturalmente, Ilíada e Odisseia iniciam grosso modo da mesma forma, um proêmio seguido de um curto trecho que antecede a cena de abertura propriamente dita.4 Contudo, não só há divergências entre os filólogos acerca da extensão desse trecho intermediário na Ilíada, mas é curioso que os versos 8-12a, que para muitos compõem esse trecho, até certo ponto resumem o primeiro episódio da história, “a cólera de Apolo”. Quanto a esse episódio, seu ritmo não parece ser equivalente ao de nenhum outro evento no poema com consequências e dramaticidade equivalentes.5

Considerar-se que os versos 8-12 compõem uma transição é uma forma elegante mas insuficiente de determinar o que eles efetuam. Como os versos 1-76 formam uma unidade altamente poética,7 concentrada e bem-demarcada pela sua sintaxe e pelo significante “Aquiles” no final dos versos 1 e 7, não é pequeno o destaque que a interrogação expressa no verso 8 confere a Apolo, divindade não mencionada antes. Ademais os versos 1-9 já sugerem paralelismos entre a mênis de Aquiles e a de Apolo que a narrativa irá desenvolver.8

Há um problema, porém. Uma interpretação literal dos versos 8-9 não parece refletir os eventos narrados posteriormente. Pode-se, claro, propor que a ação de Apolo contra o exército aqueu – a peste – é uma causa mais próxima temporalmente da eris entre Agamêmnon e Aquiles que a boulê de Zeus em relação aos eventos tal como sintetizados de 1 a 79 ou até mesmo mais direta que a intervenção de Hera ao fazer Aquiles convocar a assembleia (53-8), afinal de contas ela quer ajudar os dânaos (56), e Apolo, em virtude da intervenção de Crises, prejudicá-los (42).10 Mas Christopher Faraone, por certo, não está a priori equivocado ao defender que os versos 8-9 deixam o receptor “perplexo, porque na narrativa subsequente não há evidência de que Apolo alguma vez tenha pretendido criar conflito dentro do campo grego, ainda que não seria inesperado uma tal ação originar-se de um partidário divino dos troianos” (Faraone, 2021, p. 61). Assim não seria forçado, na esteira de Faraone, ler-se o episódio de Crises como oriundo de um hino a Apolo num contexto ritual, entre outros motivos, porque, em Il. 1, Apolo não é explicitamente caracterizado como partidário dos troianos.11 Como se defenderá abaixo, contudo, está em curso uma aproximação imagética entre Apolo e Aquiles já a partir do verso 8. Se na superfície do texto Agamêmnon é apresentado como vítima de Apolo, repetições fônicas e semânticas lembram o receptor de que Aquiles também o foi na tradição mítica.

Ao passo que Aquiles é o herói mais destacado nos versos 1-7, Agamêmnon o é em 9-12. Atreidês encontra-se na mesma posição métrica em 7 e 12, o que aumenta a coesão de 1-12. Os paralelos entre 1-7 e 8-12 também sugerem uma primeira comparação entre as ações de Agamêmnon e Aquiles, ambas responsáveis pela morte de aqueus (2, 10) a serem desenvolvidas no poema, mas ao passo que a mênis de Aquiles é personificada (Redfield, 1979, p. 101-2) e, sintática e logicamente, colocada numa relação indeterminada com o desígnio de Zeus,12 a raiva é de Apolo (9), se deve a uma ação de Agamêmnon contra seu sacerdote. Portanto, 8-12 condenam Agamêmnon de uma forma simples e direta, o que 1-7 não fazem em relação a Aquiles.13 As componentes cósmicas e divinas dos eventos ligados a Aquiles e sua cólera são acentuadas,14 ao passo que o segundo trecho coloca a ação de Agamêmnon num plano mais marcadamente humano.15

Essa seleção de observações preliminares não almeja sintetizar a interpretação dos primeiros versos do poema mas tão somente indicar não ser necessário supor que o verso 12 comunique ao receptor que aí se inicia propriamente a narrativa e muito menos que o vetor narrativo equacionado no proêmio – a relação entre a mênis nefasta e o desígnio de Zeus – não tem nenhuma relação com as primeiras cenas da narrativa. O objetivo principal deste artigo é trazer à luz alguns aspectos das primeiras duas cenas do episódio da “cólera de Apolo” (8-42) que, embora não incompatíveis com sua unidade narrativa destacada na crítica, acentuam a ligação do trecho com o que vem antes e depois, a síntese da “cólera de Aquiles” e a epifania de Apolo posterior à prece de Crises (43-52).

Defenderei que o poder de Apolo é contínua e intensamente evocado desde o verso 8 e que sua manifestação é, desde cedo, colocada em paralelo com a mênis de Aquiles. Para isso, vou me deter sobretudo na arquitetura sonora dos versos 8-42, focando repetições fônicas e semânticas, muitas vezes de elementos que ocupam a mesma posição métrica. Tendo em vista serem as repetições per se o que me interessa em primeiro lugar, não me preocuparei em definir os fenômenos, poéticos ou linguísticos, em questão:

Afinal de contas, quando estudamos as histórias das palavras, as etimologias “verdadeiras” e também as etimologias populares, o que fazemos é tentar dar sentido científico e, até certo ponto, social às reviravoltas muitas vezes semanticamente excitantes dos sons e das palavras ao longo de séculos e milênios, reviravoltas que, da perspectiva humanista mais ampla, desde o início da história registrada, envolveram regularmente pessoas comuns, cuja capacidade para trocadilhos, “spoonerismo”, “rébus” e a alegorização da linguagem parece deliciosamente ilimitada. (Katz, 2009, p. 86-7)

Também não defenderei, para todos os fenômenos citados, que se trata de um controle consciente por parte do poeta ou poetas responsáveis pela forma como o trecho em questão chegou até nós. Usarei o termo defendido por Roman Jakobson nesse tipo de discussão, “subliminar”:

A fonologia e a gramática da poesia oral oferecem um sistema de correspondências complexas e elaboradas que surgem, entram em vigor e são transmitidas por gerações sem que ninguém tenha conhecimento das regras que regem essa intrincada rede. A compreensão imediata e espontânea dos efeitos sem a obtenção racional dos processos pelos quais eles são produzidos não se limita à tradição oral e a seus transmissores. A intuição pode atuar como a principal ou, não raramente, até mesmo a única criadora das complicadas estruturas fonológicas e gramaticais nos escritos de poetas individuais. Tais estruturas, particularmente poderosas no nível subliminar, podem funcionar sem qualquer ajuda de julgamento lógico e conhecimento patente, tanto no trabalho criativo do poeta quanto em sua percepção pelo leitor sensível ou Autorenleser, de acordo com uma cunhagem apropriada daquele corajoso pesquisador da forma sonora da poesia, Eduard Sievers. (Jakobson, 1981, p. 147)16

Aquiles e Apolo

O proêmio culmina no gesto (diastêtên, 6) que aproxima e separa os dois protagonistas humanos do poema, Aquiles e Agamêmnon (7),17 e então o verso 8 retoma alguns dos elementos fônicos e semânticos dos versos 1-718 na introdução de um novo protagonista, desta feita divino: Apolo. O poeta, porém, não o nomeia, mas propõe uma questão ao receptor. Uma consequência disso é reforçar que “a narrativa ocorrerá em dois planos mutuamente implicados, o divino e o humano” (Schein, 2022, p. 87); não parece ser por acaso que as cesuras principais nos versos 7 e 8 destacam e colocam em paralelo os genitivos andrôn e theôn. “Aquiles”, viu-se acima, como que emoldura o proêmio, mas, ao passo que, no primeiro verso, é explicitada sua essência mortal via a referência ao pai, no verso 7, seu elemento imortal é recordado via dios.19 Entretanto, a significação cósmica da mênis aponta para o caráter divino de Aquiles já no verso 1, e o epíteto dios não é, pelo menos sincronicamente, um forte indicador de algo não-humano, pois não é distintivo no poema.20

Proponho que a interrogação expressa no verso 7 evoca algo da dinâmica do enigma, a qual não é estranha num proêmio hexamétrico.21 Essa interpretação pode parecer forçada já que a resposta não apenas é simples, mas é dada logo em seguida; entretanto, nomear Apolo não é o único elemento do enigma. A Odisseia, por exemplo, inicia sem nomear seu herói principal, mas utiliza o termo vago andra (“homem”) seguido, ainda no primeiro verso, do epíteto polutropon, não só bastante raro nos textos supérstites, mas polissêmico. Além disso, trata-se de uma qualificação que Odisseu somente compartilha com Hermes, ou seja, se se quiser levar em conta a tradição do enigma, pode-se propor que andra polutropon se constitui, se não num paradoxo, pelo menos numa interrogação para o receptor, à medida que se define um humano por meio de uma qualidade eminentemente divina.22

Antes de examinar a própria construção do verso 8, concentremo-nos na resposta à questão dada no verso seguinte, “o filho de Leto e Zeus”. Leto é a única personagem feminina citada no proêmio expandido (1-12a), e, tendo em vista que é uma deusa, isso talvez sugira para o receptor o silêncio acerca de outra divindade feminina, Tétis, a qual justamente não é uma das deusas que copularam com Zeus: Apolo é filho de Zeus, Aquiles, não.23 Contudo, -, a sílaba inicial de Leto, em posição inicial no verso 9, apareceu duas vezes no primeiro verso, em Pê-lê-iadeô e Akhi-lê-os, sempre no início de um pé, respectivamente, o 4º e o 6º. Isso contribui para trazer à lembrança do receptor versado na tradição as semelhanças e diferenças entre Apolo e Aquiles, as quais serão exploradas no poema. Além disso, é mais um elemento que mitiga o corte entre os versos 7 e 8.

Se a primeira parte do verso 9 responde à questão mas ao mesmo tempo evoca algo complexo, a relação entre certo mortal e certo deus, a segunda parte (ὃ γὰρ βασιλῆϊ χολωθεὶς) a reformula ou abre uma segunda dúvida: de qual basileus se está falando? Alex Purves, ao discutir o proêmio e o gesto que opõe Aquiles e Agamêmnon, afirma que “a fratura entre os dois heróis expande-se fonicamente através da abertura do poeta por meio das fragmentações dieréticas de Πηληϊάδεω, Ἄϊδι, προΐαψεν, e Ἀτρεΐδης” (Purves, 2019, p. 121), e o mesmo fenômeno se verifica em basilêi (9). De novo, mais um indício de que 8-12 podem ser sentidos menos como uma transição que uma continuação ou expansão de 1-7. Se, por um lado, retrospectivamente 9-10 parecem resumir o primeiro episódio do poema (“a cólera de Apolo”), neles não deixa também de ressoar a ira de Apolo contra outro rei, Aquiles.24 Repare-se que não apenas a mesma sílaba de Lê-tous está presente em basi-lê-i,25 mas a sequência inicial de consoantes em kho-lô-thei é aquela de A-khi-lê-os (1)/ A-khil-leus (7).26

Está se propondo, portanto, que os versos 8 e 9 convidam o receptor a buscar sentidos por baixo do sentido imediato da mensagem. Christine Luz, ao examinar um conjunto de poemas da Antologia grega, busca definir o que distingue uma questão normal, como parece ser aquela que o narrador dirige ao receptor ou à Musa no verso 8, de um enigma ou adivinhação (Luz, 2012). A autora defende que certa implausibilidade deve deixar o receptor estupefato e, portanto, o desafia. Além disso, “o objetivo do enigma não é fornecer uma solução tão absurda e difícil de encontrar quanto possível, mas disfarçar um objeto bem conhecido de tal maneira que sua natureza seja difícil de descobrir” (p. 93). Na minha leitura, algo semelhante ocorre nos versos em questão da Ilíada, e a interrogação é um dos meios de alertar o receptor.

Nos versos 8-10, nenhuma palavra inicia por a, a vogal inicial de Apolo e Aquiles (e Atridas e Agamêmnon), ao passo que um grande número delas é o caso em 1-7 (Purves, 2019, 122, n. 19). Tais palavras voltam nos versos 11-16, mas a sensação de dúvida é reforçada, pois agora surge outra dupla por meio do uso do dual, os (dois) Atridas (16). Nesse trecho os nomes iniciados por a são sempre a primeira e última palavra do verso,27 com uma única exceção da qual falarei abaixo. Por um lado, isso posterga a informação, embora assim a destaque, de que o alvo da ira mencionada no verso 9 é o/um Atrida. Por outro, isso reforça as confluências entre Apolo e Aquiles, sobretudo se se aceitar, como se defenderá abaixo, que os últimos pés dos versos 10-16 jogam com o nome de Apolo e, indiretamente, reforçam aquele feito com “Aquiles” nos primeiros versos do poema.

Quanto a “Aquiles”, Akhaiois alge’ (2) evoca um núcleo temático ligado ao herói e condensado numa etimologia possível para seu nome em torno de akhos e laos, como defendido, na esteira de Leonard R. Palmer, por Gregory Nagy:28 não apenas akhos é um sinônimo de algos, mas Akhaiois alude fonicamente a akhos e funciona como uma particularização de laos. A própria estrutura sintática do verso 2 diminui a força da cesura entre Akhaiois e alge’ (Schein, 2022, p. 89), aproximando os dois termos. Com exceção dessa passagem e Il. 22.422 (um discurso de Aquiles), quem dá ou envia algea na poesia hexamétrica é sempre um deus ou uma maldição. Esse é mais um elemento que intensifica a aproximação estabelecida já no início do poema entre Aquiles e Apolo, ou melhor, entre a cólera ou ira de ambos.29

Se, por um lado, nenhuma forma de laos aparece em 1-7, a sequência sonora após o l em Akhi-lêos e Akhil-leus dialoga com laoi (10) e laôn (16), em três desses quatro versos, compondo o pé final do verso. Isso reforça o jogo etimológico, em particular pela repetição, na mesma posição métrica, de Akhaiôn (12) e Akhaious (15), novamente sempre na última posição do verso:30

[…]Ἀχιλῆος#1
[…]
[…]Ἀχιλλεύς.#7
[…]
[…]λαοί,#10
[…]
[…]Ἀχαιῶν#
[…]
[…]Ἀχαιούς,#15
[…]

Quanto a “Apolo”, esse parece ser alvo de um jogo etimológico no verso 10:

“O filho de Leto e Zeus” pode ser uma circunlocução adequadamente épica, mas será que também evita um nome, cujos perigos são então revelados – ou melhor, sugeridos através da etimologia – por ὀλέκοντο δὲ λαοί? Ἀπόλλων já é ὁ ἀπολλύων? Etimologizar, tal como alegorizar, pode ser algo sombrio e ameaçador, e a terrível aparição de Apolo em Ilíada 1 foi certamente muito alegorizada. Além disso, embora a medicina seja, notoriamente, uma de suas quatro artes (posteriores) que o deus bebê não reivindica em suas primeiras palavras faladas no Hino homérico a Apolo 131-132, aqui, na abertura da Ilíada, ele já é associado à doença (o deus da cura também é o portador da peste) e à destruição; de maneiras diferentes, Ilíada 1 certamente expõe as outras três artes de Apolo – tiro com arco, profecia e (no final do livro, versos 603-604) música. (Hunter; Lämmle, 2020, p. 399)

Gostaria não apenas de afirmar que o verso 10 sugere um jogo etimológico para Apolo, mas propor que esse é reforçado por meio da forma como as duas primeiras letras do nome ressoam nos últimos pés dos versos 13-15, juntas (APereisi’ APoina) ou, menos enfaticamente, separadas (Pantas Akhaious).31 Repare-se que, sob esse critério, desponta, entre os versos 10 e 16, uma estrutura em anel, criada por repetições fônicas (entre outras, pelas palavras iniciadas por a e pela presença destacada da líquida l, já destaca acima) e vocabulares (essas em itálico abaixo), no centro da qual está, justamente, a primeira menção do nome do deus:

ὀλέκοντο δὲ λαοί,#A10
ἀρητῆρα#
Ἀχαιῶν#B
ἀπερείσι’ ἄποινα,#C
Ἀπόλλωνος#C
πάντας Ἀχαιούς,#B15
λαῶν·#A

Além de enfatizar “Apolo”, essa estrutura também destaca a função de Crises (arêtêr) e sua ligação com (o poder de) Apolo, numinosamente evocado por meio da repetição das letras iniciais de seu nome.32

Voltando ao verso 8 e sua linguagem algo enigmática, outro aspecto surpreendente diz respeito ao segundo hemistíquio. Trata-se da combinação de dois elementos – eris e makhê (esse por meio do verbo cognato) – que, no mínimo, no contexto da Ilíada, se associariam antes a Ares, Atena ou mesmo a Zeus que a Apolo.33 De fato, o melhor paralelo no poema, quanto à dicção, é 7.208-10, referente a um combate motivado por Zeus e do qual participa Ares.34

O verbo makhomai em geral implica combate físico. Nas nove vezes em que isso não é o caso no poema, ele tem o sentido de “combater por meio de palavras”, e em três delas é usado para a briga entre Aquiles e Agamêmnon (Latacz et al., 2010, p. 23-4). A proximidade física mesmo para a eris parece ser tão fundamental quanto para erôs. Se Ares e Afrodite parecem formar um par complementar nesse sentido, o Apolo que contribui para a distensão no banquete dos deuses no final do canto aqui realiza o oposto. Nesse sentido, há uma tensão entre a ação do deus tal como definida no verso 8 e a resposta aparentemente clara e direta dadas no hemistíquio seguinte, tensão essa que, por um lado, é mitigada quando o receptor define que o mortal contra o qual Apolo dirige sua cólera é Agamêmnon, mas, por outro, é sempre de novo atualizada no poema por meio das formas como Apolo e Aquiles se aproximam.

Nouson Kakên

Oulo-menên é o termo qualificador mais impactante nos versos 1-7, e não somente por reverberar fonicamente o próprio nome que inicia o poema, mênin. Kakên (10), por sua vez, não é o único adjetivo (feminino como o particípio oulomenên) na sequência seguinte, mas ele se destaca, tanto pelo hipérbato com nouson quanto pelo seu valor negativo.35 Tais ecos entre esses dois sintagmas nominais em caso e gênero idênticos, portanto, compõem mais um elemento que aproxima (a ação de) Apolo (daquela) de Aquiles.36

Mais especificamente, quanto à posição do adjetivo, “o verso 10 é marcado por um ritmo inusitado que reflete e reforça o caráter inusitado da peste infligida por Apolo” (Schein, 2022, p. 94). A posição de kakên “ajuda a produzir uma estrutura retórica tripartida, νοῦσον ἀνὰ στρατὸν | ὦρσε κακήν | ὀλέκοντο δὲ λαοί, que está em tensão com a forma métrica de quatro cola do verso” (Schein, 2022, p. 94), ou, na formulação de Latacz et al. (2010, p. 25), “kakên, colocado ainda depois da cesura intermediária B 2 como um adendo quase semelhante a uma frase (‘e essa foi terrível!’) e posicionada imediatamente antes da consequência correspondente (‘eles morreram’), constitui um tipo particularmente eficaz de hipérbato; o epíteto aqui não é, portanto, ornamental” (grifo no original).

Quanto ao valor de κακήν, o adjetivo é “focalizado tanto por Apolo, sob cujo ponto de vista a peste é objetivamente ‘destrutiva’ para os gregos, como pelo exército (e talvez pelo narrador), cujo juízo subjetivo é de que a peste seja ‘maligna’, ainda que κακός em Homero raramente tenha um sentido moral” (Schein, 2022, p. 94).37 Não me parece ser mera coincidência, porém, que a forma adverbial desse mesmo adjetivo seja usada pelo narrador (25) para qualificar a reação de Agamêmnon ao discurso de Crises (17-25):



“Ἀτρεΐδαι τε καὶ ἄλλοι ἐϋκνήμιδες Ἀχαιοί,
ὑμῖν μὲν θεοὶ δοῖεν Ὀλύμπια δώματ’ ἔχοντες
ἐκπέρσαι Πριάμοιο πόλιν, εὖ δ’ οἴκαδ’ ἱκέσθαι·
παῖδα δ’ ἐμοὶ λύσαιτε φίλην, τὰ δ’ ἄποινα δέχεσθαι, 20
ἁζόμενοι Διὸς υἱὸν ἑκηβόλον Ἀπόλλωνα”.
Ἔνθ’ ἄλλοι μὲν πάντες ἐπευφήμησαν Ἀχαιοὶ
αἰδεῖσθαί θ’ ἱερῆα καὶ ἀγλαὰ δέχθαι ἄποινα·
ἀλλ’ οὐκ Ἀτρεΐδῃ Ἀγαμέμνονι ἥνδανε θυμῷ,
ἀλλὰ κακῶς ἀφίει, κρατερὸν δ’ ἐπὶ μῦθον ἔτελλε· 25



“Atridas e demais aqueus de belas grevas,
a vós concedam os deuses que têm casas olímpias
assolar a cidade de Príamo e chegar bem em casa.
Libertai minha cara menina e aceitai este resgate, 20
venerando o filho de Zeus, Apolo lança-de-longe”.
Todos os outros aqueus acharam por bem
respeitar o sacerdote e aceitar o belo resgate;
ao Atrida Agamêmnon, porém, não agradou,
e ele o dispensou rudemente, dando a dura ordem… 25

O discurso de Agamêmnon está em franco contraste não apenas com a reação dos aqueus, os quais, por sua vez, não parecem ter sido persuadidos apenas pela súplica que ouviram; também causa um efeito a própria venerabilidade da figura que o poeta apresenta ao receptor ao fazê-lo visualizar a cena. Para a enargeia, o poeta escolhe uma ação simples (êlthe, 12)38 e descreve a aparência do sacerdote utilizando como focalizador “todos os aqueus” (15): são eles que veem “a grinalda de Apolo lança-de-longe nas mãos,/ no alto do cetro dourado” (15-16), adereços que aludem à dimensão ritual da cena como um todo. Trata-se de marcas de identidade que o exército avalia corretamente (22-23), logo após seu valor ser reiterado obliquamente na última oração construída por Crises (21). Nela o sacerdote usa a mesma combinação “epíteto + nome do deus” (“Apolo lança-de-longe”) utilizado pelo narrador (14), o que prepara o receptor para a forma de atuação do deus na sequência, a peste propagada por meio de flechas (43-52).39

O verso 14 deixa clara a dimensão religiosa da troca proposta por Crises, irredutível à dimensão propriamente econômica da transação, expressa pelo sintagma apereisi’ apoina (13).40 Com efeito, os versos 13-14 repetem a mesma sequência de três elementos (filha-resgate-Apolo) usada pelo narrador em 20-21. A duplicação da sequência reforça algo que, para o receptor, talvez estivesse apenas implícito na primeira ocorrência: a conclusão de que, diante das insígnias divinas, o único comportamento seguro é o respeito por Apolo. Crises tem como objetivo uma performance da qual emane certo poder intangível, efetivo de forma apenas potencial no aqui e agora do encontro com Agamêmnon. Assim, já em sua primeira cena, desdobra-se um tema central do poema, a força e o poder como relativos e dependentes de uma performance discursiva (Stocking, 2023).

Para Khruses, idealmente a força dos aqueus depende do poder dos Atridas (Kosmêtore laôn, 16), mas, podemos inferir, esse também depende da coletividade, eüKnêmides AKhaioi (17).41 Essa força humana, porém, como a Ilíada inteira não cansa de mostrar, depende do apoio divino, dos deuses que Olumpia dõmat’ eKhontes (18).42 É da eficácia dessa combinação que dependerá o sucesso da vingança de aqueus contra troianos, sintetizado por Crises como eKpersai Priamoio polin, eu d’oiKad’ hiKesthai (19).43 É justamente a grande quantidade de fórmulas usadas nos cinco versos do discurso e Crises que tornam ainda mais notável os ecos fônicos em seus quatro primeiros versos.44 Em todos eles, a consoante da penúltima sílaba, ou seja, a primeira consoante do último pé, é k/kh. Nesse sentido, é como se Crises reforçasse subliminarmente que o retorno bem-sucedido depende de Agamêmnon aceitar o resgate dele, Khruses, ao se dar conta da ameaça representada por Apolo, cuja consoante inicial, p, ressoa com k no primeiro hemistíquio do notável verso 19.

Concentração semelhante de k verificada no verso 19, sobretudo no 2o hemistíquio, retorna no verso 25, no qual se repete a mesma palavra inicial do verso 24, a partícula adversativa al-la, uma forma discreta de evocar A-pol-lôn fonicamente.45 No verso 25, o narrador critica Agamêmnon por meio do advérbio kakôs: “Avaliações diretas do narrador como essa são raras e, portanto, têm uma influência particularmente forte sobre o público” (Latacz et al., 2010, p. 35). Plutarco (Como deve o jovem ouvir os poetas? 19b-c) utilizou esse verso para exemplificar como Homero alerta o receptor sobre o valor do que vai ser dito na sequência.46 Entretanto, ao passo que a primeira metade do verso 25 emite uma crítica do narrador, a segunda é um juízo de que, pelo menos temporariamente, Agamêmnon não teme que sua força seja questionada por nenhum aqueu, o que sinaliza o uso do adjetivo krateros.47 Todavia, não só esse termo mas sobretudo o contexto, dominado pela energia (ou dunamis), ainda que inicialmente difusa, de Apolo, sugerem que a superioridade de Agamêmon é contingente.48

Um sinal entre outros de quão equivocado está Agamêmnon acerca do próprio poder é a forma como constrói o início de sua resposta a Crises: μή σε γέρον/ κοίλῃσιν ἐγὼ/ παρὰ νηυσὶ κιχείω (26, “Ancião, que eu não tope contigo junto às cavas naus”). As cesuras assinaladas já indicam a força estilística da passagem, esmiuçada por Schein (2022, p. 99-100). Acrescento apenas que as posições do adjetivo κοίλῃσιν e do verbo κιχείω reiteram de novo o som k/kh. É como se, sobre o poder que Agamêmnon busca demonstrar, pairasse a nuvem negra de kakên/ kakôs (10, 25). Os navios em questão não são apenas aqueles que trouxeram os aqueus a Troia, mas também que, idealmente, os levarão de volta (oiKad’ hiKesthai, 19), e ambos os feitos não dependem apenas do kratos de Agamêmnon, mas também dos deuses. Ora, a menção aos barcos logo no início do discurso de Agamêmnon parece preparar, de forma (involuntariamente) irônica, a sugestão de que é ele e não Crises quem tem controle sobre o próprio retorno, já que, se quiser, muito facilmente pode impedir o de Crises (ἀλλ’ ἴθι μή μ’ ἐρέθιζε σαώτερος ὥς κε νέηαι, 32: “para a salvo voltares, não me provoques”). Isso ele afirma logo após delinear o que acredita será sua vida cheia de prazeres em Argos com a concubina Criseida (29-31).49 Ele está equivocado sobre tudo! Não é necessário seguir um viés neo-analítico stricto sensu para se defender que boa parte dos receptores do poema, já em sua recepção primeira, tenham se lembrado de quão desgraçado será o retorno de Agamêmnon.50

O narrador então conta que, por medo, o ancião obedece ao muthos de Agamêmnon (Ὣς ἔφατ’, ἔδεισεν δ’ ὃ γέρων καὶ ἐπείθετο μύθῳ, 33: “Falou, e o ancião temeu e obedeceu ao discurso”). Gerôn repete o termo utilizado por Agamêmnon ao se dirigir a Crises (26), termo por meio do qual ele parece evocar geras (“butim”)51 ao mencionar que Criseida lhe dará prazer até a velhice (gêras, 29) alcançá-la. Assim, no verso 33, é como se o narrador repetisse o status de Crises performado pelo discurso de Agamêmnon. Até esse momento da narrativa, a energia de Apolo é difusa,52 e a passividade e dor de Crises ainda são patentes quando se chega a uma primeira descrição espacial mais densa construída pelo narrador,53 βῆ δ’ ἀκέων παρὰ θῖνα πολυφλοίσβοιο θαλάσσης (34, “quieto, foi ao longo da praia do mar ressoante”).54

Para analisar a textura desse verso, concentremo-nos em seus elementos propriamente textuais, para o que nos ajudam os paralelos bastante claros entre a ação de Crises e a de Apolo. Tanto Crises (33) como Apolo (44) reagem a um discurso, põem-se em marcha (, 34 e 44) e se posicionam (35, ἀπάνευθε κιὼν, “afastou-se”; 48, ἀπάνευθε νεῶν, “longe das naus”).55 Ademais, quase no fim das duas cenas, se mencionam duas espécies de animais que são queimadas (40-41, 50-52), no primeiro caso, sacrifícios pretéritos feitos por Crises a Apolo, no segundo, vítimas da peste.56

Um outro paralelo é menos explícito e pertence à atmosfera da cena, qual seja, a evocação sonora do poder de Apolo antes que sua epifania se concretize. O silêncio do sacerdote (34)57 está em tensão com o bramido do mar (poluphloisboio thalassês)58 e desemboca na intensa prece dirigida a Apolo (πολλὰ59 δ’ ἔπειτ’ ἀπάνευθε κιὼν ἠρᾶθ’ ὃ γεραιὸς, 35, “então afastou-se e, insistente, o ancião rezou”).60 É como se esses sons – o do mar e o da prece – preparassem a epifania posterior de Apolo, que se dará, primeiramente, pelo som das flechas (44-47).61A repetição da sequência sonora pol reflete isso (34-36):



βῆ δ’ ἀκέων παρὰ θῖνα ΠΟΛυφλοίσβοιο θαλάσσης·
ΠΟΛΛὰ δ’ ἔπειτ’ ἀπάνευθε κιὼν ἠρᾶθ’ ὃ γεραιὸς
ἀΠΟΛΛωνι ἄνακτι, τὸν ἠΰκομος τέκε Λητώ·

Antes desse verso, o nome do deus fora pronunciado duas vezes, em ambas ocupando os dois últimos pés (14, 21). Desta vez, ele ocupa a primeira posição num verso solene62 e fonicamente vigoroso,63 sobretudo pela aliteração de k ligando não só os dois hemistíquios, mas mãe e filho.64

Já os efeitos sonoros das flechas de Apolo conferem textura a seu movimento do Olimpo até o acampamento grego e também aos efeitos da peste (43-52):



Ὣς ἔφατ’ εὐχόμενος, τοῦ δ’ ἔκλυε Φοῖβος Ἀπόλλων,
βῆ δὲ κατ’ Οὐλύμποιο καρήνων χωόμενος κῆρ,
τόξ’ ὤμοισιν ἔχων ἀμφηρεφέα τε φαρέτρην· 45
ἔκλαγξαν δ’ ἄρ’ ὀϊστοὶ ἐπ’ ὤμων χωομένοιο,
αὐτοῦ κινηθέντος· ὃ δ’ ἤϊε νυκτὶ ἐοικώς.
ζετ’ ἔπειτ’ ἀπάνευθε νεῶν, μετὰ δ’ ἰὸν ἕηκε·
δεινὴ δὲ κλαγγὴ γένετ’ ἀργυρέοιο βιοῖο·
οὐρῆας μὲν πρῶτον ἐπῴχετο καὶ κύνας ἀργούς, 50
αὐτὰρ ἔπειτ’ αὐτοῖσι βέλος ἐχεπευκὲς ἐφιεὶς
βάλλ’· αἰεὶ δὲ πυραὶ νεκύων καίοντο θαμειαί.



Falou, rezando, e Febo Apolo o ouviu
e partiu dos cumes do Olimpo, irado no coração,
com o arco sobre os ombros e a aljava tampada: 45
as flechas estridulavam nos ombros do irado
ao mover-se, e ele chegou semelhante à noite.
Sentou-se longe das naus e no meio flechou;
fero estrídulo subiu do arco prateado.
Primeiro foi atrás de mulas e lépidos cães, 50
e então projéteis acuminados sobre os homens
lançou; piras repletas de corpos ardiam sem cessar.

Assim, a ambientação produzida pelo mar e pela noite, respectivamente, nas cenas correlatas de Crises e Apolo, menos que participar de uma tensão entre silêncio e manifestação sonora, colabora para ampliar cosmicamente cada cena e o episódio como um todo.65 Essa expansão se contrapõe à postura de Agamêmnon, circunscrita a seu próprio interesse, concentrado em seu oikos e, de forma ainda mais restrita, em seu lekhos (“Não libertarei tua filha; a velhice a pegará antes,/ longe da pátria, em nossa propriedade [oikos] em Argos,/ ativa junto ao tear e procurando minha cama [lekhos]”, 29-31).

Bê d’akeôn (34), que ocupa menos que dois pés do verso, sinaliza metricamente a pequenez do sacerdote em relação à imensidão do mar que ocupa o restante do verso, metáfora do poder de Apolo (em relação ao poder relativo de Crises), de um lado, mas também do próprio poder da prece que o verso seguinte começa a expressar, revertendo a impressão de insignificância causada pelo sacerdote em Agamêmnon. Dois discursos, duas demonstrações de força, mas a segunda muito superior à primeira. Fonicamente, aKeôn, repetindo o som cujos efeitos enfatizei acima, já sinaliza subliminarmente ao receptor que a reação de Crises está sendo construída, e ela não se reduz ao medo (edeisen) e à obediência (epeitheto) mencionadas no verso anterior: aKeÔn responde a KakÔs (25), os sons destacados ocupando as mesmas posições métricas.66 Crises, já ao se concentrar em silêncio, começa sua resposta eficaz ao muthos de Agamêmnon. De fato, os versos 34-35 destilam o que estava no ar desde o início do episódio, a iminente presença eficaz de Apolo.

Crises chega ao último verso de sua prece sem mencionar Agamêmnon a Apolo (τίσειαν Δαναοὶ ἐμὰ δάκρυα σοῖσι βέλεσσιν, 42: “com tuas setas paguem os dânaos pelo meu choro”), mas foi aos Atridas e ao exército como um todo que ele direcionara sua súplica (17). Em parte, ele não personaliza sua vingança contra o basileus porque, como defendido acima, o conflito tornou-se cósmico a partir do momento em que o chefe supremo (78-79) desrespeitou Apolo. Em parte, porque é assim que Aquiles logo mais vai proceder:67 sua vingança contra Agamêmnon se manifesta numa ação contra o exército todo. Nos dois casos, esse exército foi passivo diante de uma medida arbitrária danosa de seu líder mais poderoso.68

É possível que a Ilíada como um todo não demonstre a densidade sonora prenhe de sentido que se verificou ser o caso nos seus primeiros 40 versos. Contudo, como outros trabalhos têm enfatizado, o rastreamento das repetições sonoras e o exame da arquitetura métrica de seus versos revelam o sentido superficial de sua mensagem sendo reiterado ou suplementado, subliminar ou propositadamente, e assim não foi por acaso que Ferdinand de Saussure dedicou uma parte significativa de sua investigação das estruturas anagramáticas a Homero (Saussure, 2013). No caso da passagem discutida neste artigo, construíram-se argumentos apoiados nesses fatores para sustentar o que, grosso modo, outros críticos ou bem relativizaram ou bem defenderam por meio de outras chaves de análise: (1) quão densa e coesa é a abertura do poema (Il. 1.1-52) e (2) quão significativa e decisiva é, nesse trecho, a aproximação e diferenciação entre a cólera de Aquiles e a de Apolo. Para isso, revelou-se as muitas formas como o poder de Apolo é comunicado nos versos 8 a 42 antes de ele se efetivar em sua epifania nos versos seguintes.

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Notas

1 Agradeço a Gabriela Canazart e Leonardo Antunes pela leitura deste artigo e seus comentários e sugestões, bem como aos atentos e generosos pareceristas da Classica. Um deles notou que o título internacional do filme de Kleber Mendonça Filho de 2012, ao qual alude o título deste artigo, é Neighboring sounds, o qual ilustra de forma até mais aguda o ponto principal deste artigo. Optei, porém, por uma tradução literal.
2 Flores (2019, p. 255) assim traduz os versos 148 a 149 da Arte poética: “(…) mas vai sempre direto ao assunto e no meio das coisas,/ como se já conhecidas, pega o ouvinte e aquilo (…)”.
3 O texto grego da Ilíada é van Thiel (2010); a tradução está em Homero (2018). A tradução de textos em língua estrangeira moderna é sempre minha.
4 Cf. v.g. de Jong (2001, p. 8), com bibliografia suplementar.
5 Schein (2022, p. 92) considera 8-12a uma “passagem de transição” entre o proêmio e os eventos de fato; Latacz et al. (2010, p. 11) também, mas como parte do proêmio. Já Kirk (1985, p. 54) considera 8-21 uma “transição à narrativa principal”. Por fim, Pulleyn (2000, p. 115-16) considera 1-52 como um proêmio em virtude de suas características poéticas narrativas distintivas, no que basicamente segue Griffin & Hammond (1982, p. 128), os quais, porém, apenas se referem a 8-52 quando afirmam que a narrativa, nesse trecho, “desenvolve-se de uma forma e sobretudo a uma velocidade que o distingue como preliminar”.
6 Abaixo posso eventualmente me referir a essa passagem como “proêmio”.
7 Algo semelhante verifica-se nos proêmios comparáveis da Odisseia e de Trabalhos e dias; cf. Werner (2016), com bibliografia suplementar.
8 Esse paralelismo é explicitado num outro proêmio da Ilíada, mais curto que o da vulgata, mencionado por Aristoxeno: ἔσπετε νῦν μοι, Μοῦσαι, Ὀλύμπια δώματ’ ἔχουσαι/ ὅππως δὴ μῆνίς τε χόλος θ’ ἕλε Πηλείωνα/ Λητούς τ’ ἀγλαὸν υἱόν· ὁ γὰρ βασιλῆι χολωθείς (West, 2003, p. 455-56). A passagem pode ser traduzida assim: “Narrai-me agora, Musas que têm morada olímpia,/ como a cólera e a raiva tomaram o Pelida/ e o radiante filho de Leto: com raiva do rei”. Acerca da relação entre esse proêmio e a vulgata da Ilíada, cf. sobretudo Nagy (2010, p. 109-20), Tomasso (2016) e Faraone (2021, p. 59-64). Uma interpretação possível – não a única – para a passagem é que a mênis acomete Apolo e o kholos, Aquiles.
9 Ao comparar os dois proêmios mais longos da Ilíada, o da vulgata (o mais novo) e aquele mencionado na nota anterior, Nagy (2010, p. 111) escreve: “A Ilíada mais recente subsume a agência divina de Apolo sob a agência divina representada pelo Plano de Zeus, enquanto a Ilíada mais antiga não o faz”. E mais adiante: “A Ilíada mais recente, tal como a conhecemos, não apenas sinaliza Zeus como o tema (subject) hínico implícito. Ela também sinaliza Apolo como um tema (subject) hínico alternativo. Embora se diga que a trama épica foi planejada por Zeus, que é assim marcado como o tema (subject) hínico supremo (ultimate), diz-se que o agente da trama épica é Apolo” (p. 114).
10 Mas cf. Tomasso (2016, p. 397), que assim sintetiza uma intepretação comum: “na Ilíada sua cólera (sc. de Aquiles) é criada por um Apolo que é um agente do plano de Zeus”.
11 “Apolo, em suma, parece alheio às tensões no campo grego e até mesmo à guerra em andamento em Troia. Ele reage puramente como uma divindade local, que rapidamente se irrita com uma ofensa, mas que depois é facilmente aplacada pela restituição e pela oferta de presentes” (Faraone, 2021, p. 62).
12 Marks (2002, p. 12-19) examina detidamente as várias possibilidades sintáticas e temáticas na interpretação o trecho.
13 Isso não é o caso para leitores que desconsideram as diferenças entre kholos e mênis e/ou defendem que, por meio do particípio oulomenên, o narrador sobretudo explicita seu juízo sobre Aquiles.
14 Repare que a sílaba di- liga Aquiles (di-os, 7) a Zeus (Di-os, 5) e também, via sua mênis, ao Hades (Ai-di, 3).
15 Acerca da mênis, cf. nota 20 abaixo.
16 Cf. também Katz (2013, p. 183). Os artigos de Joshua T. Katz listados nas referências compuseram importante fonte de inspiração para eu definir teoricamente a análise proposta neste artigo.
17 Purves (2019, p. 121-3) discute διαστήτην no verso 6 (cf. a próxima nota) e chega à seguinte conclusão: “O sentido lexical do verbo – a pose inicial e desafiadora do poema – dessa forma enfraquece a impressão inerente ao dual de que dois homens podem agir em conjunto” (122-3). O verso 7 une os dois protagonistas humanos, mas também os separa ao deslocar os nomes para as pontas do verso; cf. Tsagalis (2012, p. 98).
18 Eri-di (8) retoma a sílaba di- que marca Aquiles em 1-7; cf. supra nota 14. Além disso, “o δια- de διαστήτην é destacado pela sua correspondência com Διός no verso anterior; ambos ocorrem no verso anterior; ambos ocorrem na mesma posição métrica em versos sucessivos e ambos são seguidos por sons semelhantes: DIOSDETE e DIASTETE” (Purves, 2019, p. 122). A ênfase resultante é antes na “separação” explicitada por “romperam”, “separaram-se” (diastêtên), o que é retomado no verso 8 por meio da construção pleonástica eridi… makhesthai, mas também por um gesto de aproximação explicitado por um prevérbio, xun-eêne.
19 De forma mais geral, “o proêmio homérico estabelece que o épico explorará como mortais e imortais negociam a separação entre as comunidades de imortais e mortais” (Tomasso, 2016, p. 386).
20 Extrapola os limites desse trabalho recapitular as propostas para o sentido de mênis. Coloco-me ao lado daqueles que (1) acentuam a dimensão divina e/ou cósmica no uso de mênis e seus cognatos; e (2) que essa dimensão tem consequências para a caracterização implícita de Aquiles ao longo do proêmio. Cf. v. g. Katz (2016, p. 115-6) e Tomasso (2016, p. 388, n. 39): “Como se argumentava que μῆνις era usada apenas pelos deuses e por Aquiles, a primeira palavra da Ilíada era comumente interpretada como ‘ira divina’ (por exemplo, Watkins, 1994, p. 567; Foley, 1994, p. 93) e, portanto, percebida como um marcador da identidade divina de Aquiles. Em seu estudo de 1996, Muellner apontou que, se considerarmos todas as formas derivadas da raiz μηνι-, incluindo verbos (alguns compostos) e particípios, veremos que a Ilíada aplica μῆνις a deuses, semideuses e mortais integrais (por exemplo, Agamêmnon, Odisseu, Heitor). Esse agrupamento mais abrangente o leva a argumentar que a raiz μηνι- não se refere especificamente à raiva divina, mas mais amplamente à raiva gerada por situações que violam as leis dos sistemas cósmicos”. Quanto a dios, trata-se de um epíteto ornamental por excelência (Parry, 1971, p. 145-8).
21 Cf. Buchan (2012, p. 1-9). Para outras propostas, cf. Latacz et al. (2010, p. 23) e Schein (2022, p. 93).
22 Pietro Pucci, ao mencionar essa distribuição do epíteto nas fontes supérstites (para Hermes, somente no Hino homérico a Hermes), chega à seguinte sugestão: “Possivelmente, polutropos atribui algum poder divino, semelhante ao de Hermes, a Odisseu, já que o epíteto é usado exclusivamente para eles. Dessa forma, a expressão andra... polutropon pode sugerir a noção de um ser humano que possui um poder peculiarmente divino”.
23 Slatkin (1991) demonstrou que o mito do qual faz parte esse não-evento é fundamental no canto 1 do poema.
24 Acerca do antagonismo entre Apolo e Aquiles, cf. Nagy (2004, p. 142-4).
25 De novo, no início de um pé, o 5º.
26 Além disso, (A-)khilêos e kholôtheis ocupam a mesma posição métrica.
27 Somente um termo não é um nome, ana (15).
28 “A evidência poética da Dichtersprache homérica revela ‘um nexo generalizado’ entre ἄχος e Ἀχιλ(λ)λεύς, o qual ‘está integrado no sistema formular herdado e, portanto, profundamente enraizado na tradição épica’” (Nagy, 2004, p. 132); cf. também Nagy (1999, p. 69-93). Para a minha argumentação, do ponto de vista sincrônico, o que interessa são os jogos sonoros e as ressonâncias temáticas na passagem em questão, e não a certeza da etimologia científica.
29 Embora se use a forma verbal kholôtheis para Apolo no verso 9, o verso 75 fala da mênin de Apolo, com o termo na posição inicial do verso. Para Kahane (2022, p. 36), “se uma forma literária tem algum significado, então aqui o acusativo μῆνιν no início do verso, seguido por um genitivo subjetivo etc. não pode deixar de marcar a ligação entre o tema/ ‘palavra-chave’, a ira de Aquiles – ainda no futuro da narrativa – e a ira de Apolo, ‘agora’ (em 1.74-5) recontada (μυθήσασθαι) no passado da narração, após o deus enraivecido ter infligido a peste no exército grego e após o início do poema” (grifos do autor). Note-se também que, nessa segunda passagem, o adivinho reforça a ligação entre Aquiles e Zeus já sugerida no proêmio: ὦ Ἀχιλεῦ κέλεαί με διῒφίλε μυθήσασθαι (“Aquiles caro-a-Zeus, pedes que enuncie”). Além disso, “o claro paralelo entre a μῆνις de Aquiles e a de Apolo é talvez reforçado pelo uso de διΐφιλε (74) para Aquiles e διΐφιλον (86) para Apolo” (Schein, 2022, p. 114). Van Thiel prefere Διῒ φίλε.
30 A presença de # depois de uma palavra indica que essa é a última de um verso.
31 Tsitsibakou-Vasalos (2007, p. 32) não apenas enfatiza que “os limites entre aliteração etimológica e não etimológica são estreitos e discutíveis”, mas também que “Homero divide as palavras em suas partes constitutivas, em torno das quais ele tece pequenas cápsulas narrativas” (p. 38).
32 Schein (2022) também sublinha o destaque conferido ao termo: “a escolha de ἀρητήρ em vez de outra palavra para ‘sacerdote’ é apropriada, uma vez que Crises logo invocará Apolo para se vingar de Agamêmnon e do exército grego. ἀρητῆρα ganha força pelo clímax retórico causado pela sua posição no final da linha e pela primeira ocorrência no poema de uma sílaba pesada em vez de duas sílabas leves na posição 10”.
33 Sobre Eris (nestas duas passagens, ela é personificada), cf. Il. 4.439-40 (Atena e Ares) e 11.3 (Zeus). Claro que Apolo amiúde luta ao lado dos troianos (notadamente na invasão do acampamento aqueu), mas em 5.506-11, mesmo com sua presença, o paralelo bélico é, de fato, entre Ares e Atena. Além disso, é Apolo quem propõe à beligerante Atena interromperem a luta em Il. 7.24-32. Por fim, no novo escudo de Aquiles, na cena de guerra entre as cidades, apenas Ares e Atena, entre os olímpicos, são representados (18.516), e, na batalha entre os deuses no canto 21, Apolo decide não lutar com Posêidon.
34 Os termos em questão estão em itálico: σεύατ’ ἔπειθ’ οἷός τε πελώριος ἔρχεται Ἄρης,/ ὅς τ’ εἶσιν πόλεμον δὲ μετ’ ἀνέρας οὕς τε Κρονίων/ θυμοβόρου ἔριδος μένεϊ ξυνέηκε μάχεσθαι (“apressou-se feito marchasse o portentoso Ares,/ que percorre batalhas em meio a varões a quem o Cronida/ juntou em combate com o ímpeto da briga tira-vida”).
35 Cf. θοὰς [...] νῆας (12), ἀπερείσι’ ἄποινα (13), ἑκηβόλου Ἀπόλλωνος (14), χρυσέῳ ἀνὰ σκήπτρῳ (15), expressões nas quais o adjetivo implica algo positivo.
36 Nouson e mênin, ademais, ocupam a mesma posição métrica e são seguidos por um termo que inicia por a.
37 Essa espécie de focalização múltipla talvez também seja o caso para oulomenên: “A palavra οὐλομένην do narrador fala de raiva, é claro. No entanto, ela mesma expressa piedade, talvez medo ao se mencionar o sofrimento. Não há animosidade pessoal direta nas palavras do narrador. E mesmo que lêssemos raiva pessoal nas palavras do narrador, essa raiva não é transitiva: ela não é dirigida ‘instrumentalmente’ a personagens, não busca feri-los e é impotente para isso. Como não podemos separar o ato de narração do narrador ou sua focalização das emoções sentidas por Aquiles, devemos admitir a pluralidade inerente de perspectivas que define a ira da Ilíada. Essa pluralidade é ‘catártica’: ela induz à ‘piedade’, ao ‘medo’, à compreensão e à profundidade do sentimento” (Kahane, 2022, p. 39).
38 Ao aproximarem a enargeia discutida na antiguidade da teoria enativa de cognição, Grethlein e Huitink (2017, p. 72) discutem alguns aspectos que contribuem para que se vivencie o mundo narrado, entre eles, movimentos corporais simples, os seja, movimentos corporais intencionais e ações simples.
39 Se concordarmos com Bakker (1997, p. 156-83) que a fórmula “nome + epíteto” contribui para tornar presente o passado épico no momento mesmo da performance pelo aedo, então, o uso de uma fórmula equivalente primeiro pelo narrador e depois por Crises contribui para prefigurar a terrível epifania de Apolo na sequência.
40 Entretanto, como notou um dos pareceristas deste artigo, “a indicação de que se trata de uma recomposição generosa faz com que essa transação, embora não meramente econômica, não esteja, para o próprio narrador, isenta de seu aspecto econômico (talvez mesmo enfatizado por aliteração e assonância)”. Acerca dos aspectos políticos e econômicos que perpassam o conflito central do canto, aquele entre Aquiles e Agamêmnon, cf. o importante Frade (2021).
41 Repare a distribuição do som k/ kh nos versos 16 e 17, a mesma consoante do nome do sacerdote, reforçando que o poder relativo de cada parte envolvida é relativo e não absoluto como acredita Agamêmnon. Khrusês também é cognato de khruseôi (15), o metal que orna o cetro que informa sua autoridade apolínea. Kosmêtôr, na Ilíada, só é usado nessa passagem, na repetição verbatim do verso em 375 e em Il. 3.236.
42 Sobre o discurso de Crises, nota Kirk (1985, p. 55) que “é curto e cuidadosamente composto, principalmente a partir de sintagmas formulares. A variação ordenada no padrão do verso é a primeira coisa a ser notada; 17 e 18 são duplos (17 com apenas a mais leve das cesuras centrais); 19 e 20 são rising threefolders, seu paralelismo formal acentuado pelo -σθαι em seu final”.
43 A aliteração de p também é notável no primeiro hemistíquio, o qual se repete, com variações, apenas em Il. 12.15.
44 Katz (2010, p. 362-8) mostra como não é difícil compatibilizar formularidade e repetições de sons.
45 O duplo -ll- de A-poL-Lôn também reaparece no último pé do verso 25 (etel-le).
46 “Mas Homero é o melhor a usar este tipo de recurso (s.c. o do poeta dar indícios de que não lhe agrada o que será dito)… com a prévia denúncia, ele quase dá testemunho pessoal e ordena que não se dê atenção às palavras, por serem injuriosas e mesquinhas” (Plutarco, 2022, p. 44-5). O exemplo que Plutarco fornece é o verso 25: o verso deixaria claro que Homero considera a forma de Agamêmnon tratar Crises como “rude e imprópria”. Cf. também Hunter e Russel (2011, 107), que demostram que a análise de Plutarco é a usual na antiguidade.
47 “Como kratos transmite uma noção de ‘domínio’ ou ‘superioridade’ numa disputa, há uma dimensão comparativa já incorporada em sua semântica, que é simplesmente reiterada nas formas positiva (krateros/ karteros), comparativa (kreissôn) e superlativa (kartistos)” (Stocking, 2023, p. 226).
48Kratos tem uma associação especialmente forte com Zeus, e kratos também é concebido como um objeto dado pelos deuses, principalmente por Zeus. Assim, o uso de kratos ressalta ainda mais a contingência da competição e a dependência de uma economia maior compartilhada entre humanos e deuses. O sentido de ‘superioridade’ pode ser entendido tanto em termos políticos quanto físicos, e essa bivalência é especialmente capturada no uso do verbo krateein” Stocking (2023, p. 226). Repare como Calcas descreve Agamêmnon sem o nomear: “ὃς μέγα πάντων/ Ἀργείων κρατέει καί οἱ πείθονται Ἀχαιοί” (78-79, “que, poderoso,/ chefia todos os argivos, e os aqueus a ele obedecem”).
49 Saussure (2013, p. 252) descreve uma tentativa anagramática de “Agamêmnon” (un anagramme discret sur ‘Ἀγαμέμνων’) desdobrada nos versos 29-31.
50 Uma forma de acentuar a diferença de poder entre Crises e Agamêmnon é a evocação do nome “Khrusêis” por Agamêmnon nos versos 28-29, os quais, de forma anagramática, evocam antes o nome da filha antes que o do pai (Saussure, 2013, p. 247-51). Ainda na interpretação de Saussure, os dois versos anteriores 26-27 preparam o anagrama posterior. Assim, Agamêmnon evoca seu poder sobre a ausente Criseida, ao passo que Crises o faz, mutatis mutandis, em relação a Apolo. Como se viu, sonoramente, o poeta sustenta apenas a evocação de Crises, de um lado, e critica Agamêmnon, de outro.
51 O próprio termo é usado pela primeira vez no verso 118.
52 Isso fica ainda mais claro quando se comparam os 22 versos iniciais do episódio com seu resumo por Aquiles em 11 versos, alguns deles repetidos verbatim. No começo (370), meio (373) e fim (380), “Apolo” (nos dois primeiros versos, no genitivo, no terceiro, no nominativo) ocupa a última posição no verso.
53 Cf. a narração de Aquiles desse mesmo instante: χωόμενος δ’ ὁ γέρων πάλιν ᾤχετο· τοῖο δ’ Ἀπόλλων (380). Nesse momento da narrativa, para o receptor, o sentimento de ira já se alastrou por todos os protagonistas do episódio (Agamêmnon, Aquiles, Apolo), unindo-os de alguma forma (Buchan, 2012, p. 4-7), mas esta é a primeira vez que se menciona que foi por essa razão que Crises agiu. Para Schein (2022, p. 165), “Aquiles projeta sua própria emoção em Crises”.
54 Acerca desse cenário, Lynn-George (1988, p. 52) nota que “em sua reescrita, Platão eliminou não apenas todo discurso direto, mas também o que se pode considerar como uma parte significativa do palco épico, ‘a costa do mar ruidoso’. A transposição para uma ‘narrativa pura’ suprimiu não apenas a forma dramática, mas também o drama poderoso e particularmente importante encenado no limiar da narrativa na abertura do épico”.
55 Ambos os sintagmas, precedidos nos respectivos versos por epeit’, são “parte de um sistema formular acústico (…) na mesma posição no verso” (Schein, 2022, p. 102).
56 Texto grego e tradução do passo são citados um pouco mais abaixo.
57 Expresso pelo nome empregado adverbialmente akeôn, cujo sentido é, segundo Meier-Brügger (1995, p. 139) “atento, portanto, em silêncio”; escreve o autor: “em nosso caso, está claro que a tradução ‘calado’, ‘mudo’ não é a mais adequada e deve ser substituída por ‘atento, ‘quieto’”.
58 “Há claramente um contraste entre o mar agitado e o sacerdote silencioso, intimidado, mas preocupado” (Pulleyn, 2000, p. 131). Contra Kirk (1985, p. 56), que, porém, concede: “No entanto, os matizes de θῖνα [...] θαλάσσης e assim por diante são frequentemente de tensão ou tristeza [...] e isso talvez dê cor ao silêncio temporário de Khruses, tornando-o ominoso” (p. 56-7).
59 Polla“expressa intensidade interior (‘fervorosamente’, ou [...] ‘muitas vezes’; aqui acentuada pela ampla separação de êrath”) (Latacz et al., 2010, p. 39; grifo no original). Mas cf. a nota seguinte.
60 Para Montiglio (2000, p. 56), “o caráter altamente sonoro dessa cena tem o efeito de obliterar o silêncio temeroso que se apoderara do sacerdote: antes mesmo de ele falar, seu silêncio é engolido pelo ‘mar que ruge alto’; então as palavras de sua prece são numerosas, ressoantes, insistentes”. Em nota, a autora defende a ambiguidade de polla, como também o faz Lynn-George (1988, p. 53).
61 Pretendo desenvolver o caráter da epifania de Apolo em artigo futuro.
62 “Todo o verso é preenchido com uma fórmula que descreve Apolo. Isso produz um efeito grandioso e solene” (Pulleyn, 2000, p. 132). Latacz et al. (2010, p. 40) também observa que, se um verso inteiro é dedicado à menção de uma personagem, isso sinaliza sua importância para a narrativa.
63 O primeiro som do verso é um a. Na primeira metade, as vogais preponderantes são a e o; na segunda, e e o. Isso diz respeito à qualidade, não quantidade das vogais. Como nota Katz (2019, p. 162) em relação a contextos poéticos, a qualidade das vogais é mais importante que a quantidade; cf. também Katz (2016, p. 162). Saussure (2013, p. 249), porém, alerta sobre o uso significativo do e longo nos versos 26-30. Por fim, no verso 36, quase as mesmas consoantes são usadas nos dois hemistíquios.
64 “É claro que a aliteração é uma característica da linguagem estilizada em todo o mundo, mas ela desempenhou um papel mais importante na poesia grega primitiva do que a maioria dos estudiosos admite prontamente e foi, sem dúvida, uma ferramenta importante no kit do bardo proto-indo-europeu” (Katz, 2010, p. 366).
65 Tal interpretação vai ao encontro de aspectos fundamentais da interpretação de mênis proposta por Muellner (1996); cf. supra nota 20.
66 A consoante k abre os dois primeiros versos da prece de Crises (kluthi […] Killan, 37-38).
67 O posicionamento de Aquiles já inicia no verso 231.
68 Cf. Schein (2022, p. 101-2 e104) e Latacz et al. (2010, p. 36).
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