Traduções

O Epinício 3 de Baquílides: comentário exegético-filológico e tradução

Bacchylides’ Epinician ode 3: exegetic-philological commentary and translation

Robert de Brose
Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, Ceará, Brasil, Brasil

O Epinício 3 de Baquílides: comentário exegético-filológico e tradução

Classica - Revista Brasileira de Estudos Clássicos, vol. 37, pp. 1-24, 2024

Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos

Recepción: 11 Enero 2024

Aprobación: 23 Enero 2024

Resumo: Neste artigo proponho um comentário exegético e filológico do Epinício 3 de Baquílides acompanhado de uma tradução poética que incorpora os resultados teóricos no texto de chegada em português do Brasil. É meu intuito com esse comentário não apenas chamar a atenção do leitor para a sofisticação e complexidade que subjaz à aparente simplicidade da poesia baquilidiana mas também apresentar novos resultados relativos à exegese do poema. No comentário, portanto, apresento razões para mudar o textus receptus de Kenyon (1897) e Maehler (2003) em alguns pontos, a fim de refletir os avanços feitos pela crítica textual nos últimos anos, bem como minha própria interpretação de certas passagens. Nesse comentário, explico também minhas escolhas tradutórias sempre que essas divergem de outras mais tradicionais.

Palavras-chave: filologia clássica, crítica textual, tradução, tradução comentada, epinício, Baquílides, epinício3.

Abstract: In this article I propose an exegetical and philological commentary on Bacchylides’ Epinician 3 accompanied by a poetic translation that incorporates the results into the target text in Brazilian Portuguese. My intention with this commentary is not only to draw the reader’s attention to the sophistication and complexity that underlies the apparent simplicity of Bacchylides’ poetry, but also to present new critical results regarding the poem’s exegesis. In the commentary, therefore, I explain my reasons for changing the textus receptus of Kenyon (1897) and Maehler (2003) at certain points, to reflect the advances made by textual criticism in recent years, as well as my own interpretation of certain passages. In this commentary, I also explain my translation choices whenever they diverge from more traditional ones.

Keywords: classical philology, textual criticism, translation, commented translation, epinician, Bacchylides, ode 3.

1. Introdução

Baquílides nasceu em Iúlis, uma cidade na ilha de Ceos, no final do séc. VI. As datas exatas são desconhecidas, mas Eusébio (apud Campbell, 1992, p. 102) coloca seu floruit em 468, quando compõe a ode objeto deste artigo para o tirano da Sicília, Hierão de Siracusa. Segundo Estrabão (10.5.6), Baquílides era “sobrinho” (adelphidoús) de Simônides, mas a Suda fala tão somente que ele era seu “parente” (syngenḗs), o que revela uma incerteza acerca de seu parentesco com o poeta mais velho de Ceos. Eustácio, no Proêmio a Píndaro (3, Drachmann, 1903, p. 297), diz que Baquílides era mais jovem que Píndaro, cujo nascimento podemos colocar, com alguma segurança em 518. Se em 468 ele tinha por volta de 35-40 anos, uma idade em que tradicionalmente se coloca o floruit da vida humana, ele então deveria ser de oito a dez anos mais jovem que Píndaro, o que colocaria seu nascimento, com alguma margem de erro, no ano de 507 (assim, também Jebb, 1905, p. 2).

O Epinício 3 comemora a tão almejada vitória de Hierão com a quadriga nos Jogos Olímpicos de 468, celebrada dessa vez, aparentemente, apenas por Baquílides neste Epinício 3. Digo “aparentemente” porque, como argumenta Drachmann (1890) e, depois dele, Gantz (1978) e Gentili (1995, p. 43-7), é possível que a Pítica 2 também tenha sido comissionada para celebrar essa conquista, seguindo o costume de Hierão, sedimentado em 476 e 470, de empregar os dois maiores poetas epiniciais de sua época para celebrar a mesma vitória atlética. Isso poderia explicar, em parte, o marcado tom agonístico da maioria dos epinícios de Píndaro aos tiranos da Sicília.

O texto que utilizo no presente comentário é aquele de Maehler, 1982; 2003), com modificações, apontadas e justificadas no comentário. Minha tradução segue os preceitos teóricos já expostos na minha tradução das Odes olímpicas de Píndaro (Píndaro, 2023).

2. Texto grego e tradução

ιερωνι συρακοσιωι ιπποις [ολυ]μπιαPara Hierão de Siracusa com os cavalos em Olímpia
Αˊ Ἀριστο[κ]άρπου Σικελίας κρέουσανI Da suprema altriz Sicília, à Rainha
Δ[ά]ματρα ἰοστέφανόν τε ΚούρανDamáter e à Moça coroada de violetas
ὕμνει, γλυκύδωρε Κ͜λεοῖ, θοάς τ’ Ὀ-hineia, dulcidadivosa Clio, e as ágeis
λυμ]πιοδρόμους Ἱέρωνος ἵππ[ο]υς.éguas de Hierão, olímpicos corcéis. –
5 σεύον]το γὰρ σὺν ὑπερόχωι τε Νίκᾱι5 Dispararam, pois, com a excelsa Vitória
σὺν Ἀγ]λαίαι τε παρ’ εὐρυδίνανe com Aglaia junto ao largiturbilhante
Ἀλφεόν, τόθι] Δεινομένε͜ος ἔθηκανAlfeu, onde, de Dinômenes, tornaram
ὄλβιον τ[έκος στεφάνω]ν κυρῆσαι·ditoso o filho ao garantir uma guirlanda.
θρόησε δὲ λ[αὸς ἀγασθείς·E bradou o povo, admirado,
10 ἆ τρισευδαίμ[ων ἀνήρ,10 Ah trisabençoado o varão
ὃς παρὰ Ζηνὸς λαχὼνque, de Zeus obtendo o galardão
πλείσταρχον Ἑλλάνων γέραςdo maior governo sobre os helenos,
οἶδε πυργωθέντα πλοῦτον μὴ μελαμ-sabe, turriforme uma fortuna, não cobrir
φαρέϊ κρύπτειν σκότωι.negrivelada sob a treva.
)–)–
Βˊ βρύει μεν ἰερὰ βουθύτοις ἑορταῖς,II Sobejam os templos com festas tauricidas;
16 βρύουσι φιλοξενίας ἀγυιαί·16 sobejam, de hospitalidade, as avenidas;
λάμπει δ’ ὑπὸ μαρμαρυγαῖς ὁ χρυσός,lampeja, sob faiscante brilho, o ouro
ὑψιδαιδάλτων τριπόδων σταθέντωνdas sumidedáleas trípodes, erguidas
πάροιθε ναοῦ, τόθι μέγιστον ἄλσοςdefronte ao templo, lá, ao grande bosque
20 Φοίβου παρὰ Κασταλίας ῥεέθροις20 do Lúcio, junto ao riacho da Castália,
Δελφοὶ διέπουσι. θεὸν θ[εό]ν τιςos délfios administram. A um deus, um deus
ἀγλαϊζέθὠ γὰρ ἄριστος ὄλβων·glorifique-se, pois, dos faustos, é o melhor.
ἐπεί ποτε καὶ δαμασίππου
Λυδίας ἀρχαγέταν,Pois um dia, da Lídia domadora
25 εὖτε τὰν πεπ[ρωμένανde cavalos, ao monarca,
Ζηνὸς τελέ[σσαντος τί]σιν25 quando a predestinada
Σάρδιες Περσᾶ[ν ἁλίσκοντο στρ]ατῶι,paga de Zeus se consumava
Κροῖσον ὁ χρυσά[οροςe Sárdis era tomada pelo exército dos Persas,
)–a Creso o Auribálteo
Γˊ φύλαξ’ Ἀπόλλων. [ὁ δ’ἐς] ἄελπτον ἆμαρ)–
30 μ[ο]λών πολυδ[άκρυο]ν οὐκ ’ἔμελλεIII protegeu, Apolo. Ao inesperado dia
μίμνειν ἔτι δ]ουλοσύ]ναν· πυρὰν δὲ30 tendo vindo, aquele à multilacrimosa
χαλκ[ο]τειχέος π[ροπάροι]θεν αὐ[λᾱςescravidão não iria esperar: uma pira,
na área defronte ao bronzimurado pátio,
ναήσατ’, ἔνθα σὺ[ν ἀλόχωι] τε κεδ[νᾶι
σὺν εὐπλοκάμοι[ς τ’] ἐπέβαιν’ ἄλα[στον fez assentar, e aí, com a dileta esposa
35 θ]υ[γ]ᾳτράσι δυρομέναις· χέρας δ’[ἐςe com as belícomas filhas inconsoláveis
αἰ]πὺν αἰθέρα σφετέρας ἀείρας35 a prantear, ele subiu. E suas mãos
ao árduo firmamento tendo erguido,
γέ]γωνεν· “ὑπέρ[βι]ε δαῖμον,
πο]ῡ θεῶν ἐστιν χάρις;
πο]ῡ δὲ Λατοίδας ἄναξ;ele bradou: “Soberbo Poder,
40 [ἔρρουσ]ιν Ἀλυά[τ]τα δόμοιonde, dos deuses o penhor?
[τίς δὲ νῦν δώρων ἀμοιβὰ] μυρίωνonde está o Senhor filho de Leto?
[φαίνεται Πυθωνόθε]ν;40 Rui o palácio de Aliates,
)–e quem, em troca de milhares de oferendas,
Δˊ [πέρθουσι Μῆδοι δοριάλωτο]ν ἄστυ,de Pito agora há de surgir?
[ἐρεύθεται αἵματι χρυσο]δίνας)–
45 Πακτωλός, ἀεικελίως γυναῖκεςIV Medos saqueiam a lancirapta acrópole,
ἐξ ἐϋκτίτων μεγάρων ἄγονται·com sangue enrubesce o aurifluente
45 Pactolo, impudentemente mulheres
τὰ πρόσθεν [ἐχ]θρὰ φίλα· θανεῖν γλύκιστον.’são levadas dos salões bem-assentados.
τόσ’εἶπε, καὶ ἁβ[ρο]βάταν κ[έλε]υσεν
ἅπτειν ξύλινον δόμον. ἔκ[λα]γον δὲO outrora odiado: amado; morrer, dulcíssimo!”
50 παρθένοι, φίλας τ’ἀνὰ ματρὶ χεῖραςTanto disse, e ordenou ao malemolente
acender o xilino construto. Gritavam
ἔβαλλον ὁ γὰρ προφανὴς θνα-50 as moças e, caras, à mãe as mãos lançavam,
τοῖσιν ἔχθιστος φόνων·
ἀλλ’ ἐπει δεινοῦ πυρὸςpois, aos mortais, a anunciada é,
λαμπρὸν διάϊ[σσεν μέ]νος,das ocisões, a mais odiada.
55 Ζεὺς ἐπιστάσας [μελαγκευ]θὲς νέφοςMas quando do terrível fogo
σβέννυεν ξανθὰ[ν φλόγα.brilhante reluzia a força,
)–55 Zeus, sobrepondo negricerrada nuvem,
Εˊ ἄπιστον οὐδέν, ὅ τι θ[εῶν μέ]ριμναextinguiu-lhe a loura chama.
τεύχει· τότε Δαλογενὴ[ς Ἀπό]λλων)–
φέρων ἐς Ὑπερβορέο[υς γ]έρονταV Incrível, nada, que dos deuses o cuidado
60 σὺν τανισφύροις κατ[έν]ασσε κούραιςnão produza. Então o Delógena Apolo,
aos Hiperbóreos transportando o ancião,
δι’ εὐσέβειαν, ὅτι μέ[γιστα] θ͜νατῶν60 lá, co’as pernalteiras jovens o assentou
ἐς ἀγαθέαν <ἀν>έπεμψε [Πυθ]ώ.
ὅσο[ι <γε> μὲν Ἐλλάδ’ ἔχουσιν, [ο]ύτι[ς,por sua piedade, pois, dos humanos, maiores
ὦ μεγαίνητε Ἱέρων, θελήσειofertas à sacratíssima Pito enviou.
E entre os que a Hélade habitam, nenhum
65 φάμ]εν σέο π͜λείονα χρυσὸνó mui venerável Hierão, desejará
Λοξί]ᾱι πέμψαι βροτῶν.
εὖ λέγειν πάρεστιν, ὅσ-65 dizer, mais que tu, dentre os mortais,
τις μ]ὴ φθόνωι πιαίνεται,ouro a Lóxias ter enviado.
θεοφι]λῆ φίλιππον ἄνδρ’ ἀρήϊονElogiar é fácil – ao menos
70 τεθμ]ίου σκᾶπτρον Διόςa alguém não cevado de inveja –,
)–a um pio, equícola e belicoso varão,
Ϝˊ ἰοπλό]κων τε μέρο[ς ἔχοντ]α Μουσᾶν·70 que o cetro de Zeus temístio
ὡς δ’ ἐν] Μαλέᾱι ποτ[έ, χεῖμα δαί]μων)–
ἐπ’ἔθ]νος ἐφάμερον α]ἶψ’ ἵησι.·VI tem e, das trancivioláceas Musas, uma parte.
καιρί]α σκοπεῖς· βραχ[ύς ἐστιν αἰών·Assim, em Málea, às vezes, uma borrasca
um deus à grei efêmera de novo manda.
75 πτερ]ό͜εσσα δ’ἐλπὶς ὑπ[ολύει ν]όημαTu do oportuno cuidas: breve é a vida.
ἐφαμ]ερίων· ὁ δ’ ἀναξ[ιφόρμιγξ
ὁ βουκό]λος εἶπε Φέρη[τος υἷι·
θνατὸν εὖντα χρὴ διδύμους ἀέξειν75 Alada a esperança livra o pensamento
das coisas hodiernas: o Citaragógico
γνώμας, ὅτι τ’ αὔριον ὄψεαιpastor outrora disse ao filho de Féres:
80 μοῦνον ἁλίου φάος,Sendo mortal, deves duplo entreter
χῶτι πεντήκοντ’ ἔτε͜α
ζωὰν βαθύπλουτον τελεῖς,um pensamento: que amanhã verás
ὅσια δ͜ρῶν εὔφραινε θυμόν· τοῦτο γὰρ80 do sol sua última luz,
κερδέων ὑπέρτατον.e que com cinquenta anos
)–e alta riqueza, finar-te-ás.
Ζˊ φρονέ͜οντι συνετὰ γαρύω· βαθὺς μὲνAo sagrado obrando, teu ânimo alegra, este,
86 αἰθὴρ ἀμίαντος· ὕδωρ δὲ πόντουpois, dos lucros, é o mais alto.
οὐ σάπεται· εὐφροσύνα δ’ὁ χρυσός·)–
ἀνδρὶ δ’ οὐ θέμις, πολιὸν π[αρ]ένταVII Aos pensantes, o óbvio anuncio: alto
86 é o éter inconspurcável; a água do ponto
γήρας, θάλ[εια]ν αὖτις ἀγκομίσσαιnão choca, e o ouro é uma alegria eterna.
90 ἥβαν. ἀρετᾶ[ς γε μ]ὲν οὐ μινύθειMas ao homem não é lícito, chegada a gris
βροτῶν ἅμα σ[ώμ]ᾳτι φέγγος, ἀλλὰ
Μοῦσά νιν τρ[έφει.] Ἰέρων, σὺ δ’ ὅλβουvelhice, de novo recuperar a flor
90 da juventude. Mas, da virtude, não míngua,
κάλλιστ’ ἐπεδ[είξ]αο θνατοῖςdos mortais c’o corpo, o brilho; antes,
ἄνθεα· πράξα[ντι] δ’εὖa Musa a nutre. Ó Hierão, de um fausto
95 οὐ φέρει κόσμ[ον σι]ω-
πά· σὺν δ’ἀλαθ[είᾱι] καλῶνexibiste aos mortais as mais belas
καὶ μελιγλώσσου τις ὑμνήσει χάρινflores. Ao que faz o bem,
Κηΐας ἀηδόνος.95 não traz o silêncio adorno.
E com a lembrança de belos feitos hinear-se-á também a graça da melíflua voz do rouxinol de Ceos.

3. Comentário

v. 1: Ἀριστο[κ]άρπου Σικελίας – A Sicília sempre foi famosa pela sua fertilidade devido às terras do sul serem predominantemente baixas e fertilizadas pelas cinzas vulcânicas do Etna. Sobre isso, ver Estrabão (6.2.7) e Diodoro Sículo (5.2.3 s.), que relatam que a ilha era sagrada a Deméter e Perséfone. Nesse sentido, o epíteto aristokárpos, um unicismo, é bastante adequado para abrir uma ode ao monarca da Sicília, Hierão, e deve imediatamente nos lembrar o áriston mèn hýdōr da Olímpica 1 de Píndaro, com que a meu ver estabelece uma intertextualidade. Cf. também fr. 106.7-8 S.-M., ἀπὸ τᾶς ἀγλαοκάρπου Σικελίας. O elemento aristo- é o primeiro dos muitos superlativos empregados nessa ode e não denota, precipuamente, a quantidade ou qualidade em relação ao segundo membro, isto é, não se trata de uma terra “rica ou riquíssima em frutos” (Campbell, 1992, p. 127), kornreich (Maehler, 1982), que Píndaro expressa com mais precisão em πολυμήλος καὶ πολυκαρπότατος na P. 9.11-12 (7 S.-M.), sobre Cirene, tampouco, de uma terra “de excelentes frutos” (Jesus, 2014, p. 56; Romero, 1988, p. 85). Rezende e Silva (2018, p. 158) chega mais perto com “das melhores safras”. Segundo o LSJ (s.v.), no entanto, o prefixo aristo- denota excelência dentro de uma classe (LSJ, s.v.) e, dessa forma, uma tradução mais literal seria “Sicília, que, de todas as terras, é a que mais se destaca por sua fertilidade” (Cairns, 2010, p. 39; 64); trata-se, na verdade, de uma “terra em que se plantando, tudo dá”, “ubertosa Sicilia” na tradução de Niccola Festa (1898, p. 11, n. 1), muito embora aí falte o elemento superlativo. Píndaro, ademais, esclarece o aristókarpos de Baquílides ao dizer, da Sicília, na N. 1.19-20 (14-15 S.-M.), ἀριστεύοισαν εὐκάρπου χθονός/ Σικελίαν πίειραν. O segundo elemento, -κάρπος, denota qualquer produto agrícola, daí seu uso metafórico no Prosódio fr. 1a.7 S.-M. de Baquílides, ἄκαρπον ἔχει πόνον, “faz um esforço improdutivo”. Para descrever a fertilidade da Líbia, Píndaro diz, na P. 4. 11 (6 S.-M.), καρποφόρου Λιβύας, “da frutífera Líbia”, mas o carvalho desfigurado da P. 4. 471 (265 S.-M.) é descrito como φθινόκαρπος, “fruticarente”.

vv. 1-2: κρέουσαν/ Δ[ά]ματραKréousa, interpretado pelos antigos como um part. pres. fem. de *kréō (Artem. 2.12, apud LSJ, s.v.), donde o usitado κρείων em Homero aplicado a Zeus e Agamêmnon. Possivelmente, o substantivo não é um deverbativo, mas vem de uma raiz desconhecida do PIE para o substantivo “rei”, “governante”, cujos cognatos são, Av. srīra e Sâncr. śrī. Chantraine (DELG, s.v.) aponta o paralelismo entre o grego εὐρὺ κρείων e o composto kharmadarya em sânscrito pṛthu-śrī, de mesmo sentido, a saber, “largi-potente”. Dado que o nome Kréousa, como, por exemplo, na peça Íon de Eurípides, provavelmente significa simplesmente “rainha” e que, em Hesíodo, fr.6.31a M.-W., Antíope é chamada de Ἀντιόπη κρείουσα, que, naquele contexto certamente significa “rainha Antíope”, traduzi o kréousa de Baquílides por “rainha”. Preservei o quanto pude a coloratura dórica dos nomes próprios e de deuses por razões já explicitadas em Brose (Píndaro, 2023, p. 141).

v. 2: ϝἰοστέφανόν τε Κούραν – O digama, não marcado na edição de Maehler (1982), deve ser suposto para evitar o hiato após Δάματρα e uma longa na quarta sede do jambo. O Hin. hom. Dem., vv. 5-18, conta como Perséfone foi raptada por Hades ao colher flores, entre as quais a violeta (ἴα). Assim, o epíteto ϝἰοστέφανος evoca um subtexto erótico e sinistro. Erótico porque o epíteto é usado para Afrodite (ἰοστεφάνου Κυθερείης, H. hom. Afrod., v. 18; Κυπρογενοῦς δῶρον ἰοστεφάνου, Teógnis, 2.1304) e outras deusas marcadas pela beleza, como Tétis (Baquílides, 13.89-90) e as Musas (Teógnis, 1. 250; Baquílides, Ep. 5.3). Ϝἰοστέφανος pode ainda aludir aos matizes escuros das montanhas e do mar perto dos quais Perséfone vagava (Poltera, 1997, p. 348). Pela mesma razão, ele evoca a escuridão do submundo.

v. 3: γλυκύδωρε Κλεοῖ – Clio, “Glória”, é nomeada por Hesíodo em seu catálogo na Teogonia, v. 77-9, ainda que lá a prominência seja dada a Calíope. O nome Clio está associado ao verbo kleíō, “cantar/ contar o kléos” e recorre quatro vezes (vv. 32; 44; 67; 105) neste poema junto com seus parônimos (kleîa, 100; kléos, 530; kleitoí, 815; agakleitoîsin 1016). Kléos, que significa “o que se ouve” (< klýō) sobre alguém”, é equivalente ao nosso “fama”, constituindo-se numa palavra-chave para a poesia epinicial. É nesse sentido que o nome de Clio adquire prominência na poesia de Baquílides (Epinícios 12.2; 13.195). Ela é “dulcidadivosa” (glykýdoros) tanto porque inspira no poeta doces canções (Φερενίκου χάρις/ νόον ὑπὸ γλυκυτάταις ἔθηκε φροντίσιν, Pind. O. 1. 29-31), as quais são o “adorno das dulcidadivosas Musas coroadas de violetas” (Epin. 3.4-5) quanto porque permite que o poeta agrade tanto o laudandus, por sua vitória (Νίκα γλυκύδωρε, Epin. 11.1), quanto a sua audiência, através da música e da poesia (Pind. I. 8.18, γλυκύ τι δαμωσόμεθα). Preferi não traduzir o nome “Clio” para não borrar a referência clara a uma das Musas, cujos nomes são conhecidos no vernáculo; também porque explico, neste comentário, sua relevância temática no poema.

vv. 3-8: θοάς τ’ Ὀ-/λυμ]πιοδρόμους (…) στεφάνω]ν κυρῆσαι – introduzem o louvor do laudandus, explicitando quem ele é, em que prova venceu e em quais jogos. O epíteto olimpiodrómos é outro unicismo que serve para identificar os jogos, aqueles de Olímpia. Maehler (1982, p. 41) e outros comentadores, por ele citados, demonstram perplexidade pelo fato de serem usadas sempre éguas nas corridas. Há duas explicações plausíveis para isso. A primeira é que as éguas eram preferidas devido ao seu comportamento mais dócil, menos propenso a disputas territoriais; a segunda, é que, como aponta Wackernagel (Langslow, 2009, p. 430 s.), baseando-se em Brugmann (1909), ἡ ἱππος, além de “égua”, significa também “cavalaria” (LSJ, s.v., II), um sentido que teria se mantido nas corridas de cavalos para denotar quadrigas. Δεινομένε͜ος (…) τ[έκος: Hierão, qualificado como “filho de Dinômenes” na antístrofe, sem nenhum outro epíteto como “rei”, “chefe” etc. Depois, o local da prova é revelado por uma perífrase: “ao longo do vastiturbilhonante Alfeu”, porque Olímpia ficava às margens do rio Alfeu, e o hipódromo corria paralelo à sua curva meridional. Eurydínēs ocorre só aqui e no Epinício 5.33 e, em ambas passagens, descreve esse rio caudaloso e turbulento, um dos maiores da Grécia. Baquílides apreciava compostos com eury-, pois três deles, como nos informa Maehler (1982, p. 42), são encontrados apenas em sua poesia: eurydínas, euriánax, eurinephḗs. A vitória é anunciada como obtida com a ajuda (esse é o sentido principal de σύν + dativus agentis) da “Suprema Vitória” e de “Aglaia”, uma das três Graças, numa oração infinitiva com duplo acusativo e sentido causativo: ἔθηκαν/ ὄλβιον τ[έκος στεφάνω]ν κυρῆσαι, “fizeram-no ditoso por ter ganhado guirlandas [com a sua ajuda]”, uma construção que encontra paralelo em Píndaro (P. 9.13-15). A atribuição da vitória à agência divina é um tópos da poesia epinicial. Hypéroxos, nesse sentido, é tanto “suprema” quanto a que “suporta com inabalável força”, como comenta Maehler (1982, p. 41; 2004, p. 87). Aglaía alude ao esplendor da vitória e do vitorioso; ela é a personificação do glamour que envolve os vencedores olímpicos e que se expressa na forma de kŷdos, o magnetismo que emana dos famosos. Também se refere às opulentas celebrações que se seguiam a uma vitória olímpica. Ólbos, que aparece aqui pela primeira vez no poema, será uma palavra importante deste epinício. Sua tradução em diferentes passagens atenta ao fato de que a palavra pode ter tanto um sentido subjetivo quanto objetivo que estão relacionados. No primeiro caso, significa, como anota Rumpel (s.v., cum exemplis) felicitas e, no segundo, opulentia, opes. Dessa forma, ólbos é um tipo de felicidade proveniente (e sinônimo) de uma prosperidade material, de uma honra, de um sucesso etc. Cf. com triseudaímōn, mais abaixo.

v. 9: θρόησε δὲ λ[αὸς·ἀπείρων – É melhor tomar thróēse como intransitivo e pontuar após apeírōn. Baquílides mistura aqui o estilo direto ao indireto livre, juntando o expletivo â àquilo que os expectadores devem ter pensado. Cf. com Epin. 9.35 βοὰν ὤτρυνε λαῶν. Não é provável que o poeta descrevesse a audiência como emitindo os vv. 10-14 ou, pior ainda, 10-22. O paralelo dado por Maehler (1982, p. 43; 2004, p. 88) com o fr. 211 M.-W. não me parece relevante porque lá ἅπαντες está no sentido distributivo, isto é, “cada um” (viz., κοινός λόγος ἑκάστῳ ἦν) e não coletivo, como aqui, em que a multidão grita em uníssono (ὁμοῦ θρόησε…). Apeírōn é o suplemento proposto por Blass, que se baseia na Il.24.776 ἐπὶ δ’ἔστενε δῆμος ἄπείρων. Jebb (1905, p. 254) sugere ἀγασθείς, que me parece superior e que mantive no texto usado para a tradução aqui apresentada.

v. 10: ἆ τρισευδαίμ[ων – o expletivo ἆ, como anota o LSJ, s.v., e Jebb (1905, p. 254), é mais comum em expressões de tristeza, reprovação ou admonição do que de alegria, muito embora me pareça natural num caso de espanto ou surpresa, como aquele de presenciar a vitória de uma carruagem em Olímpia e por isso também agastheís, como dito acima, me pareça o melhor suplemento. Triseudaímōn, pela primeira vez aqui. Os gregos usavam trís- como um intensificador significando “muito”, mas nesse caso é possível identificar, de fato, três razões para a eudaimonía de Hierão: 1) ser o governante de todos os gregos do oeste; b) ser rico sem ser mesquinho e c) ser um campeão olímpico. Traduzo eudaímōn por “abençoado” (Rumpel, s.v., beatus) porque o adjetivo denota tanto a pessoa que nasceu sob um bom (eû) gênio (daímōn), quanto uma pessoa “bem () nascida”, isto é, “nobre”, “rica” (vide LSJ, s.v.). Assim, é comum sua associação com verbos como “nascer”, “gerar” (οὐ γάρ τις ἐπιχθονίων/ πάντα γ’ εὐδαίμων ἔφυ, Epin. 5.54-5; ἔνθα τεκοῖ-/σ’ εὐδαίμον’ ἐπόψατο γένναν, Pind. Hino fr. 33d.10), “destino” (πότμῳ σὺνεύδαίμονι, Pind. O. 2.34), “parte” dispensada por um deus, “moira” (τὶν δὲ μοῖρ’ εὐδαιμονίας ἕπεται, Pind. P. 3.150). No treno fr. 134, Píndaro coloca os dois termos em comparação ao dizer que εὐδαιμόνων δραπέτας οὐκ ἔστιν ὄλβος, e o mesmo faz Teógnis, 1.1013 ao dizer, μάκαρ εὐδαίμων τε καὶ ὄλβιος, ὅστις ἄπειρος/ ἄθλων εἰς Ἀίδου δῶμα μέλαν κατέβη. Essas e outras passagens deixam claro que eudaímōn e ólbios não eram sinônimos em grego.

v. 11-12: ὃς παρὰ Ζηνὸς λαχὼν (…) γέρας – Em Homero (Il. 2.196-7) e Hesíodo (Theog. 80), os reis encarnam a autoridade de Zeus, e o uso de lankhánō, aqui, aponta para um direito hereditário e chancelado pelo divino (pará + gen.) ao trono. Jebb (1905, p. 254) analisa o adjetivo como um composto do tipo tatpuruṣa equivalente a πλείστη ἀρχή, “governo supremo”, mas paradoxalmente assume, daí, que o sentido deva ser o de πλείστων ἀρχεῖν, “governar sobre a maioria”, sendo o complemento do objeto o gen. pl. Ἑλλάνων, “dos gregos”. Contudo, dizer que Hierão governava sobre a maioria dos gregos seria um exagero até mesmo para a linguagem do epinício, acostumado a essas hipérboles. Talvez seja melhor entender que Hierão obteve o privilégio de um governo supremo sobre os gregos da Sicília, o que legitimaria sua monarquia. Kenyon (1897, p. 17) já notara a semelhança com a fala dos embaixadores gregos em Heródoto, 7.157.10-13.

vv. 13-14: οἶδε πυργωθέντα (…) σκότωι – a ideia de uma riqueza turriforme já aparecera, de certa forma, no priamel da O. 1.4 de Píndaro. Μελαμ-/φαρέϊ σκότωι é reminiscente, como já notara Jebb (1905, p. 255), da linguagem euripidiana, aduzindo o μελάμπεπλος Νύξ do Ion, v. 1150; o composto aparece também em Alceste, v. 843, como epíteto da Morte. Μελαμφαής é usado na Helena, v. 518, como atributo do Êrebos. Μελαμφάρος aparece também qualificando Plutão, no fr. 660.6-7 e numa lista de substantivos do período helenístico (Suppl. Hell. fr. 991, p. 509). Na poesia epinicial, as trevas representam o esquecimento – conceitualizado na Grécia arcaica como um “acobertamento” (lḗthes) –, daí o uso, quase etimológico de a-letheía no exórdio dessa canção. Nesse sentido, são paradigmáticas as gnomas de Píndaro na Nemeia 1.44-45 e, num sentido ainda mais universal, na N. 7. 18-19: ταὶ μεγάλαι γὰρ ἀλκαί/ σκότον πολὺν ὕμνων ἔχοντι δεόμεναι.

vv. 15-19: βρύει μὲν... πάροιθε ναοῦ – Baquílides dá exemplos da generosidade, hospitalidade e piedade de Hierão. O primeito μέν rege βρύει e βρύουσι, e o paralelo é traçado com λάμπει δ(ὲ), que faz a transição da cena para o templo de Delfos (Maehler, 1982, p. 45; 2004, p. 89). Por isso, não há necessidade, como propõe Jebb (1905, p. 255), de um δέ logo após βρύουσι. Segundo Kenyon (1897, p. 18, n. 16), há uma sutil diferença no uso de diferentes casos com βρύω: com o dativo, ele significa “sobejar”, ao passo que com o genitivo, ele significa, “estar cheio de” (também Maehler, 1982, p. 45; 2004, p. 89). Na tradução preferi manter o verbo e variar as regências, como no grego. Marmarygḗ é usado para descrever o faiscar da luz que incide sobre objetos reflexivos ou que se movimentam rapidamente (cf. port. “mármore”). Nesse caso, como as trípodes estavam ao lado do templo, à esquerda de quem ascende vindo do leste, o sol, incidindo sobre elas, deveria ofuscar e, depois, revelar (daí lámpei hypó) suas formas e inscrições (Kenyon, 1897, p. 18, n. 17; Maehler, 1982, p. 45; 2004, p. 89-90).

v. 18: ὑψιδαιδάλτωνHypsidaídaltos não significa, como queria Jebb (1905, p. 255), “curiously wrought to a certain height ‘from the ground’”, nem é correto que “ὑψι- means ‘on high’”, como comprovam compostos em que ὑψι- denota “sublimidade”, “altivez”, viz., ὑψηλόφρων (“de elevada mente”), ὑψήνωρ (“que exalta os homens”), ὑψηλοφανής (de sublime aparência), ὑψιάγυια (“de altivas ruas”, Baq. 12.71) etc. Traduzo, portanto, como “sumamente ornado”, isto é, “ornado com a mais alta arte”, pelo que cunhei o neologismo “sumidedáleo”.

v. 18: τριπόδων σταθέντων – Refere-se às duas bases de calcário descobertas em 1897 em Delfos pela equipe da Escola Francesa de Atenas liderada por H. Homolle (1897, p. 212 s.). A inscrição de A comemora a vitória de Gelão na Batalha de Himera (479), ela diz Γέλον ὁ Δεινομέν[εος]/ ἀνέθεκε τὀπόλλονι/ Συραϙόσιος // Τ[ον τρίποδα καὶ τὲν νίκεν ἐργάσατο/ Βίον Διοδόρο υἱὸς Μιλέσιος. Na base B, uma adição posterior segundo Homolle, podia-se ler somente ]νεος ἀνέθεκε .ελ/ hεπτὰ μνᾶι e a reconstrução de Homolle (1897, p. 214), [Ηιάρον hο Δεινομέ]νεος ἀνέθεκε [h]ε[λ-/ ... τάλαντα... ] hεπτὰ μναῖ (“Hierão, o filho de Dinômenes dedicou, pelos helenos(?)[…] talentos […] sete minas”.). Sabemos, por meio de Diodoro Sículo (11.26.7), de Ateneu (Deipnosophistai, 6. 231 s.), que se apoia na autoridade de Fânias de Éressos (discípulo de Aristóteles) e das Filípicas de Teopompo (séc. iv), que Gelão, e talvez também Hierão, teriam dedicado trípodes em Delfos. A reconstrução de Homolle e sua atribuição a Hierão não pode, no entanto, ser tida como certa, e é desacreditada por Page (1981, p. 247). A Antologia Palatina (6.214; xxxiv fge) nos legou um outro epigrama que poderia pertencer a um ou aos dois outros pedestais (C e D). Ele diz: Φημὶ Γέλων’, Ἱέρωνα, Πολύζηλον, Θρασύβουλον,/ παῖδας Δεινομένευς, τοὺς τρίποδας θέμεναι/ ἐξ ἑκατὸν λιτρῶν καὶ πεντήκοντα ταλάντων/ δαρεικοῦ χρυσοῦ, τᾶς δεκάτας δεκάταν. No entanto, o escólio 152b à P. 1 de Píndaro dá-nos o segundo dístico como βάρβαρα νικήσαντας ἔθνη, πολλὴν δὲ παρασχεῖν/ σύμμαχον Ἕλλησιν χεῖρ’ ἐς ἐλευθερίην.

vv. 19-21: τόθι μέγιστον ἄλσος (…) Δελφοὶ διέπουσι – Baquílides prepara, com esses versos e a gnoma que os arremata, a transição da ode para o mito. Delfos era administrada (diépousi) pela Liga dos Anfictiões (“os que habitam em volta”), que se reuniam duas vezes por ano, na primavera e no outono, em Antela, no templo de Deméter, perto de Termópilas, e que foi seu primeiro centro. Depois da Primeira Guerra Sagrada (594/ 593), a liga anfictíona torna-se Délfica, e tem no Templo de Apolo o seu centro.

vv. 21-22: θεὸν θ[εό]ν τις (…) ἄριστος ὄλβων –Hesíquio (θ, 300) explica que “era o costume para os que oravam, quando se iniciava algo, dizer theós”. Maehler (1982, p. 46; 2004, p. 90) nota que a repetição é comum em preces e invocações cultuais, como no fragmento de Diágoras (PMG 738.1), θεός θεός πρὸ παντὸς ἔργου βροτείου/ νωμᾷ φρέν’ὑπερτάταν. Ele cita ainda Eurip. Hércules, 772; Andrômaca, 1031; e Ésq. Sete contra Tebas, 566, muito embora aqui não se trate de uma invocação e o contexto seja diverso da passagem baquilidiana. ἀγλαϊζέθὠ: trata-se de uma sinecfonese para άγλαϊζέτ’ὁ, como em Safo 1.11 Voigt, ὠράνωἴθερος. Cf. ἀγλαϊζέθὠ σὺν Ἀγ]λαίαι do v. 6 e com o ἀγλαΐζεται δὲ καὶ μουσικᾶς ἐν ἀωτῷ, da O. 1.22-3 de Píndaro. ἄριστος ὄλβων: recorre o elemento aristo- com que a ode se inicia, e o substantivo ólbos aparece em posição espelhada em relação àquela do mesmo verso da estrofe correspondente. De fato, aqui se fecha a composição em anel, em que a “dita” (ólbos no sentido subjetivo) de Hierão é atribuída à sua piedade ao dedicar a sua fortuna (ólbos, em sentido objetivo) para honrar o deus de Delfos, Apolo, o que forma a ponte perfeita para o relato mítico de Creso que virá no epodo.

v. 23: ἐπεί ποτεEpeí aqui é causal; ao passo que poté sinaliza a mudança de cena para o mundo mítico dos reis e heróis do passado. O relato mítico-histórico é dado por Heródoto 1.86-91 e me escusarei, dado o exíguo espaço deste artigo, de detalhá-lo, mas basta dizer que o relato de Heródoto difere em pontos importantes do de Baquílides. Lá, Creso é condenado à pira por Ciro; é Apolo que, sozinho, apaga o fogo da pira e, por fim, Creso torna-se conselheiro de Ciro, em vez de ser transportado para a terra dos hiperbóreos. Em especial, a questão do ólbos, na versão de Heródoto, tem um importante papel na fala que Creso dirige a Ciro do topo de sua pira.

vv. 23-4: δαμασίππου/ Λυδίας ἀρχαγέταν – Como nota Maehler (1982, p. 46; 2004, p. 90), citando o fr. 14.3 de Mimnermo, Λυδῶν ἱππομάχων, essa cidade era famosa por seus cavalos e cavaleiros, algo também atestado por Heródoto, 1.79.3. ἀρχαγέταν aqui ecoa o πλείσταρχος do v. 12.

vv. 25-6: εὖτε τὰν πεπ[ρωμέναν Ζηνὸς τελέ[σσαντος κρί]σιν – A hipótese de Kenyon (1897, p. 20), κτίσιν, é muito atrativa, sobretudo em virtude do paralelo com a O. 13.116-18 τελεῖ δὲ θεῶν δύναμις καὶ τὰν παρ’ ὅρκον/ καὶ παρὰ ἐλπίδα κού-/φαν κτίσιν. Infelizmente, essa é a única passagem em que o termo é empregado num sentido semelhante ao que teria no texto de Baquílides. A proposta de Jebb e Sandys, τίσιν (apud Kenyon, 1897, p. 20, n. 26), que adotei no texto e tradução, é ainda melhor, porque reaparece nas palavras da Pitonisa aos emissários de Creso, em Heródoto (1.91.1), de que sua ruína seria uma expiação (τίσις) pelo crime de Giges. Τίσις também evoca os versos de Álcman (1.36-9 PMGF), de temática semelhante, segundo o qual ἔστι τις σιῶν τίσις·/ ὁ δ’ ὄλβιος, ὅστις εὔφρων/ ἁμέραν [δι]απλέκει/ ἄκλαυτος. É, no entanto, a hipótese de Weil (1898, p. 46, n. 5), κρίσιν, que aparece hoje na edição de Maehler (2003). Os paralelos com Ésquilo, Agamêmnon, 1288, ἐν θεῶν κρίσιν e com o treno fr. 131b.6 de Píndaro, δείκνυσι τερπνῶν ἐφέρποισαν χαλεπῶν τε κρίσιν parecem estabelecer um bom antecedente para esse suplemento, muito embora o contexto nesta ode (o crime de Giges) o desqualifique.

v. 28: χρυσά[ορος – O epíteto aparece in lacuna. Kenyon (1897, p. 21, n. 28) propusera χρυσάρματος ou χρυσόθρονος, bastante raros, sendo o segundo mais associado a divindades femininas. Baquílides usa χρυσάρματος para se referir à deusa Atena (13.157), e Píndaro, para se referir à Lua (O. 3.35), a Cástor (P. 5.10/11), aos Eácidas (I. 6.27), sendo que, na P. 9.9/11, Apolo leva Cirene para a Líbia numa carruagem de ouro (χρυσείῳ… δίφρῳ). Já χρυσάορος é diversamente interpretado, desde a Antiguidade, como “aurigládio” ou como “auribálteo”. Segundo o LSJ, s.v., o sentido primitivo de ὄαρ é “talabarte”, “boldrié”, “bálteo”, ou seja, uma alça usada para carregar uma arma à ilharga, normalmente uma espada (daí seu outro significado, por metonímia), mas também podia ser usada para carregar um carcás ou um instrumento musical como a lira. O argumento do escólio à Ilíada 15.256, onde Apolo é descrito com o mesmo epíteto, parece-me convincente para traduzir o adjetivo composto por “auribálteo” ao invés de “aurigládio”: τὸν χρυσοῦν ἀορτῆρα περὶ τὴν κιθάραν ἔχοντα (…) ἤτοι – ἁγνὸς γὰρ ὁ θεός. O escólio também cita o treno fr. 128c S.-M. de Píndaro, no qual Orfeu é descrito com o mesmo epíteto, que dificilmente poderíamos interpretar como “aurigládio” naquele contexto.

v. 29: ἄελπτον ἆμαρ – Jebb (1905, p. 257) traduz por “unlooked-for day”, e Cairns (2010, p. 203) comenta que “Croesus’ thoughts were typically quite different from his apparent fate”. A rigor, todos os dias do futuro são “unlooked-for” para os humanos, muito embora Zeus já o tivesse predestinado para a ruína pelo crime de Giges (Heródoto, 1.91). Como vamos ficar sabendo pelo proêmio (v. 75 s.), as esperanças humanas estão fadadas a serem frustradas; exceto aquela relativa à morte, sempre certa. Festa (Baquílides, 1898, p. 13) traduz por “infausto”, Romero (Baquílides, 1988, p. 87) por “desperado dia” e há, de fato em ἄελπτον, também uma conotação secundária de “desesperançoso dia”.

v. 32: χαλκ[ο]τειχέος – Outro unicismo. Jebb (1905, p. 258) nota que Baquílides, à moda épica, forma compostos tanto com χαλκεο- como com χαλκο-, mas Píndaro, só com o segundo. O elemento -τειχής deve se referir, por metonímia, aos portões de bronze mais do que aos muros ou às paredes do pátio. O bronze é tipicamente empregado para descrever a morada mítica dos deuses, como a de Hefesto na Ilíada 18.369-71, e a de Alcínoo e de Eólo, na Odisseia 7.86 e 10.3-4 (Maehler, 1982, p. 47; 2004, p. 91). Aqui, a menção ao bronze parece evocar associações mais sinistras, seja pela sua cor, similar à do “do terrível fogo” que irá luzir com “brilhante (…) força” (vv. 53-4), seja pelo fato de estar ligado à guerra e à morte. Como paradigma do primeiro caso, temos a “raça de bronze” de Hesíodo nos Trabalhos e Dias, vv. 140 s., uma raça que Ἄρηος/ ἔργ᾽ ἔμελεν στονόεντα καὶ ὕβριες. Os Aqueus são descritos por Homero como χαλκοχιτώνες (e.g., Il. 2.47) e Píndaro (P. 5.109) os descreve como χαλκοχάρμαι, i.e., “erigaudentes”, ou (I. 4.108) χαλκοάραι, “eriindutos”. A propósito, esses versos são reminiscentes dos versos iniciais do fr. 140 Voigt de Alceu: μαρμαίρει δὲ μέγας δόμος/ χάλκῳ, παῖσα δὲ Ἄρης κεκόσμεται στέγα/ λάμπραισι κυνίαισι κτλ. A associação com a guerra transiciona facilmente para uma com a morte, pois o bronze é δαμασίμβροτος em Baquílides, Epin. 13.17. Segundo Hesíodo (Teogonia, 726-33), o Hades, para onde vão os homens “feridos pelo bronze” (fr. 204.118), é circundado por um muro de três camadas desse material, com que também são feitos seus portões de acesso. O “sono da morte” de Ifidamas na Ilíada 11.41, é um χάλκεον ὕπνον. A própria Morte é descrita por Hesíodo, na Teogonia, 764-5, como tendo um χάλκεον (…) ἦτορ. Cairns (2010, p. 203) nota que a magnificência dos portões (ou muros) de bronze do pátio palaciano de Creso contrasta com o “xilino construto” da pira onde ele se assenta para a autoimolação.

vv. 33-6: σὺ[ν ἀλόχωι] τε κεδ[νᾶι (…) ἀείρας – O desespero da esposa e das filhas constrasta com a augusta e resignada atitude do rei (Maehler, 1982, p. 48; 2004, p. 92). O adjetivo ἄλα[στον, que aqui, como na Od. 14.174, significa “inconsolável”, evoca o ἄελπτον do v. 29 como “desesperançoso”: as filhas de Creso não podem ser consoladas porque não podem ser salvas e, frente à total desesperança de seu destino, perdem todo o sentido de compostura. A posição que Creso assume, levantando as mãos para o céu, é precatória. Aqui, αἰπὺν, “precípite”, “árduo”, reforça não apenas a altura do céu, que normalmente é descrito como βαθύς, mas também seu distanciamento e inacessibilidade.

v. 37: γέ]γωνεν·ὑπέρ[βι]ε δαῖμον – Cairns (2010, p. 200; 204) nota como toda a ode é pontuada por gritos – de espanto, alegria, tristeza. Aqui, Creso “brada” (γέγωνα) contra o daímōn; no proêmio, na mesma posição métrica, o povo grita (θροέω) triseudaímōn; as filhas de Creso lançam lamentos (δύρομαι) ao subir na pira; depois, gritam (κλάζω), ao verem o fogo ser aceso; o poeta vozeia (γαρύω) sua sabedoria, no exórdio. O daímōn, segundo Jebb (1905, p. 258-9) e Maehler (1982, p. 47; 2004, p. 92), é Zeus e não Apolo, muito embora o LSJ, s.v. ὑπέρβιος atribua o vocativo ao segundo. A escolha é difícil, a despeito da certeza de Maehler. Se por um lado é Zeus que vem em socorro de Creso, por outro, a menção à ingratidão divina pelas oferendas enviadas a Delfos faz pensar em Apolo, uma ideia reforçada pelo rancor demonstrado por Creso em Heródoto (1.90.4) ao indagar da Pitonisa, e, portanto, de Apolo, εἰ ἀχαρίστοισι νόμος εἶναι τοῖσι Ἑλληνικοῖσι. Como Cairns (2010, p. 206), acredito ser mais provável que, aqui, δαίμων tenha a acepção de “destino”, como glosa o LSJ, s.v. Como esclarece Chantraine (1968, s.v.), “le terme s’emploie chez Hom. pour désigner une puissance divine que l’on ne peut ou ne veut nommer, d’oú les sens de divinité et d’autre part de destin”. Uma leitura ainda mais provável frente ao que Creso, ponderando sua desgraça, diz para Ciro em Heródoto (1.87.4): ἀλλὰ ταῦτα δαίμοσί κου φίλον ἦν οὕτω γενέσθαι. O sentido do adjetivo ὑπέρβιος, aqui empregado pejorativamente dado o contexto (Cairns, 2010, p. 205), preserva tanto a noção de “fortíssimo” (ὑπερφυὴς, μεγαλοφυὴς), “excessivamente violento” (ἄγαν βιαίως), quanto de “arrogante”, “altivo” (ὑπερήφανος), daí minha tradução por “soberbo”, que em português tem uma polissemia semelhante, ver Houaiss, s.v.

vv. 38-9: πο]ῡ θεῶν ἐστιν χάρις;/ πο]ῡ δὲ Λατοίδας ἄναξ; – Cf. um sentimento semelhante expresso por Pílades em Ésq. Coéforas, v. 900-2, ποῦ δὴ τὸ λοιπὸν Λοξίου μαντεύματα/ τὰ πυθόχρηστα, πιστά τ’ εὐορκώματα;/ ἅπαντας ἐχθροὺς τῶν θεῶν ἡγοῦ πλέον, e Eur. Troianas, v. 428, ποῦ δ’ Ἀπόλλωνος λόγοι;. O exaspero humano diante da aparente falibilidade dos editos divinos, mormente oriundos de uma má interpretação das palavras de um oráculo, é um tópos na tragédia. Nesse caso, a resposta da Pitonisa à inquirição de Creso em Heródoto, 1.90.4 s., foi a de que (a) nem mesmo os deuses podem lutar contra o destino – e o de Creso fora selado pelo crime de Giges há cinco gerações – e que, ademais, (b) Creso, em sua prepotência, não soubera interpretar as palavras de Lóxias.

vv. 40-4: Ἀλυά[τ]τα δόμοι (…) (…) χρυσο]δίνας – Esses versos estão muito mutilados e, ainda que Jebb (1905) tenha provido suplementos meramente exemplificativos, a maioria deles foi acatada pelos editores e comentadores posteriores. Aliates era o pai de Creso e reinou por volta de 635-585, como o quarto monarca da dinastia Mermnada. Jebb (1905, p. 259) ressalta que a prominência dada a Aliates deve-se ao fato de que foi ele, e não Giges, que tornou a dinastia verdadeiramente imperial. No entanto, parece-me que Baquílides evita nomear Giges em virtude do crime de traição por ele cometido, que, nas palavras da Pitonisa em Heródoto (1.87), serão a causa da derrocada de Creso. Dessa forma, Baquílides sutilmente nos mostra como Creso não apenas interpretara mal as palavras de Apolo mas também ignorava, ou pretendia ignorar, os crimes cometidos pelo seu antepassado, para o qual certamente haveria uma tísis dos deuses. Πυθωνόθε]ν: Pito é como se chamava o local onde ficava o santuário de Delfos, pois ali Apolo matara o dragão Píton, cujo corpo deixara para apodrecer (pythéō). O epíteto χρυσο]δίνας, in lacuna, seria perfeito para descrever o rio Pactolo, famoso pelo ouro dissolvido em suas águas.

vv. 45-6: ἀεικελίως γυναῖκες/ ἐξ ἐϋκτίτων μεγάρων ἄγονται – Cairns (2010, p. 206) nota como a violência e o rapto das mulheres lídias é o ponto culminante da desonra de Creso, que prefere suicidar-se, levando consigo a esposa e as filhas, a vê-las desonradas pelo inimigo. Para esse sentimento na literatura grega ele cita Il. 6.448-65 (a fala de Heitor para Andrômaca), 9.594 (Cleópatra para Meleagro), Od. 16.106-9 = 20.316-19, onde vemos a indignação de Odisseu e Telêmaco em face do tratamento dispensado às servas do palácio.

v. 47: τὰ πρόσθεν [ἐχ]θρὰ φίλα θανεῖν γλύκιστον – O assíndeto é severo, mas adequado aos últimos estertores de um homem já cansado e vencido. Mantive-o em minha tradução. Logo acima de ]θρὰ φίλα, o escriba acrescentou uma glosa explicativa, νῦν, que não deveria, como bem explica Kenyon (1897, p. 22, n. 47), fazer parte do texto original. Deve-se entender que o “outrora odiado” é a morte, a qual, na presente situação, torna-se a única saída digna e, de fato, a mais gentil frente ao prospecto da “escravidão multilacrimosa”.

vv. 48-9: τόσ’εἶπε, καὶ ἁβ[ρο]βάταν (…) ξύλινον δόμον – τόσα indica que as últimas palavras de Creso são ditas com muito esforço, enfatizando o assíndeto do v. 47. ἁβ[ρο]βάταν aparece pela primeira vez em Ésq. Persas v. 1072, e depois, aqui. Maehler (1982, p. 50, n. 20; 2004, p. 93) supõe que Baquílides tenha assistido à reperformance da peça em Siracusa (ver Schol. Arist. Rãs, 1028) e tomado o termo emprestado para o escravo lídio, chamado Êutimo na ânfora de Míson (Louvre Inv. G 197). Para uma discussão detalhada do sentido do substantivo na peça de Ésquilo, veja Garvie (2009, p. 369-70). Esse andar cuidadoso e delicado dos escravos asiáticos fora estendido, a partir do tópos já bem estabelecido da ἁβρότης, ou “delicadeza” oriental, para todos os asiáticos, contrastando sua (percebida) malemolência com o andar firme e decidido dos gregos. Mais tarde, Eurípides (Troianas, v. 820) usará uma locução equivalente para descrever o andar de Ganimdes como escanção dos deuses: ὦ χρυσέαις ἐν οἰνοχόαις ἁβρὰ βαίνων. Maehler (2004, p. 93) nota que a expressão ξύλινον δόμον é praticamente a mesma usada por Píndaro na P. 3.68, para descrever a pira sobre a qual o corpo de Corônis é queimado, ξύλινον τεῖχος. Neste caso, δόμος preserva a acepção de δέμω, “construir”, daí minha tradução por “construto”. Xilino, “de madeira”, já está registrado no VOLP. Na verdade, toda essa passagem, inclusive a intervenção de Zeus, é reminiscente da citada cena da Pítica 3. 53-54.

vv. 51-2: προφανὴς θνα-/τοῖσιν ἔχθιστος φόνων – Maehler (1982, p. 51; 2004, p. 93) lembra que no Prometeu de Ésquilo (250) e no Górgias (523d) de Platão, Prometeu é creditado como tendo impedido os mortais de preverem sua própria morte. Quando pensamos que Hierão morreu depois de um ano (se tanto) da performance dessa ode, esses versos soam algo lúgubres. A postura comedida de Creso frente à sua autoimolação e à imolação de sua própria família, porém, deveria ter sido pensada como emulada pelo tirano. Ela é contrastada com o comportamento descomedido de sua mulher e filhas. Cairns (2010, p. 206-7), no entanto, tem razão ao salientar que, ao passo que Creso busca, de sua própria vontade, a morte (θάνατος), o que as filhas temem é o assassinato, isto é, a morte na mão de outrem (φόνος). Maehler (1982, p. 51; 2004, p. 93) nota que a opinião em contrário, isto é, de que é melhor saber da morte iminente, a fim de se preparar, é atestada pela primeira vez no Teseu de Eurípides (fr. 964 Nauck; trad. por Cícero em Tusc. 3.13.28-9), depois em Aristóteles, Ética Nicomaqueia, 3.117a18-22.

vv. 53-56: ἀλλ’ ἐπει δεινοῦ πυρὸς (…) ξανθὰ[ν φλόγα – Cf. essa passagem com a P. 3.66-79 s. de Píndaro em minha tradução e comentário em Brose (2022). O epíteto [μελαγκευ]θές, muito embora in lacuna, parece muito apropriado ao sentido e, além disso, é atestado no fr. 29, onde Odisseu é descrito como μελαγκευθὲς εἴδωλον ἀνδρὸς Ἰθακησίου. Como nota Maehler (1982, p. 51; 2004, p. 93), Zeus, que determinara a destruição de Sárdis (vv. 25-6), reaparece agora para salvar Creso da morte. Cairns (2010, p. 207) assinala a paradoxal inversão da convenção epinicial segundo a qual “luz é bom” e “escuridão é ruim” nos versos [μελαγκευ]θὲς νέφος/ σβέννυεν ξανθὰ[ν φλόγα. No entanto, aqui, como na P. 3, o fogo poderia aludir à febre que acometia Hierão, o que validaria uma (apenas aparente) quebra da fraseologia poética do epinício.

vv. 57-8: ἄπιστον οὐδέν (…) τεύχει – Essa gnoma pode ter sido pensada como uma consolação a um Hierão muito doente: a cura da doença não seria impossível se os deuses assim desejassem. Se minha interpretação estiver correta, ela se adequa àquilo que Píndaro critica no proêmio da P. 3 como um “vulgar... dito” (κοινὸν… λόγον), pois seria inútil, segundo o tebano, e talvez até ímpio, rezar por coisas impossíveis; ao contrário, seria melhor entender que, para cada alegria, os deuses dispensam duas tristezas, e que o melhor é suportar, reprimindo essas e exteriorizando aquelas (P. 3.141 s.). Da famosa gnoma da P. 3.109-110, ficamos sabendo que não se deve almejar uma vida imortal, mas, em tudo aquilo que nos é possível fazer, enquanto humanos, buscar o ápice sempre, como Hierão fizera. Muito embora haja gnomas semelhantes a ἄπιστον οὐδέν, ὅ τι θ[εῶν μέ]ριμνα/ τεύχει em Píndaro, elas parecem se restringir aos feitos dos heróis do passado e não são, como aqui, diretamente aplicáveis ao laudado. Na Olímpica 13.117-19, por exemplo, o aforismo τελεῖ δὲ θ<εῶ>ν δύναμις καὶ τὰν παρ’ ὅρκον καὶ παρὰ ἐλπίδα κούφαν κτίσιν se aplica a Belerofonte, ao passo que na Pítica 10.76-8, ἐμοὶ δὲ θαυμάσαι/ θεῶν τελεσάντων/ οὐδέν ποτε φαίνεται ἔμμεν ἄπιστον, ele se refere a Perseu.

vv. 58-60: τότε Δαλογενὴ[ς Ἀπό]λλων (…) κατ[έν]ασσε κούραις – Segundo Jebb (1905, p. 261), a escolha do epíteto Δαλογενής seria tanto uma forma de favorecer o santuário jônio do deus em Delos quanto de fazer uma alusão ao fato de que os hiperbóreos teriam sido os primeiros a enviar oferendas para lá (Heródoto, 4.33-5). A transposição de Creso para a terra dos hiperbóreos não equivale a uma imortalização, pois os hiperbóreos não são nunca descritos como imortais, muito pelo contrário. Heródoto (4.34) nos conta que as duas meninas hiperbóreas, Hipéroque e Laódice, encarregadas de trazer oferendas para Delos, teriam morrido nessa ilha, o que fez com que os hiperbóreos deixassem de mandar emissários, enviando suas oferendas através de uma rede de entrepostos. Mesmo Píndaro, na Pítica 10.64-8, não chega a dizer que os hiperbóreos eram imortais, mas que “[n]em doenças nem velhice destrutiva/ sua sacra estirpe oprime. De fainas/ e de conflitos longe// habitam, tendo escapado/ à justiceira Nêmesis”, uma descrição semelhante àquela de Hesíodo, em Trabalhos e Dias, v. 170 s., e à dos Campos Elísios homéricos (Od. 4.536). A terra dos hiperbóreos também não pode ser equivalente à Ilha dos Bem-aventurados da O. 2.123 s. de Píndaro, para onde iriam os espíritos purificados dos mortos. A introdução dos hiperbóreos, aqui, mais parece servir a dois propósitos principais: primeiro, como paralelo entre Hierão e um herói da Quarta Idade hesiódica, na qual Baquílides parece inserir uma figura histórica como Creso; e para enfatizar, por associação, a relação de Creso com Apolo (assim, Cairns, 2010, p. 208), devido à devoção especial desse povo ao deus, como ficamos sabendo pela O. 3.28-9 (δάμον Ὑπερβορέων… Ἀπόλλωνος θεράποντα). O epíteto τανίσφυρος, aplicado somente ao sexo feminino, literalmente significa “de longos tornozelos”, que, poeticamente, no entanto, deveria significar, por metonímia, as pernas longas e finas de donzelas não acostumadas ao trabalho físico, daí minha tradução por “pernalteiras”.

vv. 61-66: δι’ εὐσέβειαν (…) Λοξί]ᾱι πέμψαι βροτῶν – A piedade (εὐσέβεια), aqui enfatizada no início da antístrofe, é qualidade em comum entre o exemplo mítico e o laudandus e, portanto, o ponto de inflexão que permite ao poeta voltar à ocasião da canção. A restritiva ὅσο[ι <γε> μὲν ’ Ελλάδ’ ἔχουσιν pode servir tanto para evitar a comparação com os hiperbóreos e com Creso, que vivia na Ásia, quanto para suavizar uma hipérbole, que, talvez, poderia ser sentida como hibrística. Muito embora Maehler (2003, p. 11) grafe ὅσο[ι <γε> μὲν como uma adversativa, Jebb (1905, p. 262) tinha razão ao dizer que “μέν, added to γε here, merely emphasizes the limitation (…). This is not the Ionic γε μέν in the sense of γε μήν (…), which occurs below, in v.90”.

vv. 67-71: εὖ λέγειν πάρεστιν (…) ἔχοντ]α Μουσᾶν – Segue-se o tema do χρέος, ou “dívida epinicial”, o dever do poeta de louvar belos feitos atléticos. Esse tema é habilmente entrelaçado àquele do φθόνος, o rancor/ inveja a que estava sujeito qualquer um que obtivesse tamanha glória, a maior, na verdade, a que um grego podia ambicionar. O verso τις μ]ὴ φθόνωι πιαίνεται evoca imediatamente o “cevado [i.e, Arquíloco]/ com pesadas palavras de ódio” (ἔχθεσιν πιαινόμενον) da P. 2.86-91. A inferência é clara: qualquer um que não louve Hierão o faz unicamente por inveja/ rancor, um domínio alheio à poesia laudatória, mas apropriado às invectivas de Arquíloco. Hierão apresenta ainda três outras qualidades normalmente invocadas num epinício: é um tratador de cavalos amado por um deus (a agência divina é sempre indispensável à vitória), um rei chancelado por Zeus e um cultor da arte das Musas. Essa descrição é praticamente a mesma daquela dos vv. 18-26 da O. 1. A ênfase no trato com os cavalos é típica de epinícios que celebram vitórias equestres, cf., por exemplo, O. 4. 24, N. 9.75-6, I. 4. 23.

vv. 72-76: ὡς δ’ ἐν] Μαλέᾱι ποτ[έ (…) ἐφαμ]ερίων – Versos muito fragmentados e, como diz Jebb (1905, p. 263), “all that is certain as to the sense [...] is that they formed a transition to the frame of Hieron’s achievements (69-71) to that of the brevity and insecurity of life (75-92)”. O suplemento de Blass, aceito por Jebb (1905, p. 263), que lê δει]μαλέᾳ, em vez de Μαλέᾳ no v. 72, não me parece convincente por causa do contexto imediato do poema, do enquadramento histórico em que se dá, e, sobretudo, da gnoma que se seguirá nos vv. 75 s. Como não haveria espaço para discutir essa opção de leitura, remeto os interessados ao Apêndice de Jebb à sua edição de Baquílides (Jebb, 1905, p. 461-63). Um primeiro argumento para se ler “Málea”, é a relevância desse cabo para o culto de Apolo, pois, de acordo com Tucídides (7.26.2) e Pausânias, (3.12.8), havia lá um templo de Apolo Akritas, isto é, o Apolo Guardião da Fronteira. O Cabo Málea, desde a Odisseia (9.64-81), sempre foi famoso pelas suas águas traiçoeiras e as frequentes e rápidas mudanças de tempo e de vento (τὰς ἀντιπνοίας, Estrabão, 8.6.20). Ver também a descrição de Estácio na Tebaida, 2.32-54. Segundo Heródoto (4.179.2), é ao cruzar o Cabo Málea que Jasão é desviado de seu curso e vai parar na Líbia. Por tudo isso, o cabo tornou-se um dos locais mais temidos pelos marinheiros e viajantes, a ponto de dar origem ao provérbio Μαλέας δὲ κάμψας, ἐπιλάθου τῶν οἴκαδε. Daí, inclusive, a preferência da maioria dos navios por aportar em Corinto e seguir por terra para o oeste. Dessa forma, o sentido poético dessa passagem, que sempre foi pouco explorado pelos comentadores, deve ser encontrado no fato de que esse cabo era o ponto axial na passagem da parte oriental da Grécia para a ocidental e, portanto, pode ser entendido como uma metáfora para a “segunda metade” ou até mesmo “o ocaso” da vida, de uma forma muito semelhante à expressão “dobrar o cabo da Boa Esperança” para dizer que alguém já está em seus últimos anos.

vv. 75-6: πτερ]ό͜εσσα δ’ἐλπὶς ὑπ[ολύει ν]όημα/ ἐφαμ]ερίων – O caráter da elpís, a “esperança” na poesia grega é, como aqui, frequentemente ambíguo, tendendo a ser mais negativo do que positivo na lírica arcaica. Jebb (1905, p. 263), talvez influenciado por essa tendência, suplementou a lacuna com δολό]εσσα, “dolosa”. Contudo, a imagem da elpís desagrilhoando o pensamento das preocupações presentes para os “carregar nas asas da imaginação” pareceu-me mais poética e coerente com a imagética arcaica. No mito de Pandora, contado por Hesíodo em Trabalhos e Dias, vv. 90-105, a elpís chega aos homens no mesmo jarro em que Zeus depositara todos os outros males, mas, ao contrário daqueles, que voam ao abrir-se da tampa, a elpís fica nela presa e lá permanece. Um pouco mais adiante, nos vv. 498 s., Hesíodo nos adverte: “Amiúde varão inativo, que fica junto à vã esperança (κενὴν ἐπὶ ἐλπίδα)/ carecendo de recursos, de vilezas fala ao ânimo” (trad. Werner, 2013, p. 63), acrescentando que “uma esperança que não é boa (ἐλπὶς δ’οὐκ ἀγαθή) de varão carente cuida”. Ambos os versos pressupõem que há tanto uma elpís que não é vã quanto, também, uma que é boa. Para uma apreciação crítica desses versos de Hesíodo com uma bibliogradia ad loc., ver sobretudo West (1978, p. 169 s.) e Verdenius (1985, p. 66 s.). Em resumo, West (1978, p. 169 s.) tende a ver elpís como um bem dado pelos deuses ao homem, um conforto frente a tantos males, ao passo que Verdenius (1985, p. 70) a vê sobretudo como uma “expectativa de infelicidades”. Talvez, porém, elpís seja melhor entendida se levarmos em conta que Hesíodo se coloca dentro da Idade de Ferro, uma idade, como já notou Vernant (2007, p. 261; 272 s.), marcada sobretudo pela mistura do bem e do mal, cuja distinção é difícil ao homem. É somente a elpís, de bens ou de males, que pode fornecer ao homem, destituído do méga noûs dos deuses, alguma guarida contra as desgraças. Como tudo o mais ligado à raça humana, a elpís pode ser usada sábia ou insabiamente. O homem sábio entende que o seu mikrós noûs é suficiente apenas para ver, entender e prever as coisas que acontecem num único dia (cf. Semônides, 1.1-7 W2), e não ousa planejar nada além disso. Ademais, como salientará Apolo nos versos seguintes, tudo é possível num mundo em que o bem e o mal não podem ser previstos. ἐφαμ]ερίων: a leitura in lacuna é controversa (sobre isso, Cairns, 2010, p. 209), mas me parece segura, apesar da repetição no v. 73. Distanciando-me da tradição aqui, traduzo como um genitivo neutro plural com sentido ablativo, consoante à interpretação precedente e ao elogio feito a Hierão pelo poeta no contexto imediatamente anterior (v. 76, καιρί]α σκοπεῖς), “mas tu do oportuno cuidas” e, parece-me a inferência implícita, “não te deixas levar pela imaginação, buscando coisas que são impossíveis”. Deve-se notar que a glosa do P.Oxy. 2367, do séc. II (M, no texto de Maehler (1982; 2003), que o julga “very pedestrian and on a quiet modest level” (Maehler, 2004, p. 27) aos vv. 75-6, “ἡ πτερ[όεσσα ἐλπὶς δι]αφθείρει τὸ [τῶν ἀνθρώπων ν]όημα”, não nos ajuda a definir a questão, já que “dos homens” (anthrṓpōn) está em lacuna.

vv. 76-77: ὁ δ’ ἄναξ[ ]τος υἷι – Barret (2007, p. 211) contesta com razão o artigo antes de ἄναξ e propõe ler ὁ δ’ἀναξιφόρμιγξ/ ἑκαβόλος, em vez de ὁ δ’ ἄναξ [Ἀπόλλων/ ὁ βουκό]λος de Kenyon (1897, p. 26), que registra ainda a sugestão de Jebb, ἑκάβολος, muito embora esse tenha mantido ὁ βουκό]λος em sua edição de 1905. As ocorrências de ὁ ἄναξ + nome próprio apontadas por Cairns (2010, p. 210) são as exceções que confirmam a regra. Assim, parece-me que a sugestão de Barret de que um composto com ἀναξι- (Píndaro O. 2.1 e Baquílides, Epinício 4.7) deva ser restaurado aqui, está muito bem fundamentada, e, por isso, a adotei no texto grego e na tradução. Na verdade, não deixa de ser surpreendente que ela ainda não goze de ampla aceitação. No que diz respeito à segunda parte, isto é, ao ἑκαβόλος, continuo preferindo a restauração de Kenyon (1897, p. 26), mantida por Jebb (1905), isto é, ὁ βουκό]λος, por me parecer mais adequada ao contexto. O julgamento peremptório de Maehler (1982, p. 54; 2004, p. 95) de que ἑκαβόλος é “the only convincing supplement so far suggested” é exagerado. Como sabemos do prólogo da Alceste de Eurípides, Apolo fora condenado por Zeus a servir de pastor para Admeto, o filho de Féres do v. 77, durante dez anos por ter matado os Ciclopes (ou seus filhos; Ferécides, FGrH I F 35). Maehler (1982, p. 54; 2004, p. 95) supõe que na Antiguidade possa ter surgido uma coletânea de “Ditos de Admeto” (Ἀδμήτου λόγοι) semelhantes ao poema épico “Ensinamentos de Quíron” (Χείρωνος Ὑποθέκαι) atribuído a Hesíodo por vários autores (ver Hesíodo, fr. 283-5 M.-W). Praxila (séc. V), ao menos, no fr. 749 pmg faz menção a um possível escólio chamado Ἀδμήτου λόγοι. Aparentemente, como argumenta Bowra (1967, p. 376-8), esses ditos/ canções de Admeto teriam um caráter aristocrático, sendo contrapostos, em Aristófanes (fr. 430), por exemplo, à canção democrática dos Tiranicidas. Numa ode a Hierão, esses ditos seriam, então, bastante apropriados.

vv. 78-84: θνατὸν εὖντα (…) κερδέων ὑπέρτατον – Como nota Cairns (2010, p. 210), há um paralelo (mas eu não diria exato) com os vv. 163-5 do Epinício 1: ὁ δ’ εὖ ἔρδων θεοὺς/ ἐλπίδι κυδροτέρᾳ σαί-/νει κέαρ. Maehler (1982, p. 54-5; 2004, p. 95-6) identifica uma intertextualidade interessante com o fr. 256 CGF de Epicarmo (c. 550), οὕτω πειρῶ ζῆν ὡς καὶ ὀλίγον καὶ πολὺν χρόνον βιωσόμενος. Contudo, a fala de Apolo no contexto do poema, que retoma e expande o tema do βραχύς ἐστιν αἰών e o da rápida mudança na fortuna dos homens, parece se aproximar mais, na fraseologia e no sentido, do fr. 244 Poltera (521 pmg) de Simônides de Ceos: ἄνθρωπος ἐὼν μήποτε φήσῃς ὅ τι γίνεται αὔριον,/ μηδ’ ἄνδρα ἰδὼν ὄλβιον ὅσσον χρόνον ἔσσεται/ ὠκεῖα γὰρ οὐδὲ τανυπτερύγου μυίας/ οὕτως ἁ μετάστασις. Os vv. 83-4, ὅσια δρῶν εὔφραινε θυμόν κτλ., provavelmente devem ser atribuídos ao poeta e não a Apolo. Na tradução, resolvi retirar as aspas, preservando essa ambiguidade na atribuição das falas, o que já aparece nos vv. 10 s. Os vv. 83-4 retomam os vv. 21-22 da segunda antístrofe, que pedem que ὅσια, aqui, seja lido com um sentido aproximado de “aproveita o dia com um coração leve, lembra-te tão somente de honrar os deuses”. Segundo Jebb (1905, p. 264), porém, “this is in a higher strain than carpe diem”. Nesse sentido, portanto, a tradução proposta por Maehler (2004, p. 96), “righteous deeds”, fica aquém da dimensão religiosa e cultual lá enfatizada. Curiosamente, na sua tradução de 1982 (Maehler, 1982, p. 67), ele parece ter proposto uma leitura mais próxima do grego, “gottgefällige Taten” (ações apropriadas/ honrosas aos deuses). O τοῦτο γὰρ/ κερδέων ὑπέρτατον tanto coloca na boca do deus a máxima do poeta, expressa nos vv. 21-2, [ὁ] γὰρ ἄριστος ὄλβων, assim fechando a composição em anel que encerra a narrativa mítica de Creso.

vv. 85-90: φρονέ͜οντι συνετὰ γαρύω (…) ἀγκομίσσαι/ ἥβαν – Uma gnoma de transição do mito à ocasião. A afirmação de Maehler (2004, p. 97) de que “[t]he meaning of this sequence of gnomai has eluded most scholars” é um tanto exagerada, e, talvez, mais apropriada à sua própria leitura da passagem, da qual divirjo em pontos importantes. Primeiramente, parece que estamos diante de uma fraseologia formular da poesia epinicial, mais do que de uma imitação pindárica, mas tampouco podemos excluir essa possibilidade, ao menos se dermos algum valor aos comentadores antigos (ver testemunhos 7-10 em Campbell, 1994, p. 105-9), segundo os quais havia uma rivalidade acirrada entre os dois poetas (ver Gentili et al., 2013, p. 50 s.). É preciso lembrar ainda que as odes em que Píndaro usa uma fraseologia muito semelhante a esses versos, a Olímpica 1 e a 3, antedatam o Epinício 3 em, respectivamente, oito e dois anos, pois são de 476 e 470. Não teríamos tempo de discutir essa complexa questão aqui, mas, em resumo, acredito que Maehler (1982, p. 56; 2004, p. 97) acerta ao rejeitar a teoria da “open imitation” de Jebb (1905, p. 264). Ele se equivoca, todavia, ao partir de uma falsa oposição entre a Il. 23.787, εἰδόσι ὑμμ’ἐρέω e a P. 4.252, “εἰδότι τοι ἐρέω”, em suas próprias palavras “you know already what I am going to say”, ao traduzir φρονέ͜οντι συνετὰ γαρύω como “you have to reflect on what I am going to say”, pois o que se segue a essa afirmação de Baquílides são verdades universais, sobretudo a última, segundo a qual só passamos pela juventude uma vez. O sentido de φρονέ͜οντι συνετὰ γαρύω, portanto, não pode ser o mesmo daquela afirmação da O. 2. 150-152, em que Píndaro classifica seus versos como ὠκέα βέλη (…) φωνάεντα συνετοῖσιν, isto é, “setas velozes (…) vozeantes aos expertos” somente, já que aos outros, “de intérpretes se carece” (v. 153-4). Aqui, ao contrário, Baquílides anuncia coisas que são óbvias, imediatamente inteligíveis (ver συνετός, s.v., LSJ, II) a qualquer um: o éter é inconspurcável; a água do mar, ou porque salgada ou porque nunca fica estagnada, nunca estraga; o ouro é uma eterna fonte de alegria (Jebb, 1905, 264; Kenyon, 1897, p. 28) porque incorruptível. Para entender a relação do ouro com o éter e a água neste priamel, é preciso lembrar do paralelo com o fr. 541.3-5 PMG (256.3-5 Poltera) de Simônides, que diz: ὁ δε χρυςὸς οὐ μιαίνεται […] ἀλάθεια παγκρατής. Ou seja, trata-se aqui do elemento ouro, entendido em sua dimensão cósmica e eterna. Píndaro, inclusive, o faz filho de Zeus no fr. 222 S.-M. Por isso, não acredito que se possa tomá-lo como metonímia para “riqueza” aqui nem nas passagens citadas de Píndaro da O. 1 e 3. Na primeira ode, o ouro, enquanto metal de cor alaranjada, é comparado ao fogo, um elemento purificador e símbolo da pureza e, em algumas cosmogonias, sobretudo a heraclitiana, da eternidade. Além do mais, tanto na O. 1 quanto na 3, o ouro é o vértice das riquezas, e não a própria riqueza, daí os genitivos partitivos μεγάνορος ἔξοχα πλούτου e κτεάνων. Os vv. 85-90 estruturam-se, então, num priamel antitético, em que os três primeiros exemplos formam um tricólon que busca uma generalização (Lausberg, 1990, §341-2), a saber, como nota Krischer (1974, p. 90-1), que os elementos cósmicos, entre os quais está o ouro, são imperecíveis, ao passo que o corpo humano, não. O priamel então é do tipo decrescente até esse ponto (o que Bundy chamaria de “dark foil”), mas a forte adversativa γε μέν (equivalente ao γε μήν ático) logo após ἀρετᾶς marca uma virada no tom da narrativa, que agora ascendendo, confere uma grande proeminência ao “brilho da virtude”, que encerra o priamel nos vv. 91-2. A interpretação aludida de Maehler, que separa o ouro dos outros dois elementos do priamel, a saber, o éter e a água do mar, quebra, portanto, a lógica interna cuidadosamente preparada pelo poeta. Para uma argumentação semelhante e congruente com a aqui exposta, ver Cairns (2010, p. 212-13). Sobre a função poética do ouro e seu relacionamento com o fogo e o tema do dispêndio, veja o interessantíssimo artigo de Carson (1984).

vv. 92-95: Ἰέρων, σὺ δ’ ὅλβου (…) οὐ φέρει κόσμ[ον σι]ωπά – O nome de Hierão (um name cap, segundo Bundy, 1962, p. 5-6, n. 18 ) recorre no fim da ode em companhia de uma de suas palavras-chave, ólbos, “fausto”, “dita”, como já comentamos e, de certa forma, resume o seu assunto, além de oferecer uma dica para a audiência de que a ode está chegando ao fim (Maehler, 2004, p. 98). Cf. o paralelo aduzido por Kenyon (1897, p. 29) em Sófocles, Ájax, v. 293, γυναιξὶ κόσμον ἡ σιγὴ φέρει.

vv. 96-98: σὺν δ’ἀλαθ[είᾱι] καλῶν/ καὶ μελιγλώσσου τις ὑμνήσει χάριν/ Κηΐας ἀηδόνος – Para Cairns (2010, p. 215), esses versos colocam vários problemas de interpretação e tradução, dentre os quais: (a) deve-se ler καλῶν com σὺν δ’ἀλαθ[είᾱι] ou χάριν? (b) καί é copulativo ou adverbial? (c) χάριν aqui funciona como uma preposição (“graças a”) ou como objeto direto de ὑμνήσει? Como ele observa (Cairns, 2010, p. 215), “the permutation of these make for a wide range or suggested interpretations”. A minha resposta a essas indagações está na tradução, isto é, tomo καλῶν como genitivo objetivo de σὺν δ’ἀλαθ[είᾱι], καί como adverbial e χάριν como o objeto de ὑμνήσει. Como minhas escolhas se aproximam dos argumentos de Cairns na passagem citada, remeto o leitor, por uma questão de espaço, a esse autor para maiores detalhes e para as outras possibilidades de tradução. Preferiria, por aqui, salientar que Baquílides usa ἀ-λαθεία nesses versos num sentido muito próximo ao etimológico, com α- privativo + λαθ-, podendo ser construída tanto como “aquilo que não pode ser encoberto” (a partir de ἀ-λανθάνω), isto é, algo “evidente”; ou, alternativamente, como “aquilo que, não podendo ser ocultado – por evidente – não escapa à memória”, isto é, “lembrança” (a partir de ἀ-λανθάνομαι), uma interpretação que privilegiamos na tradução. Essa última leitura tem a vantagem de retomar tanto a injunção para, com o auxílio (este é o significado de σὺν + dativo aqui) da lembrança de evidentes (ἀληθεῖς) belezas – isto é, as dedicatórias em Delfos, as vitórias olímpicas, os feitos militares etc. –, μὴ μελαμφαρέϊ κρύπτειν σκότωι, quanto a de que, a tais, οὐ φέρει κόσμον σιωπά. A lembrança (ἀ-λαθεία), contudo, não dura no tempo sem as canções (ὕμνοι) dos poetas. Neste caso, é através da lembrança dos belos feitos imortalizados nessa canção que os feitos de Hierão, através de inúmeras reperformances (τις ὑμνήσει, 97), serão preservados para a posteridade. Dessa forma, na minha tradução, a sphragís vincula, como no fr. 282 pmg (151 pmgf) de Íbico, a imortalidade do laudandus àquela do próprio poeta. Finalmente, Hutchinson (2001, p. 358) nota como a autorreferência nessa passagem, μελιγλώσσου/ Κηΐας ἀηδόνος, se adequa à afetação e à tendência à ornamentação típica de Baquílides (mas estranha, segundo ele, a Píndaro), citando como paralelo os epinícios 4.7-8 ἁδυεπὴς… Οὐρ[αν]ίας ἀλέκτωρ (“dulcíloquo (…) galo de Urânia”); 10.10, νασιῶτιν… λιγύφθογγον μέλισσαν (“das ilhas (…), a estrídula abelha”) e o 19.11, εὐαίνετε Κηΐα μέριμνα (“famosa inteligência céia”).

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