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Um panorama da poesia epigramática neolatina polonesa (e russa)

An overview of neo-Latin epigrammatic poetry in Poland (and Russia)

Rafael Frate
Universidade de São Paulo, São Paulo (SP), Brasil, Brasil

Um panorama da poesia epigramática neolatina polonesa (e russa)

Classica - Revista Brasileira de Estudos Clássicos, vol. 37, pp. 1-17, 2024

Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos

Recepción: 18 Octubre 2023

Aprobación: 04 Enero 2024

Resumo: O presente artigo traça um panorama da poesia neolatina polonesa, com uma contextualização histórica apropriada sob a ótica das práticas literárias da Polônia do XVI, ao explorar algumas das principais tendências teóricas retóricas subjacentes a essa poesia. O artigo apresenta as letras polonesas renascentistas como centrais na Europa Oriental, cuja autoridade foi decisiva para a formação do campo literário em terras russas e rutenas (hoje, Ucrânia e Belarus) até o século XVIII. Tomando como exemplo a produção epigramática de Maciej Sarbiewski, ofereço uma mirada nas obras teóricas do padre jesuíta Jacobus Pontanus e do principal douto da corte de Pedro, o Grande, Feofan Prokopóvitch.

Palavras-chave: Sarbiewski, epigrama, letras neolatinas, poesia jesuíta, Prokopóvitch.

Abstract: The following article provides an overview of Polish neo-Latin poetry with a full historical background provided by situating the literary practices of 16th C. Poland and exploring some of the principal theoretical and rhetorical approaches to this poetry. The article claims Polish letters to be central in Eastern Europe, and a decisive authority that helped shape the literary fields of lands such as Ruthenia (presently, Ukraine and Belarus) and Russia until the 18th C. By taking as example Maciej Sarbiewski’s epigrammatic production, I offer a glimpse into the theoretical works of Jesuit priest, Jacobus Pontanus, and of the foremost intellectual in Peter the Great’s court, Feofan Prokopóvitch.

Keywords: Sarbiewski, epigram, neo-Latin, Jesuit poetry, Prokopóvitch.

A Polônia do XVI foi o centro oriental da Renascença. As irradiações da “redescoberta” da cultura clássica a partir da Itália, o ponto de partida da cultura humanística do início da modernidade, tiveram na região uma manifestação tão vigorosa quanto pouco explorada. Esse é o momento em que as letras do país têm sua formação e primeiro grande impulso de produção textual, concomitantes às outras incipientes literaturas vernaculares europeias. Esse é o momento em que a língua polonesa é fundada como forma de expressão prestigiosa e oficial, em um estado de facto republicano e descentralizado, no momento histórico em que o absolutismo e a concentração e centralização de poder na formação dos estados nacionais europeus reinavam como princípios políticos. Biernat de Lublin (1465-1529), o primeiro polaco a escrever exclusivamente em vernáculo, cuja Vida de Esopo foi o primeiro grande sucesso editorial do país,1 Mikołaj Rej (1505-69),2 o primeiro satirista da língua, muitas vezes comparado a Rabelais, e Jan Kochanowski (1530-84), aquele que, segundo afirmam, foi o maior poeta do mundo eslavo até o século XIX;3 com esses e ainda muitos nomes, as letras polonesas se inseriam com um vigor tal no cenário literário europeu, que se tornou, por sua vez, um polo de irradiação dessa cultura humanística, fundada na latinidade, para terras mais orientais.

Durante o século XVI e as primeiras décadas do XVII, a produção em vernáculo, no entanto, foi consideravelmente menor que a produção em latim, ainda a língua franca da ciência, letras e diplomacia, acrescentando alguns monumentos para a latinidade posterior. Não faltaram alcunhas a escritores neolatinos poloneses que os comparassem a Virgílio, Ovídio, Marcial; todos esses nomes se encontram na crítica contemporânea e posterior como epítetos dos melhores desses autores. Grande parte desses poetas pertenciam à Companhia de Jesus, que então gozava de influência quase absoluta no campo da educação e ensino de letras. Talvez o maior de todos eles tenha sido o clérigo jesuíta Maciej Kazimierz Sarbiewski, o Horácio polonês, ou sármata, um poeta laureado em Roma, cuja fama e admiração se fizeram sentir por toda a Europa.

Enquanto durou em terras polonesas a estabilidade política de uma república de nobres, enquanto as nações que as rodeavam não tinham consolidado e otimizado seu absolutismo, o polonês e o latim demonstraram um florescimento comparável às produções das nações mais a ocidente. A partir de meados do século XVII, no entanto, inicia-se um período de crise, estagnação e estratificação social que levaria a Polônia, ao final do século seguinte, a não mais existir como nação independente. Mas enquanto no XVIII as letras do país acompanharam esse processo de declínio, seu impacto inicial se fez sentir em terras mais a oriente, de modo que deu ao então Tsarado da Rússia, posteriormente chamado Império Russo, uma dose inicial de latinidade.

É nesse momento em que se dá o desenvolvimento do vernáculo russo, bem como alguns poucos experimentos dentro das letras latinas, que logo seriam relegadas a uma posição cada vez mais marginal na educação europeia. Este trabalho tem como objetivo apresentar uma pequena amostra dessa latinidade, praticada primeiro na Polônia, seu principal polo de irradiação, com uma parte da poesia de Maciej Sarbiewski, e depois na Rússia e Rutênia do início do século XVIII, com a exposição do manual de poética escrito em latim de um de seus principais agentes políticos, o clérigo associado do Tsar Pedro, o Grande, Feofan Prokopóvitch. Como recorte, exponho um dos principais gêneros poéticos trabalhados por esses doutos, o epigrama. Incluo ainda dados sobre o manual escolar de poesia que influenciou Prokopóvitch, contemporâneo a Sarbiewski, escrito por seu companheiro de ordem, o alemão Jakob Spannmüller, mais conhecido por seu nome latino: Jacobus Pontanus.

I.

O século XVI teve na Europa um reino que ia na contramão das tendências políticas centralizadoras e autocráticas da maior parte dos estados que apenas começavam a desenvolver as formas administrativas, burocráticas e militares que os consolidariam como Estados Modernos. Tecnicamente, eram dois os domínios, um reino e um grão-ducado, que nesse momento resultariam em uma União cuja classe nobre detinha o poder e plenas liberdades com relação a seu monarca, figura decorativa que reinava sem governar. A Comunidade Polaco-Lituana (doravante, CPL) foi uma entidade política que remete ao casamento, no século XIV, da Rainha Jadwiga (Hedwig) da Polônia (1373-1399) com o Grão-Duque da Lituânia, Jogaila, ou, após sua conversão, Władysław II Jagiełło (1352-1434). A união, que no século XV é o evento que levará à conversão da Lituânia, um dos últimos rincões pagãos da Europa, para o Catolicismo, transformava as duas nações em uma união pessoal sob a figura de Jagiello, após a morte da jovem rainha.4

O Estado verá o ápice de sua glória cerca de um século e meio depois, com a União de Lublin de 1569, em que, terminada a dinastia dos Jagiello, a monarquia, até então hereditária, passa a ser eletiva, comandada por um poder legislativo, com uma espécie de parlamento, chamado Sejm, um Senado (mais próximo do que modernamente se entende por um corpo de ministros) e leis constitucionais que limitavam radicalmente a ação do rei, criando na prática uma democracia da nobreza, chamada Szlachta. A entidade passava a ser então efetivamente uma Respublica (calcado como Rzeczpospolita em polonês). Seu monarca seria escolhido por ela dentre uma das famílias reais da Europa, a leste e a oeste, e não teria o direito de nomear um sucessor, nem de convocar membros da classe privilegiada para a guerra, nem de aumentar impostos e prerrogativas reais sem a prévia aprovação do parlamento.

Democracia restrita a uma pequena parcela da população (cerca de 8%, proporção, cabe dizer, consideravelmente maior que as nobrezas francesas, que perfaziam de 1 a 3% da população), a CPL se apoiava em um regime de servidão que, à medida que se consolidava, agravava a vida da massa camponesa presa às terras de determinado proprietário, em uma situação similar à que ocorreria nos séculos posteriores na vizinha Moscóvia, futuro Império Russo (Davies, 2005, p. 156ss). Contando com cerca de 60% da população em meados do século XVI, a população camponesa era presa à terra, não tinha quaisquer direitos políticos e sustentava todos os estratos sociais que formavam a União. Outros que não possuíam direitos políticos, mas que detinham um crescente poder financeiro eram os burgueses e, mais especificamente, os judeus. Esses tinham na CPL plenas liberdades religiosas e eram geralmente livres das perseguições que cada vez mais os oprimiam no restante da Europa. A situação polonesa fez sua própria versão do célebre adágio citado no século XVIII pelo também jesuíta padre Antonil: a Polônia é o inferno do camponês, o purgatório do burguês e o paraíso da nobreza (e do judeu)” (Davies, 2005, p. 160).5

Como todos, era um país de gritantes contradições; não obstante, diferentemente de outros contemporâneos, era um país em que a convivência pacífica foi mais vantajosa. A CPL foi possivelmente uma das terras da Europa com o mais alto grau de tolerância religiosa da Europa seiscentista. Tolerância religiosa era uma garantia ratificada em documentos como a Confederação de Varsóvia de 1573, que dizia “nós que divergimos em matéria de religião manteremos a paz entre nós, e não derramaremos sangue por diferenças de fé, ou igreja” (Davies, 2005, p. 126). Manter súditos de diversas religiões em coexistência pacífica foi uma habilidosa manobra política que garantiu certo equilíbrio ao reino até meados do século XVII. Ele foi consolidado em uma longa história constitucional, como, por exemplo, com os Atos de Cracóvia de 1433, uma carta de privilégios que assegurava o princípio conhecido por Neminem captivabimus,6 uma das primeiras garantias de devido processo legal da Europa moderna. Tal segurança legal e confessional transformou a Polônia em um dos principais teatros do protestantismo.

A Reforma teve lá um de seus contextos intelectualmente mais efervescentes, que ia na via oposta da violência religiosa que assolaria o continente pelos séculos seguintes. O protestantismo, que no decorrer do século XVI, encontraria lá uma vertiginosa ascensão e queda, seria complementado pelas ideias de doutos italianos que, a partir de 1518, com o casamento do rei Sigismundo II com a princesa milanesa Bona Sforza, começariam a popular as cortes do país, causando grande impacto na demografia letrada local. Arquitetos, clérigos, mercadores, artistas, homens de letras, pensadores literalmente invadiram as terras do que outrora chamaram Sarmácia. Professores de filosofia traziam as mais novas tendências do pensamento de Ficino, de Valla, de Pico. Foi um período de fluxo de ideias próximo ao irrestrito que o levou a ganhar a atraente alcunha de A Era da Liberdade Dourada.

Muitas são as causas de um dos domínios mais livres da Europa se tornar um de seus países mais profundamente católicos nos próximos séculos, mas uma seria a eficiência de uma das hábeis armas contrarreformistas católicas, a Companhia de Jesus. Por cerca de dois séculos, os Jesuítas foram a tendência dominante na sistematização de uma proposta pedagógica, bem como na produção de material para o ensino de diversas matérias tradicionais, reciclando concepções escolásticas e, por vezes, inovando na criação de técnicas centradas na prática e postura dedutiva. Chegados à Polônia em 1564, eles abriram uma rede de escolas localizadas nos principais centros culturais e políticos e rapidamente cresceram, contando já com 500 escolas em 1608 e dobrando esse número em 1626, em escolas que atraíam inclusive alunos protestantes e ortodoxos (Stone, 2001, p. 137).

Tal eficiência seria resultado da sistematização geral da pedagogia jesuítica que se deu oficialmente na Ratio Studiorum,7 o plano de estudos desenvolvido no Collegium Romanum e publicado em sua versão final em 1599. Grosseiramente divido em estudos superiores (Filosofia e Teologia) e inferiores (Latim, Grego, Gramática e Retórica), o documento ressaltava a formação em humanidades, dando destaque ao arcabouço literário greco-latino e se tornando um dos principais agentes de amplificação da latinidade. O curso de Retórica se dividia em Oratória e Poética, privilegiando a primeira, vistas as menções feitas ao manual de Cypriano de Soarez, um dos primeiros modelos da propedêutica que tornou os jesuítas os mais pedagogicamente influentes de seu tempo (Farell, 1970, p. 80). As referências teóricas centrais naturalmente eram Cícero (tendo os discursos como modelo prático) e Aristóteles (Retórica e Poética), e os manuais que os trabalhavam geralmente eram simplificações ou paráfrases das teorias expostas nos autores.

Não se cita na Ratio, entretanto, um manual particular a ser usado no trabalho com a poesia. Apesar disso, houve manuais, e um, particularmente, gozou de uma influência que ainda se sentiria no início do XVIII em terras mais orientais como Kíev e Moscou.

II.

O Poeticarum Institutionum L. III de Jacobus Pontanus8 ofereceu à matéria de poética uma propedêutica sintética de acordo com os interesses pedagógicos dos jesuítas na arte. O manual era acompanhado de centenas de poemas de diferentes gêneros prescritos nele, chamado por seu autor Tirocinium Poeticum.9 Nascido na cidade de Brück, na Boêmia, e batizado Jakob Spannmüller, o alemão foi um dedicado ator jesuíta na latinidade de sua época, tendo escrito, entre diversas composições neolatinas, teóricas e literárias, um dos manuais mais utilizados nas aulas de poética das escolas polonesas e rutenas, que adotaram a base curricular da Ratio. Trata-se de manual típico da propedêutica jesuítica, que se justifica em seu prefácio por apresentar de um modo cômodo e claro um caminho até o Hélicon para estudantes ginasiais, e divide-se de modo amplo entre uma parte de “poética geral” (livro I) e uma de “poética aplicada” (livros II e III), de modo que esta seria a materialização dos princípios daquela nos diversos gêneros poéticos nela prescritos.10

No Livro I, temos, dessa forma, uma espécie de teoria geral da poesia, que remete a métodos de organização que datam, pelo menos, desde o período carolíngio com seus accessi e comentários a autores clássicos,11 com capítulos dedicados à sua necessidade, natureza, virtudes, matérias, fins, espécies etc. Um capítulo sobre exercícios de composição (cap. 9) também ocupa boa parte dessa primeira parte, com outro dedicado à importante questão da imitação de modelos como elemento primordial na aquisição e desenvolvimento da arte (cap. 10). Entre as autoridades aqui citadas, Quintiliano e Plínio têm o maior destaque, sendo usados para corroborar pontos em quase todas as divisões dessa primeira parte. Ao tratar de exercícios de composição, por exemplo, o retor é evocado no uso de “estilo longamente meditado e trabalhado” (Pontanus, 1600, p. 25), reproduzindo uma longa passagem do livro 10.3 (Quintiliano, Institutio oratoria 10.3.5).

De Plínio, são citados passos como partes da carta 7.9, endereçada a um jovem admirador, com o conselho de relaxar de vez em quando, dedicando-se ao lusus. Pontanus traz esta passagem para introduzir o gênero que mais será discutido em seu manual, citando a definição dada pelo jurista: “É lícito relaxar com um poema. Não digo um longo e contínuo (...), mas um que seja arguto e breve” (Pontanus, 1600, p. 27).12

Os dois livros restantes dedicam-se ao tratamento de gêneros literários particulares: o Livro II tratará respectivamente de epopeia, comédia, tragédia, elegia, lírica, hino e sátira, ao passo que o Livro III tratará de poesia exclusivamente epigramática, dividindo-a em epigrama e epitáfio. As duas espécies epigramáticas ocupam, portanto, cerca de um terço do manual, uma primeira evidência que aqui será apresentada da importância desses gêneros na cosmovisão cultural jesuítica, com seu pendor para a agudeza e a discrição. Detenhamo-nos, assim, nessa terceira parte e vejamos mais detalhadamente as definições nela apresentadas.

O primeiro capítulo abre, tal como com a apresentação dos outros gêneros, com a origem do epigrama, sua etimologia e um pouco de sua história: o que fora outrora apenas inscrição breve, por vezes metrificada, a ser grafada sobre objetos inanimados, adquire mais tarde, com o uso variado e múltiplo, o caráter de gênero literário, culminando na antologia grega e sua posterior correspondência latina, no conjunto dos quais Marcial é posto como modelo máximo. No capítulo II, diferentemente do tratamento dos outros gêneros, há um elogio ao epigrama, como se essa fosse a modalidade poética máxima da doutrina de Pontanus, em mais uma evidência das prerrogativas do gênero. O epigrama, assim, deve ser admirado em sua elocutionis concinnitudo (beleza/formosura de expressão), encanto, brevidade e, acima de tudo, pelo acumen et ingenium (Pontanus, 1600, p. 166).

Pontanus propõe algumas divisões para os epigramas, considerando diferentes abordagens. Dividem-se, em primeiro lugar, em dois tipos: podem ser simples, isto é, não possuírem nenhum termo de comparação, de modo a apenas representar de maneira conotativa a matéria tratada, sem o uso de figuras que introduzam um elemento exterior a ela em denotação. Ou, então, ele pode ser composto, de maneira que “do [texto] proposto, outra [ideia], ou maior, menor, igual, diversa ou contrária, se deduz.” (Pontanus, 1600, p. 170-1). Para o primeiro tipo, o alemão traz dois exemplos de Virgílio: o exemplo da inscrição no escudo de Abas, em En. 3.288,13 e o célebre dístico funerário que, segundo Pontanus, o mantuano teria escrito para seu epitáfio.14 Por outro lado, os epigramas complexos (concretus), ou compostos, são aqueles nos quais “pode-se ver em todos eles analogias ou relações, nas quais ao mesmo tempo se ressalta a simplicidade e se produz uma comparação, ou composição” (Pontanus, 1600, p. 169-70.).15 Vários são os exemplos trazidos para esse tipo de epigrama, em suas possíveis comparações, que passam por Marcial, poetas da Antologia Grega e Catulo.16

Pode-se também, por outro lado, dividi-los segundo a matéria, em três grupos:17 ou ele será como a epopeia, ou como a comédia, ou como a tragédia. Será semelhante à epopeia quando se tratar de epigrama laudatório. Assim, quando se quiser louvar grandes pessoas, cidades, rios, fontes, edifícios, monumentos etc., compor-se-á o epigrama como tal. Semelho à tragédia será se tratar de coisas “graves e ilustres, que engendram muita dor e comiseração, bem como admiração” (Pontanus, 1600, p. 174). Enfim, após as advertências que previnem o aluno da torpeza e iniquidade que pode demonstrar a terceira modalidade, da comédia vêm o sal e a jocosidade (iocus) do epigrama, conceitos centrais na poética marcialina. Naturalmente, Marcial é apresentado como o principal modelo do gênero.

Finalmente, o epigrama pode ser dividido quanto a seu gênero de causa (Pontanus, 1600, p. 175ss). Do mesmo modo que um discurso, o breve poema pode servir “ao juízo, à deliberação, ou à exortação”. Um epigrama judicial é aquele que censura vícios, malfeitorias e crimes com repreensões e imprecações e que aconselha, dissuade, pede, e mais uma longa lista de verbos exortativos, pela decisão de alguém. Seus exemplos são Catulo 12, que censura Asino, o conviva ladrão de guardanapos, e Marcial 8.59, uma invectiva ao cleptomaníaco Lusco, que não consegue ficar sem roubar algum item ordinário. Já um epigrama deliberativo é aquele em que “aconselhamos, dissuadimos, pedimos, lamentamos, convidamos, consolamos” (Pontanus, 1600, p. 176),18 e cujos exemplos são Marcial (1.15) “a Júlio, o qual, por sua idade, [o poeta] exorta a ao ócio grave e ao prazer”.19

Exortativo é o epigrama que serve para louvar ou vituperar homens ou coisas. É onde se praticam elogios, congratulações, ações de graças, dedicatórias e também “coisas jocosas que sejam torpes sem a dor”, de modo a “causar antes o riso que a indignação.” Os objetos dessas últimas são o que Aristóteles denomina φθαρτικά (Poet. 1452b), circunstâncias destrutivas na vida humana, como fome, doenças e a morte, e coisas que merecem a indignação e o ódio. Seus exemplos são Catulo 49 a Cícero, Marcial a Deciano (1.39) e Marcial sobre a cachorrinha de Públio (1.109) (Pontanus, 1600, p. 175).

Adiante, o Capítulo IX tratará das duas virtudes principais de um epigrama: a argúcia e a brevidade. A primeira, a alma, o suco vital do gênero, não pode simplesmente faltar na composição de tais poemas. A argúcia, acumen, é produzida quando há no poema um fim inesperado, ou contrário ao que se espera, o que os gregos chamavam paraprosdokia. Os capítulos seguintes tratarão de outras qualidades do epigrama, como a suavidade. Entretanto, esses capítulos não esgotam e mal chegam a desenvolver uma teoria da agudeza. Os grandes tratados que o fariam apareceriam mais para a segunda metade do século, com as obras de Gracián, Tesauro e do autor que de que trato a seguir, o primeiro a escrever um tratado exclusivamente sobre a agudeza.

III.

Matthias Casimirus Sarbievius, o Horácio Sármata, ou o Horácio Cristão, por suas admiradas odes dentro da latinidade de seu tempo, não foi o único polonês a compor poesia neolatina. Seu contexto literário nos deu nomes que, por exemplo, no epigrama, foram ainda mais admirados, como Andrzej Krzycki (Andreas Cricius), tido pelo prêmio Nobel Czelaw Milosz como o maior expoente do gênero (Milosz, 1969, p. 34). Há outros, como Jan Dantyszek, o “Dantezinho”, que teria escrito cerca de 7500 poemas neolatinos, ou um outro polonês igualmente cultuado a depender de que parte da Europa falamos, Klemens Janicki, filho de camponês, Doctor Philosophiae por Pádua e Poeta Laureatus em Roma, o outro conterrâneo de Sarbiewski a receber a honraria. É vasto o campo da Sarmácia latina; nesta seção, apresento uma pequena amostra da obra do que é tido por seu maior autor.

De acordo com uma de suas vitae,20 nasceu em 1595, na vila de Sarbiewo, de pais membros da “nobreza equestre” polonesa.21 O menino Maciej inicia seus estudos no Gymnasium Pultoviense, na cidade de Płock, região central da Polônia moderna, de onde sai em 1612 já como membro da Companhia. Vai então para a Academia de Vilna, onde, após concluir o curso de teologia, atua como professor por alguns anos até ser mandado para Roma a fim de aperfeiçoar os estudos. No caminho, sofre atrasos de cerca de um ano, por ser assaltado ao passar pela Francônia na viagem, ficando sem nenhum centavo. Ao chegar, lê Virgílio com máxima dedicação, usando cada momento de seu tempo livre para o estudo do mantuano e da poesia latina em geral. Começa a escrever seus primeiros versos, muitas vezes na calada da noite em sua cela. Logo começam a notar suas habilidades e dedicação com relação à língua, e ele logo se insere nos círculos literários do Vaticano. Foi um homem bom, paciente, amante da pobreza, paciente no amor de Cristo e da Virgem, e outros atributos que convencionalmente se incluem em vitae eclesiásticas. Esta reproduzida aqui não menciona outros feitos como o fato de ser laureado por Urbano VIII, tendo participado de sua corte e de suas ações em seu país após o regresso, mas, em todo caso, é uma fonte primária de importância.22

Tudo o que produziu foi em latim, exceto por uma homilia supérstite registrada em vernáculo.23 Particularmente duas obras o tornaram famoso como poeta e teórico onde quer que se falasse latim em sua época: seus livros de odes e seu manual de agudeza. Os Carmina, em sua versão final compostos de quatro livros, estão entre o melhor da permanência da tradição horaciana. Essas odes merecem atenção exclusiva em outra ocasião, mas somente para dedicar-lhes algumas palavras nesta apresentação, praticamente todos os metros líricos de Horácio são utilizados por Sarbiewski, demonstrando uma perícia formal e grande habilidade em reconfigurar a poesia do poeta augustano. A matéria, os temas, a postura filosófica são fortemente cristãos e inseridos em seu tempo, mas temperados com o tom horaciano, na tentativa de conciliar em uma poderosa síntese poética duas visões de mundo que, apesar das semelhanças, são essencialmente diferentes: a eclética mediania estoico-epicurista com uma escolástica já em seu inverno. Com as odes, o polonês escreveu um livro de epodos e um de epigramas, o objeto da breve apresentação a seguir.

Mas antes de tratar da contribuição de Sarbiewski ao epigrama, convém dedicar algumas linhas a uma parte de sua obra teórica que talvez tenha influenciado outros grandes teóricos da matéria em seu tempo. Falo de seu breve tratado sobre a agudeza, o De Acuto et Arguto Liber Unicus, cujo acesso infelizmente só consegui por via indireta. Trata-se de um opúsculo dedicado inteiramente ao concetto, a essência do epigrama, mas também fundamental em outros gêneros literários. Datando dos anos 1620, anterior, portanto, aos tratados mais famosos que formariam a chamada “tríade da agudeza”: as Artes de Baltazar Gracián, Emanuelle Tesauro e Mateo Pellegrini. O tratado provavelmente foi pelo menos lido pelo companheiro de ordem espanhol, e suas ideias podem aclarar passagens mais obscuras da Arte de Gracián.

O opúsculo define a agudeza a partir de uma representação geométrica:

Qualquer ponta matemática ou material forma um ângulo, uma convergência e conjunção de duas linhas que, saindo de uma mesma base, são a princípio opostas e mesmo divergentes, e que, lentamente se aproximando uma da outra, avançam até se juntarem em um ponto preciso no vértice. Algo similar ocorre com a agudeza retórica, já que a simples exposição de um tema forma uma espécie de fundamento, uma base. Dela, como um cimeiro, saem duas linhas laterais, ou seja, de um lado algo em acordo com o tema e, de outro, algo em desacordo com ele. Para que surja a agudeza é necessário que se funda a concordância com a discordância” (apud Sydor, 2006).

A partir de tais concepções, o tratado propõe formulações sentenciais que se tornariam mais famosas que a obra, como (acumen est) concors discordia; discors concordia. São ideias expostas sobretudo com vistas ao “estabelecimento de uma tipologia crítica sobre a agudeza”, carecendo dos “floreios de uma linguagem rebuscada, cheio de epítetos afetivos e argumentos metafóricos” (Sydor, 2006, p. 589-90), pedestre, como sói a uma boa propedêutica jesuítica, ainda que seu autor seja o maior poeta latino de seu tempo, segundo muita gente em sua recepção.24

IV.

O Livro de Epigramas de Sarbiewski (1852) consiste em 119 poemas, na maior parte dísticos elegíacos, com certa variedade métrica no restante.25 São poemas predominantemente intitulados segundo tema erótico (ou “agapaico”), na maior parte das vezes servindo de veículo para mensagens da cosmovisão contrarreformista: De Puero Iesu, Sagitta Divini Amoris, Amor Divinus, Venatio Amoris etc. Os poemas também são muitas vezes precedidos de uma epígrafe bíblica, quase sempre retirada do “Cântico dos Cânticos”, podendo entrar nas diferentes categorias de paráfrase bíblica, comentário sapiencial/filosófico ou lamento pela ausência do ser amado.

A matéria do amor se reflete também na escolha de alguns dos destinatários dos poemas, santos louvados em suas principais características. Aqui aparecem Mamede de Cesareia (poemas 5 e 6), Stanislaw Kostka (poema 22) e, principalmente, Luís Gonzaga, que é o santo mais proeminente da obra, louvado em quatorze poemas. Todos são eles santos católicos que morreram ainda crianças ou bastante jovens, todos eles precoces, não no amor venal diminuído e rejeitado pela doutrina católica, mas no amor do Cristo e da Virgem, que são o objeto primordial do amor casto que um bom católico deve demonstrar e que é enfatizado nesses epigramas. Além disso, exceto pelo menino Mamede e pelas santas louvadas, como veremos, no poema 101, todos os santos e personalidades eclesiásticas a quem Sarbiewski dedica seus epigramas são membros da Companhia de Jesus ou do alto clero romano ou polonês.

Não são apenas santos católicos, no entanto, que recebem homenagens nesses epigramas. Há alguns endereçados a personalidades da Roma republicana e imperial pagã, normalmente literatos, mas também chefes de estado romanos ou contemporâneos. Plauto recebe um poema (56) em dísticos elegíacos, em tom de disputa amigável. Pérsio recebe outro (68), composto de apenas dois hendecassílabos falécios.26 Cícero também recebe um (82), ou melhor dizendo, uma estátua sua no palácio do duque da Toscana, estilizado em latim como Dux Hetruriae, provavelmente Ferdinando II de Medici. É também composto apenas de dois versos, aqui de um dístico elegíaco, e é um dos poucos poemas da coleção que tratam de uma descrição de obra de arte (ou uma descrição de persona, uma prosopographia), mobilizando a tópica da estátua tão perfeita cujas partes teriam sido feitas por cada um dos grandes escultores do passado e a que só faltaria a voz para que fosse uma pessoa real.27

A figura política da história romana mais proeminente é o imperador Nero, que recebe cinco poemas, obviamente não em louvor: 57, 60, 114, 115, 116. O primeiro deles, o 57, empresta a voz à mãe do imperador, Agripina, retomando o episódio narrado em Tácito (An. 14.8), em que a mãe assassinada celebremente diz a Aniceto, o assassino enviado por Nero, ventrem feri (“golpeie meu ventre”). Os outros poemas tratam da impermanência do imperador, normalmente colocada diante da perenidade das verdades cristãs defendidas. A sequência de poemas 114-6 é, ao que tudo indica, endereçada a Nero e narra uma morte alegórica do César, explorando a sua propensão às artes da palavra. Em 114, ele é representado como morrendo ao representar uma peça em um Olimpo cênico, fictício, portanto, e comicamente tropeçando, caindo e morrendo. A cláusula do epigrama expressa uma máxima sapiencial: “Nocivo sempre é o sublime aos Césares. Qualquer / César que aos céus venha, de lá tombará”.28 A comicidade da cena é retomada no último poema dedicado ao César, mas agora é misturado o elemento trágico da matéria que ele desempenhou em seu teatro. O poema se fecha com Jesus dizendo aos bem-aventurados: “Não despenca dos astros César, mas contra os astros”.29 Em outro poema em cujo título Nero é nomeado (101), louvam-se as santas Basilissa e Anastásia, tidas como estudantes dos apóstolos Pedro e Paulo, que se recusaram a abandonar a fé, sendo martirizadas em 68 d.C.

Ao tratar das personalidades políticas contemporâneas, porém, Sarbiewski somente faz louvores. Basicamente dois agentes políticos europeus são nomeados, ambos católicos. No poema 65, temos Luís XIII (1601-1643), rei da França a partir de 1610, tratado no subtítulo como o Galliarum Christianissimus Rex, em menção ao Cerco de La Rochelle, episódio dos conflitos com os huguenotes, em que o rei e seu principal homem de estado, o Cardeal Richelieu, tomaram um dos mais importantes centros políticos e militares controlados pelos protestantes franceses. Outra figura política proeminente do livro de Sarbiewski é o comandante do exército da CPL, de título Hetman (atamã), Jan Karol Chodkiewicz (Johannes Carolus Chodkevicius, 1561-1621), uma das personagens mais importantes do reino, que recebe um total de oito epigramas. Chodkiewicz foi o último grande líder militar da CPL antes do desastroso episódio conhecido na história polonesa por Dilúvio.30 Em seu tempo, conquistou uma série de vitórias militares contra os diversos inimigos internos e externos da comunidade, participando inclusive da incursão dos polaco-lituanos ao Tsarado da Rússia, que então vivia um período de crise sucessória conhecido por Tempos Conturbados (Smútnoe Vriêmia) e que só terminaria em 1613, com a ascensão de Mikhail Románov, o primeiro governante da família real russa que ficaria no trono até fevereiro de 1917. O atamã recebe diversos poemas relacionados a suas vitórias militares contra os suecos, os otomanos e contra revoltosos por todo o reino, principalmente, a região do que hoje é a Ucrânia. Com respeito à incursão à Rússia, recebe um poema (89), em que Moscóvia é comparada a um grifo contra o qual ele e o reino devem se precaver.

O livro de epigramas de Sarbiewski é parte pouco comentada de sua já pouco estudada obra. O gênero, como visto pelo manual de Pontanus, era muito popular entre os jesuítas, ainda mais levando-se em conta a produção de outros autores neolatinos da ordem e de lugares em que sua influência foi sentida, como o caso de Kiev e de Moscou no século XVII.

V.

À medida que a CPL ia perdendo influência, coesão e território, a Moscóvia expandia seus domínios, até se tornar a principal potência do leste europeu no século seguinte, o século de Pedro e Catarina, a Grande. É certo que a revolução cultural promovida por Pedro, o Grande,31 trouxe um influxo dos cânones clássicos muito grande para as práticas letradas oitocentistas, mas não houve então significativa produção neolatina. Em havendo uma nova língua que precisava ser cultivada, a preocupação maior foi criar obras literárias que preenchessem o sistema de gêneros poéticos que seus autores importavam à tradição.32 Porém, o tsarado, que haveria de se tornar oficialmente império ao fim do reinado petrino, teve, no decorrer do século XVII, um influxo da chamada latinstvo, “latinidade”, um conceito visto ao mesmo tempo com maus olhos e plena curiosidade.

O dilúvio polonês, mencionado acima, seria chamado “rebelião de Khmelnítski”, na historiografia russo-ucraniana. Iniciada em 1648, na região da Zaporójia, margem ocidental do rio Dniepr, ela seria uma bem-sucedida revolta de cossacos que se ergueram contra, que acabariam sendo o início da queda da grande república. O hetman Bogdan Khmelnítski, líder da rebelião, muito pelas afinidades eclesiásticas e culturais, assinaria em 1657 o Tratado de Pereiaslav, integrando-se à soberania russa, mas ainda com certa autonomia.33 Esse tratado efetivamente uniu a Rússia à Ucrânia, dando àquela a primeira escola de educação superior do tsarado, a Academia de Kíev.

Fundada em 1632 por Petro Mohyla, Metropolita de Kíev, a escola foi uma instituição de ensino ortodoxa moldada nos colégios jesuítas poloneses, cuja língua oficial era o latim. Tratava-se de uma tentativa de assegurar a eficiência e a atualidade das práticas pedagógicas jesuíticas, sem os pontos considerados heréticos da doutrina católica, mas com todo o arcabouço de latinidade que ela representava. Até os anos 1680, quando em Moscou foi criada a Academia do Salvador (Spáskaia), também conhecida por Academia Eslavo-Greco-Latina,34 Kíev era o único lugar onde se podia ter uma educação em latim, com cursos que iam da alfabetização e o aprendizado da língua, até teologia, passando pelas matérias de poética, retórica e filosofia. Essa importante instituição russo-ucraniana teve sua importância diminuída no decorrer do XVIII com a fundação de outras instituições, como a Academia de Ciências de S. Petersburgo (1729) e a Universidade de Moscou (1755), mas ela foi fundamental para prover os quadros dessas futuras instituições, bem como formar alguns dos nomes mais importantes dentro da história russa.

Um desses, sem dúvidas, foi Feofan Prokopóvitch.35 Órfão criado por um tio clérigo, estudou em Kíev e foi mandado para a Itália para completar seus estudos no Colégio de Santo Atanásio, o Collegio Greco. Ao voltar, passa a integrar os quadros da instituição, onde leciona poética, retórica e filosofia, antes de ser notado em um de seus sermões por Pedro, o Grande, em 1706. Após a decisiva batalha de Poltava, em 1709, passa a integrar a corte petrina, e se torna um dos principais responsáveis pela justificação ideológica do poder absoluto do tsar, que, em 1721, seria oficialmente rebatizado Imperator, recebendo os títulos de Pater Patriae e Magnus. Prokopóvich em alguns de seus escritos teria ainda dito que Pedro era o Pontifex Maximus da igreja russa e um sucessor dos imperadores romanos (Wes, 1992, p. 35).

Mas é em uma obra de Prokopóvitch ainda dos tempos em que lecionava na Academia de Kíev que quero me centrar aqui. O manual De Arte Poetica L. III, ad usum et institutionem studiosae juventutis roxolanae, de 1705, é um manual composto especificamente para o curso de poética da Academia de Kíev. Todo professor que lá lecionasse tinha de escrever um manual para ser usado em aula, que conteria o que o professor julgasse indispensável para que um aluno compusesse poesia latina. Ao todo, 33 desses manuais sobreviveram, ainda que pouquíssimos tenham sido editados.36 Um dos únicos a serem editados ainda no século XVIII foi o de Prokopóvitch (1961, p. 227-333). O clérigo, que ainda publicaria seu curso de Retórica para a Academia de Kíev,37 escreveu um manual que introduzia uma série de inovações ao estudo de composição de poesia, principalmente pela inclusão de alguns dos progymnasmata de Aftônio. Seja como for, é um manual modelado na estrutura do de Pontanus, dividido em três livros, o primeiro tratando de poética geral (origem, utilidade, definições necessárias para a poesia) e os dois restantes tratando de poética aplicada, ou dentro das especificidades dos gêneros. Há diferenças, é claro, mas aqui quero me deter na terceira parte do manual, dedicada em sua maior parte ao epigrama.

Dividido em oito capítulos, o Livro III do manual dedica os cinco últimos ao epigrama e ao epitáfio, de modo mais resumido e sistemático que o manual de Pontanus. Outros gêneros são também abordados no livro, mas nenhum desses capítulos providencia exemplos desses gêneros criados pelo próprio autor, nem se detém na divisão em detalhes de suas partes e dos elementos constitutivos necessários. Assim, tal como no método de Pontanus, a poesia epigramática recebe o foco principal da obra. Muitas das divisões do manual de Prokopóvitch são iguais, apesar de haver diferenças significativas, porém, uma comparação mais detalhada não pode ser objeto deste trabalho meramente panorâmico. Até porque algo mais detido exigiria consulta a material indisponível na rede. De qualquer modo, espero que este breve panorama seja útil a quem deseje explorar uma área ainda totalmente intacta dentro das letras clássicas brasileiras, como uma janela para um campo que aguarda seu redescobrimento.

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Notas

1 O panorama histórico/literário foi tirado sobretudo da História da Literatura polonesa, de Czesław Miłosz (Milosz, 1969).
2 Nota quanto aos nomes e ortografia polonesa: cito da primeira vez com o nome escrito na variação polonesa do alfabeto latino, com seus diacríticos. Nas subsequentes, omito os diacríticos. Leem-se (IPA): ł – [w] ę – [ɛ̃]; ą – [ɔ̃]; ó – [u].
3 A afirmação é feita, por exemplo, no prefácio do crítico Stanislaw Baranczak a um de seu livros mais famosos, os Trenos, traduzido pelo poeta irlandês Seamus Heaney (cf. Kochanowski, 1995, p. vii).
4 Essa breve contextualização foi informada sobretudo por Davies (2005) e Stone (2001).
5 O adágio “o Brasil é o inferno dos negros, o purgatório dos brancos e o paraíso dos mulatos e mulatas” é celebremente citado pelo jesuíta André João Antonil em seu Cultura e opulência no Brasil por suas drogas e minas (Antonil, 2011, p. 110).
6 Segundo a fórmula jurídica apresentada na carta: Neminem captivabimus nisi iure victum (“Não prenderemos ninguém que não seja submetido ao devido processo legal”).
7 A edição consultada foi a de Farell (1970).
8 Mantenho o nome de Pontanus latinizado, de modo a evitar confusão com um homônimo seu mais conhecido, o humanista e poeta laureado, Giovanni Pontano (1426-1503).
9 Contidos no Tirocinium estão dois livros de elegias, um de epigramas fúnebres, dois chamados miscelânea, que contêm epigramas ou poemas líricos breves. Uma tragédia (Eleazar) e duas peças que o autor chama dramas (Immolatio Isaac e Stratocles, sive bellum, O Sacrifício de Isaac e Stratocles, ou a guerra).
10 Para este trabalho, usamos edição antiga do XVII (Pontanus, 1600). Não é de nosso conhecimento uma edição crítica moderna do manual.
11 Cf. Schmidt (2017, p. 64) para uma introdução sobre a organização de manuais e comentários a autores clássicos a partir do período carolíngio.
12 Cito aqui a recomendação número 7 do cap. 9, livro 1, sobre os exercícios: Commendat Plin. in ea epist. quae est de exercitatione styli, scriptionem epigrammatum his verbis: Fas est et carmine remitti: non dico carmine continuo et longo (id enim perfici nisi in otio non potest), sed hoc arguto et brevi, quod apte quantaslibet occupationes curasque distinguit. Lusus vocatur: sed hi lusus non minorem interdum gloriam, quam seria consequuntur. Argutum et breue carmen vocant epigramma, quod observabis. (Plínio recomenda em epístola que versa sobre o exercício do estilo a escrita de epigramas com as seguintes palavras: “É lícito também relaxar com um poema. Não digo um extenso e contínuo (pois isso não se pode fazer a não ser no ócio), mas um arguto e breve, que seja um intervalo entre ocupações e cuidados. Chama-se divertimento. Mas esses divertimentos por vezes atingem fama não menor que as atividades sérias.” O poema breve e arguto, como o leitor observará, é chamado epigrama.)
13 Pontanus (1600, p. 169): Aeneas hac de Danais victoribus arma (En. III, 288).
14 Pontanus (1600, p. 169): Mantua me genuit: Calabri rapuere: tenet nunc / Parthenope: cecini pascua, rura, duces. Reproduzo a pontuação usada por Pontanus.
15 Omnibus his collationes sive relationes perspicis, quibus et tollitur simplicitas, et gignitur comparatio, sive compositio.
16 Marcial, Esp. 27. No primeiro exemplo dessa seção, Pontanus cita um poema do Livro dos Espetáculos de Marcial, mas o atribui ao livro 1: “Exemplum ubi maius aliquid ex propositis deducitur, hoc sit. Martial, lib. 1 de Carpophoro: Saecula Carpophorum, Caesar, si prisca tulissent / iam nullum in monstris orbe fuisset opus.” (Pontanus, 1600, p. 180). O poeta grego citado é atribuído por Pontanus a Leôncio (AP 7.139, na edição de Paton atribuído a Acérato Gramático; Paton, 2007, p. 78). Há também um exemplo retirado de uma curiosa coleção de poemas em latim: “Carmina poetarum nobilium, Io. Pauli Ubaldini studio conquisita.” Em edição de 1563, esse Giovanni Paolo Ubaldini compila uma série de 40 poetas italianos com poemas geralmente epigramáticos (Ubaldini, 1563).
17 O título do capítulo 5: “Tertium dividitur epigramma, secundum tria genera poematis” (Pontanus, 1600, p. 173ss).
18 Pontanus (1600, p. 176).
19 Pontanus (1600, p. 178): “Notum est illud Martialis ad Iulium, quem aetate grauem ad otium voluptatemque hortatur lib.1”.
20 O parágrafo é um resumo de uma Vida de Sarbiewski, contida na introdução aos livros de odes de edição oitocentista parisiense (Sarbiewski, 1791).
21 Ordo equestris aqui é paráfrase latinizada da já mencionada Szlachta.
22 Não encontrei outras biografias do poeta. Toda a informação neste trabalho é circunstancial, provinda sobretudo de artigos que o citam.
23 Cf. Fordonski; Urbanski (2010), para um excerto biográfico mais detalhado do polonês. Compilo também aqui uma lista parcial de algumas de suas obras teóricas: Characteres lyrici seu Horatius et Pindarus; De virtutibus et vitiis carminis elegiaci, seu Ovidius; De figuris sententiarum; De perfecta poesi, sive Vergilius et Homerus; Dii gentium, seu theologia, philosophia tam naturalis quam ethica, politica, oeconomica, astronomia, caeteraeque artes et scientiae sub fabulis theologiae ethnicae a veteribus occultate; Descriptio gentium, e algumas outras editadas.
24 Sarbiewski gozou de enorme influência em diversas partes da Europa, com traduções contemporâneas em línguas como italiano, francês, alemão, holandês, tcheco e lituano. Há cerca de 60 edições conhecidas de seus poemas, apenas 15 das quais polonesas. Algumas de suas primeiras edições tiveram assombrosas tiragens de 5000 exemplares, mas foi curiosamente na Inglaterra em que o polaco teve sua fama máxima. Lá, com uma tradução e edição completa datada já de 1646, recebeu no decorrer da história literária inglesa menções e louvores de nomes como Joseph Addison, Richard Lovelace, Abraham Cowley, Samuel Johnson, Samuel Taylor Coleridge, Robert Burns e, mais recentemente, Geoffrey Hill. Coleridge, por exemplo chega a afirmar que não conhece nenhum poeta, afora Estácio e Lucrécio, que igualasse o polonês em “ousadia na formulação, opulência na fantasia ou beleza na versificação” (Stanisz, 2014, p. 264). Para um detalhamento da recepção de Sarbiewski em língua inglesa, cf. Fordonski; Urbanski (2010).
25 Em um levantamento prévio do livro de epigramas, dos 119 poemas contei 109 dísticos, perfazendo cerca de 91,5% do total. Os outros são catásticos, com ocorrências de asclepiadeu maior e menor, hendecassílabo falécio e hexâmetros datílicos. A porcentagem é, portanto, maior do que a da obra completa de Marcial, que teria, na contagem de Cesila (2017, p. 283), cerca de 79,1% do total de poemas, considerando todos os seus quinze livros. Tais números são somente uma prévia, e uma análise que leve em conta a organização do livro do polonês em relação à de Marcial demanda estudo bastante aprofundado.
26 “LXVIII DE A. PERSII SATYRIS: Vis Persi tetricas videre noctes? / Auditor lege scripta, lector audi.” (Queres ver as acerbas noites de Pérsio? / Ouvinte, lê os escritos, leitor, ouve).
27 “Ora Myron, humeros Lysippus, lumina finxit / Praxiteles: vocem fingere nemo potest.” O poema traz à mente a célebre passagem do próprio Cícero (De Inv. 2.1), que narra a encomenda feita pelos cidadãos de Crótona ao pintor Zêuxis de uma imagem de Helena como adorno a um templo de Hera. O pintor pede aos cidadãos que lhe tragam as cinco meninas mais belas da cidade e, a partir da parte mais bela de cada uma delas, cria a sua imagem. Outra referência é Luciano, com o diálogo Εἰκόνες, entre dois pintores, Licínio e Polístrato (Fowler, 1905, p. 13-23), que, ao comentar sobre uma linda moça que o primeiro teria visto, pede ao outro pintor que rememorasse as partes mais belas das mais belas estátuas moldadas pelos melhores escultores da Grécia, como Praxíteles e Fídias. Zuccaro (2019) oferece uma discussão dessas passagens, bem como um estudo exaustivo da descrição a partir da obra de Manuel Botelho de Oliveira.
28 “Noxia Caesaribus semper sublimia: quisquam / ad superos veniat Caesar, et inde; ruet” (114, 7-8).
29 “Pii ne flete sodales / Non ruit ex astris Caesar, in astra ruit” (116, 7-8).
30 Em polonês, Potop, também chamada Rebelião de Khmelnítski, cf. abaixo, V.
31 Para o uso e aplicabilidade do termo “revolução cultural” para a Rússia de Pedro, o Grande, cf. Cracraft (2004).
32 Parte central das reformas petrinas consistiu no início do estabelecimento de uma língua que fosse dotada de “polifuncionalismo, compreensibilidade universal, codificação gramatical e meios de variação estilística”, como Zhivov (2009, p. 2) coloca que o russo ganharia no decorrer do século XVIII e início do XIX. Com efeito, não havia língua vernacular russa até as reformas petrinas.
33 Cento e cinquenta anos depois, Polônia e Lituânia deixariam de existir como estados independentes, sendo incorporados por seus vizinhos, Prússia, Áustria e o Império Russo de Catarina II, na Terceira Partição da Polônia (1795).
34 Uma importante instituição educacional onde estudou, por exemplo, o polímata Mikhail Lomonóssov, uma das principais figuras do iluminismo pós-petrino russo. Cf. Chrissidis (2016) para uma breve história e uma análise do curso de retórica da instituição.
35 A biografia de Feofan de referência ainda é a oitocentista, escrita por I. Tchistóvitch em 1868.
36 Siedina (2014) oferece um panorama desses manuais, bem como um estudo aprofundado sobre a recepção de Horácio lá.
37 Uma tradução russa desse manual está em Prokopóvitch (2020).
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