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De Sepvlchrorvm Titvlis: o epigrama e o epitáfio no tratado De Re Ædificatoria de Leon Battista Alberti1
De Sepvlchrorvm Titvlis: the epigram and the epitaph in Leon Battista Alberti’s treatise De Re Ædificatoria
De Sepvlchrorvm Titvlis: o epigrama e o epitáfio no tratado De Re Ædificatoria de Leon Battista Alberti1
Classica - Revista Brasileira de Estudos Clássicos, vol. 37, pp. 1-17, 2024
Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos
Recepción: 13 Octubre 2023
Aprobación: 05 Febrero 2024
Resumo: O presente artigo propõe-se a comentar a visão que o humanista italiano Leon Battista Alberti apresenta sobre epigrama, inscrição e epitáfio no capítulo IV do livro VIII do tratado arquitetônico De Re Ædificatoria. A partir da visão de Alberti, buscaremos, por meio da intertextualidade, também identificar as possíveis fontes e tradições epigramáticas com as quais o autor dialoga nessa passagem, fazendo uma breve exposição da história do gênero desde suas origens gregas mais antigas, passando pela sua prática em Roma, até chegarmos ao seu reflorescimento pelos humanistas durante o Renascimento. Esta breve história do epigrama servirá para rastrearmos com mais precisão se Alberti incorpora elementos de apenas uma dessas tradições ou de várias delas. Por fim, procuraremos reunir aqui tanto o que Alberti quanto a crítica literária moderna, embora sem definição explícita, entende por epitáfio.
Palavras-chave: Epigrama, epitáfio, funerário, inscrição, sepulcral, Renascimento.
Abstract: The present paper aims to comment on the perspective presented by the Italian humanist Leon Battista Alberti regarding epigram, inscription, and epitaph in Chapter IV of Book VIII of the architectural treatise De Re Ædificatoria. This study begins with Alberti’s viewpoint, surveying, through intertextuality, the potential sources, and epigrammatic traditions with which the author engages in this passage, providing a concise overview of the genre’s history, tracing its earliest origins from ancient Greece, its practice in Rome, and its revival by Renaissance humanists. This historical context will facilitate a more precise examination of whether Alberti incorporates elements from a singular tradition or draws from multiple ones. Finally, we will seek to gather here both what Alberti as well as the modern literary criticism, although lacking an explicit definition, understand by epitaph.
Keywords: Epigram, epitaph, funerary, inscription, sepulchral, Renaissance.
Nemo me lachrimis decoret nec funera fletu
faxit. Cur? Volito vivus per ora virum.
Fuente: Autoepitáfio do poeta romano Ênio.2
Este artigo tem por objetivo analisar o capítulo IV do livro VIII do tratado renascentista De Re Ædificatoria, de Leon Battista Alberti, no qual há um tratamento sobre uma vertente daquilo que conhecemos como “epigrama”. A partir dessa análise, passaremos a refletir sobre os seguintes tópicos: 1) o que o autor entende por epigrama e que divisão ele faz do gênero; 2) com qual tradição do gênero epigramático o autor está dialogando neste capítulo e 3) o que é epitáfio para Alberti e para a crítica literária moderna. Como veremos, o epigrama descrito por Alberti preserva tanto as características mais antigas do gênero – aquelas relacionadas à inscrição, ao epitáfio e ao lamento fúnebre – quanto as relativamente mais “recentes”– a presença de humor ácido, invectiva e estrutura dialógica – consolidadas durante o período helenístico. Por isso, esses três tópicos de investigação que propusemos aqui serão balizas fundamentais para entender a complexa visão albertiana sobre o gênero.
Leon Battista Alberti viveu de 1404 a 1472 e foi um prolífico escritor e polímata italiano deste grande século de consolidação dos ideais humanistas da Renascença: o Quattrocento. E quais eram esses ideais? A resposta para essa pergunta está na própria definição daquilo que propriamente foi o humanismo. Para começar, não há uma homogeneidade e uma correspondência exata entre os ideais dos próprios humanistas, porque o “humanismo nunca foi considerado uma área autônoma durante o período em que suas práticas primeiro se desenvolveram” (Wyatt, 2014, p. 40). É possível, no entanto, traçarmos um panorama, pois – como diz Christopher Celenza, especialista em Renascença e reitor da Krieger School of Art and Sciences – o humanismo se debruçava, principalmente, sobre matérias predominantemente verbais como gramática, retórica, poesia, história e filosofia moral, esta última sendo, segundo sua opinião, o epicentro do movimento inteiro, e todas elas sendo aplicadas, lidas e analisadas em latim e, posteriormente, em grego (Celenza, 2018, p. 63-4). Apesar dessa predominância de disciplinas voltadas para as Letras, isso não exclui de modo algum a também muito forte presença da materialidade nesses estudos. É por isso que a definição de humanismo que talvez melhor sintetize este movimento intelectual seja a apresentada por Nicholas Mann:
Humanismo é aquela preocupação com o legado da Antiguidade – em particular, mas não exclusivamente, com o seu legado literário – que caracteriza o trabalho de estudiosos desde pelo menos o século IX em diante. Envolve, sobretudo, a redescoberta e o estudo de textos dos antigos gregos e romanos, a restauração e interpretação deles e a assimilação das ideias e valores que eles contêm. Varia de um interesse arqueológico nos vestígios do passado até uma altamente focada preocupação filológica com detalhes de todas as maneiras de registros escritos – de inscrições a poemas épicos – mas chega a impregnar [...] quase todas as áreas da cultura pós-medieval, incluindo a teologia, a filosofia, o pensamento político, a jurisprudência, a medicina, as matemáticas e a criação artística. (Mann, 2004, p. 21)
Pensando nesse último pilar, o da criação artística, Alberti constrói um projeto de sistematização das artes, a fim de lhes fornecer princípios e regras (instituta) para que suas produções atingissem a beleza mais harmônica entre as partes do todo (concinnitas). O tratado De Re Ædificatoria, de 1452, foi talvez a obra que com mais fôlego buscou cumprir com esse objetivo. O esforço certamente valeu a pena, pois, estabelecendo um cânone técnico e filosófico para a arquitetura, De Re Ædificatoria “foi o primeiro marco da tratadística do Renascimento” (Abreu e Lima, 2009, p. 43-4).
Talvez não seja de se espantar que, dado o grau de robustez do tratado em dez livros – estabelecendo uma evidente relação de æmulatio3 com o De Architectura Libri Decem de Vitrúvio –, essa obra, que tão minuciosamente se demora nos mais variados aspectos da monumentalidade e da edificação, aborde, mesmo que de forma concisa, sobre o epigrama, um gênero originado das inscrições epigráficas presentes em uma pletora de suportes duros e monumentais. Embora a presença desse tema seja, de fato, lógica para o contexto do De Re Ædificatoria, isso de forma alguma subtrai fulgor de uma análise que rigorosamente submeta o texto albertiano a comparações com o gênero epigramático em diacronia, isto é, ao longo de sucessivos recortes de tempo e de espaço desde os primórdios de sua existência atestada.
A fim de que possamos analisar o texto de Alberti e refletir sobre os três tópicos anteriormente citados, é necessário que contextualizemos primeiro em que lugar da obra do autor o assunto é abordado. O termo “epigrama” aparece apenas uma vez na tríade de tratados sobre as artes (De Pictura, De Statua e De Re Ædificatoria, respectivamente, Sobre a pintura, Sobre a escultura e Sobre a arte edificatória) de Alberti. Mais especificamente, aparece apenas no capítulo IV do livro VIII do tratado sobre a arquitetura, o De Re Æedificatoria. Após ter discorrido sobre a ornamentação de edifícios sagrados no livro VII, ao longo do livro VIII, Leon dissertará sobre a ornamentação de edifícios públicos seculares, em oposição ao que fará no livro seguinte, o IX, no qual se preocupará com a ornamentação de edifícios privados. Contudo, o que nos interessa realmente é que Alberti, com essa organização interna de seu livro, evidencia que as inscrições e, portanto, os epigramas – esmiuçaremos melhor a terminologia mais à frente – são ornamentações adequadas para os edifícios ditos profanos (prophani ou profani), a grafia em latim renascentista varia (Alberti, 1541, p. 113).4
Apesar disso, no capítulo IV,5 Alberti inicia já reconhecendo a multiplicidade de usos e contextos das inscrições, que não ficaram restritas apenas aos lugares profanos. Aponta que os antigos as usaram tanto em contexto funerário quanto em contexto religioso, bem como no âmbito privado.
Mas passo de imediato às inscrições. O seu uso foi múltiplo e variado entre os Antigos. Com efeito, usaram-nas não só nos túmulos, mas também nos edifícios sagrados e ainda nas habitações privadas. Gravavam nos frontões do templo – diz Símaco – os nomes dos deuses a quem os dedicavam. Os nossos compatriotas tinham o costume de gravar nas capelas a quem e em que ano se fazia a dedicação. O que é muito do meu agrado. (Alberti, 2011, p. 526)6
A palavra latina que Alberti usa para inscrições é tituli (Alberti, 1541, p. 118), com uso atestado para essa finalidade desde a Antiguidade (cf. Glare, 1982, p. 1944-5, acepção 1 e 2, entrada titulus).
Logo após essa observação inicial, Alberti cita um tipo de inscrição apotropaica dedicada a Hércules que era gravada nas habitações particulares dos cidadãos cizicenos. Sobre tal inscrição voltaremos a falar quando abordarmos a respeito do humor ácido para o qual o epigrama tendeu com a expansão do gênero na Grécia, principalmente, entre os séculos IV e III AEC (Citroni, 2019, p. 25). O que nos interessa agora é o trecho imediatamente posterior a esse, no qual a palavra grega latinizada epigrammata aparece: “Mas as inscrições ou serão inscritas, as que se chamam epigramas, ou serão assinaladas com símbolos e imagens” (Alberti, 2011, p. 118). Em latim temos: “Sed tituli quidem erunt, aut scripti, quos epigrammata nuncupabant, aut notati signis et imaginibus” (Alberti, 1541, p. 118).
Nesse trecho, claramente podemos ver que Alberti faz uma arquidivisão das inscrições: os tituli scripti, isto é, as inscrições propriamente escritas e as quais ele reproduz a tradição que as chama de epigramas (epigrammata), e os tituli notati signis et imaginibus, aquelas inscrições que são assinaladas com símbolos e imagens, podendo-se pensar aqui nos ideogramas, tais quais os hieróglifos egípcios que, inclusive, Alberti citará como exempla no decorrer do capítulo. Os tituli, sejam eles scripti ou notati, poderão ter todos os contextos por ele já citados: públicos (sepulcral, religioso) e privados (de uso doméstico para vários fins, como o apotropaico, por exemplo). No final do capítulo, Alberti ainda cita outras ocorrências como em estátuas de contexto funerário, principalmente dos povos que se inspiraram nos egípcios (Alberti, 2011, p. 528).
Ele, todavia, encerra o assunto – e praticamente o capítulo todo – dizendo que “pelo contrário aos nossos latinos agradou-lhes exprimir, esculpindo a história, os feitos dos seus mais ilustres heróis. Daí as colunas, daí os arcos triunfais, daí os pórticos cheios de história, pintada ou esculpida” (Alberti, 2011, 528). Alberti, com isso, não quer dizer que os romanos não inscreviam, mesmo porque ele sabia muito bem que eles assim o faziam, tendo, na verdade, uma produção epigráfica ostensiva. Muito dessa produção nos chegou. Só para termos uma ideia de sua extensão, escrevendo na década de 1960, o classicista Richmond Lattimore (1962, p. 14) acreditava haver mais de cem mil epitáfios latinos somente editados e publicados. Portanto, tendo em vista esse fato, logo depois, Alberti restringe essa predileção dos latinos para a escultura e a confecção de grandes monumentos apenas para “a memória dos acontecimentos de maior dignidade e importância” (Alberti, 2011, p. 528); cabendo, portanto, à inscrição as ocasiões menores e circunstanciais. Explicado isso, Alberti apresenta neste capítulo uma visão binária do epigrama. Representamos esse esquema mental de Alberti no fluxograma (Figura 1) a seguir.
Após termos identificado que Leon Battista Alberti nos apresenta uma visão binária do epigrama neste capítulo de De Re Ædificatoria, passemos para nosso segundo tópico, uma vez que a compreensão sobre as tradições epigramáticas com as quais Alberti está dialogando para embasar sua visão lançará ainda mais luz sobre sua própria concepção a respeito desse gênero. O epigrama não possui uma história linear; sendo, portanto, dotado de diversas variações cronogeográficas. É por isso que analisar o epigrama de forma diacrônica é fundamental para que a visão de Alberti sobre o gênero realmente se faça clara. Portanto, a partir de agora analisaremos a visão de Alberti em paralelo com uma concisa história do desenvolvimento do epigrama desde suas mais remotas origens.
A primeira coisa que devemos pensar é que, apesar de Alberti ser um polímata, um verdadeiro homo universalis, e de já ter escrito obras literárias de caráter ficcional como Momus, uma espécie de diálogo satírico, em De Re Ædificatoria Alberti escreve do ponto de vista de um arquiteto e, como tal, obviamente, se preocupará com os assuntos que se relacionem ao propósito central de seu tratado, que é o de estabelecer a arquitetura como uma arte e estruturar um cânone arquitetônico com base nos parâmetros da Antiguidade Clássica, nos princípios matemáticos e na harmonia entre as partes e o todo (concinnitas). Desse modo, é mister notar que Alberti trava um diálogo mais direto com a tradição do epigrama inscrito do que com a do epigrama literário, uma vez que o primeiro é naturalmente propenso a integrar elementos que comporão estruturas de edificação como sepulcros, mausoléus, edifícios públicos sagrados e seculares bem como habitações privadas. O próprio Alberti usou inscrições epigráficas em alguns projetos arquitetônicos que lhe foram encomendados. Apenas para citar um caso, há duas inscrições no sepulcro da família Rucellai na Igreja de San Pancrazio, que Alberti projetou com base no Santo Sepulcro em Anastasis Rotunda de Jerusalém (Borsi, 1989, p. 75-96). Isso não quer dizer, contudo, que Alberti não tenha sofrido nenhuma inspiração do epigrama literário, como veremos.
De todo modo, embora frequentemente os limites entre o epigrama inscrito e o literário se borrem na própria Antiguidade, é possível depreendermos algumas diferenças entre eles, se olharmos para sua gênese. Pelo que se sabe, a gênese do epigrama é dupla. Joseph W. Day (2019, p. 232), um grande especialista em epigrama grego arcaico, diz que o epigrama teve dois nascimentos. Enquanto o epigrama votivo e o de contexto funerário – Day usa a palavra epitaph para este último, e o termo epigrama monumental para se referir a ambos – são atestados a partir do século VII AEC, há um tipo de inscrição em verso pelo menos um século mais antigo, portanto, do século VIII AEC, que não estava associado diretamente ao contexto funerário nem ao votivo, mas que pertencia provavelmente ao âmbito privado e a um contexto simposial, visto que os exemplos que nos chegaram desse tipo de inscrição estão gravados em cálices. Esses últimos o pesquisador chama de epigramas primordiais, e eles não se desenvolveram tão prolificamente quanto o tipo monumental (Day, 2019, p. 233-4).
No século seguinte, VI AEC, o epigrama monumental de contexto funerário – novamente Day usa a palavra epitaph – inicia um processo de especialização e já apresenta características que se tornarão canônicas ao gênero como verbos de lamento e tratamento em segunda pessoa com o interlocutor-alvo, isto é, o viajante que avistasse o sepulcro (Day, 2019, p. 237). Mario Citroni (2019, p. 23), professor emérito da Scuola Normale Superiore de Pisa e de Florença, diz que, a partir do século V AEC, as inscrições de contexto funerário, especialmente as que eram escritas em verso, são chamadas de epigramas (ἐπῐγρᾰ́μμᾰτᾰ), e que esse termo era usado quase que exclusivamente para esse tipo de inscrição.
O século V AEC parece, de fato, ter sido um período enriquecedor para o epigrama, pois Day (2019, p. 237) menciona que é exatamente nesse século que já se atesta a presença de diálogos nos poemas, uma característica que será muito longeva na tradição epigramática, passando por Marcial – como em seu epigrama 1.10, apenas para citar um exemplo – até chegar ao Renascimento. O próprio Alberti citará um epigrama dialógico como modelo no capítulo que estamos analisando. Após apresentar um epigrama sepulcral sobre os soldados espartanos que morreram na Batalha das Termópilas durante a Segunda Guerra Médica, ele diz:
E não desdenharemos, se tiver algum chiste maravilhoso deste gênero:
– Olá, viandante, aqui o marido e a esposa não discutem.
Perguntarás quem somos: não o direi.
Mas di-lo-ei eu: este é Bélbio, o gago, e chama-me Brébia Pepa.
– Ó mulher, mesmo morta dizes parvoíces?
Coisas desse gênero são muito agradáveis.
Fuente: Alberti (2011, p. 527)
Em latim temos:
Neque etiam aspernabimur, si quid habebit lepiditatis miraculum.
– Heus viator, hic vir et uxor non litigant.
Quæres qui sumus, non dicam.
At ehodum ipsa dico, hic Belbius balbus me Brebiam peppam nuncupat.
– Ohe coniux, etiam defuncta garris?
Istiusmodi perplacent
Fuente: Alberti (1541, p. 118-9).7
Voltando ao nosso breve conspecto do desenvolvimento do gênero epigramático na Antiguidade, os dois séculos seguintes IV e III AEC – isto é, o final do período Clássico e o início do período Helenístico da história grega – serão um ponto de virada na história do gênero. Alberti menciona Platão, filósofo grego que viveu majoritariamente no século IV AEC, como uma autoridade dessa época para prescrever a característica que talvez seja a mais importante para o gênero epigramático: a brevitas. Alberti diz que “Platão ordenava que nos sepulcros não se escrevessem mais de quatro versos” (Alberti, 2011, p. 526). Além de Platão, Alberti traz uma citação do poeta romano Propércio (IV, 7, 83-4) para reafirmar a necessidade de ser breve ao escrever epigramas:
Do mesmo modo diz [Propércio]:
“Tu, no meio da coluna, insere um poema em minha homenagem, mas breve, tal que um recoveiro apressado, vindo da cidade consiga ler sem parar”.
E, sem dúvida, a prolixidade excessiva, tanto em outros casos, como sobretudo neste, é extremamente enfadonha. Ou se, enfim, for mais prolixo, seja totalmente elegante, erudito, e contenha algo que mova o espírito à piedade, à misericórdia, à gratidão, e que ninguém se arrependa de ter lido e que ajude a fixá-lo na memória e a recitá-lo (Alberti, 2011, p. 526)
O autor italiano está retomando aqui um dos aspectos mais discutidos sobre a brevitas na própria poética do gênero epigramático: a recomendação ao autor prolixo de epigramas – que ele deixa bem claro não ser o ideal – de que pelo menos os componha com qualidade, com elegância e erudição, pois um poema longo e ruim desperta ainda mais enfado e faz parecê-lo ainda mais longo do que ele de fato é. Essa ideia era bastante discutida no Renascimento, o humanista e poeta português Antônio de Gouveia, por exemplo, compõe dois epigramas sobre o tema (Epigrammata 68 e 80), de modo a investir “no achado poético de que ‘poucos’ poemas são ‘muitos’, se ruins” (Lima, 2007, p. 61).
Recuando de volta para o período do século IV e III AEC, Citroni aponta que
a ideia de epigrama se expandiu de dois modos fundamentais. Além de seu valor como “poema inscrito”, que permaneceu intacto, também passou a abranger poemas que, embora possuíssem características de textos gravados, referiam-se exclusivamente a túmulos ou objetos imaginários. Também começou a englobar poemas que não possuíam nenhuma ligação reconhecível com a escrita epigráfica. (Citroni, 2019, p. 25, tradução nossa)
Esse recurso de fazer um epigrama a partir de um sepulcro imaginário será muitíssimo utilizado ao longo da história do gênero. Marcial, por exemplo, usa esse mecanismo no epigrama VI, 52, quando emula uma tumba para um jovem e habilidoso barbeiro ficcional chamado Pantagathus, um speaking name proveniente do grego πάντᾰ + ᾰ̓γᾰθός (todos os bens). Na verdade, de um total de 35 epigramas com temática de lamento fúnebre em Marcial, Cesila (2017, p. 180) nos diz que “ao menos 19 deles utilizam fórmulas e tópoi do epigrama funerário convencional”, e em algumas dessas ocorrências, claro, Marcial usa esse recurso de criação de sepulcros imaginários principalmente para casos de pessoas que morreram em sua juventude. A técnica em questão, contudo, como aponta Margot Neger (2019, p. 183), chegou a ser criticada por um dos predecessores e influências do próprio Marcial, Lucílio, o poeta do período neroniano que escreveu epigramas posteriormente coletados na Antologia Palatina (não confundir com o Lucílio satirista). No epigrama 11.312 da Antologia Palatina, Lucílio diz:
Embora não haja ninguém morto aqui agora, ó transeunte,
poeta Marcus construiu um túmulo aqui e,
escrevendo uma inscrição de apenas uma linha, assim a gravou:
“Chore pelo jovem Maximus, de doze anos, de Éfeso”.
Eu nem sequer conhecia nenhum Maximus,
as para exibir o talento do poeta, peço ao transeunte que chore.
Fuente: Apud Neger (2019, p. 183).8
Pudemos constatar até agora que Alberti não estabelece contato com a tradição de apenas um recorte de tempo da Antiguidade, mas de vários. Como já citado por nós acima, quando, logo no início do capítulo IV, menciona a multiplicidade de contextos que as inscrições tiveram entre os antigos (túmulos, edifícios sagrados e habitações privadas), ele constrói uma relação que vai desde as mais antigas tradições gregas arcaicas de epigrama, nomeadamente, aquelas que Joseph Day (2019, p. 234) chama de primordial e monumental (c. séc. VIII e VII AEC, respectivamente) até as romanas, passando pelos períodos clássico e helenístico também. Contudo, quando Alberti nos traz o faux épitaphe dialógico de Bélbio e Brébia Pepa, que transcrevemos acima, a tradição é claramente helenística. Isso por vários motivos: 1) ser um epigrama dialógico (costume que tem início a partir do século V AEC, mas que se desenvolve plenamente ao longo do século III AEC); 2) não ser uma inscrição real gravada em uma tumba material e, o mais importante de tudo, 3) trazer elementos de humor.
Os elementos lúdicos e de humor são bem característicos dos epigramas literários, principalmente daqueles produzidos a partir do período helenístico. Eles são uma forma de preencher um prazer estético que anteriormente era promovido principalmente pelo efeito causado por meio da amálgama entre objeto e inscrição, pois “em epigramas inscritos o monumento é parte da mensagem” (Bettenworth, 2007, p. 69-70). O epigrama literário no período helenístico torna-se um jogo no qual a imaginação tenta preencher as lacunas que faltam no poema: e.g. a pessoa a quem o texto alude ou o objeto fictício construído apenas verbalmente. Andrej Petrovic (2007, p. 50), especialista em epigrafia grega da Universidade de Durham, nos diz que “do período helenístico em diante, o epigrama literário adota uma nova estética, uma de evasão”. Mais à frente o autor explica a que tipo de evasão ele se refere, “o texto deliberadamente coloca em movimento um Ergänzungsspiel, um jogo que o leitor do epigrama joga e cuja tarefa é identificar a natureza das referências que faltam no epigrama” (Petrovic, 2007, p. 50).
Como vimos no epitáfio dialógico de Bélbio, elementos lúdicos, brincadeiras e piadas são recursos que Alberti realmente faz questão de dizer que são agradáveis, istiusmodi perplacent (Alberti, 1541, p. 118). Inclusive, antes mesmo de mencionar esse epitáfio dialógico, ele já havia dado um exemplo em que o humor era bem-vindo nas inscrições. É o caso da inscrição apotropaica dedicada a Hércules que mencionamos anteriormente. Alberti introduz uma anedota sobre a vez em que o filósofo Crates vai à cidade de Cízico, na região da Mísia, e encontra a seguinte inscrição na casa dos moradores: “Hércules, o valentíssimo herói filho de Júpiter, aqui habitava: que nenhum mal entre nesta casa” (Alberti, 2011, p. 526). A inscrição tem o objetivo claramente apotropaico e religioso, embora a fórmula usada hic habitabat (Alberti, 1541, p. 118) evoque também uma atmosfera do contexto funerário, como se indicasse a residência onde o falecido habitou em vida. Todavia, o que mais chama a atenção de Alberti é a reação que Crates tem ao ler essa inscrição: “ele, escarnecendo, aconselhou a que gravassem antes: ‘aqui habita a pobreza’, na verdade, ela afastará todo o gênero de monstro com mais prontidão e eficácia do que Hércules” (Alberti, 2011, p. 526).
Esse exemplo tem um humor tipicamente epigramático: revertendo a fórmula de uma inscrição séria de contexto votivo em uma pungente e sarcástica invectiva social. Fosse o efeito do humor e o motivo da invectiva em razão do conhecimento de causa do filósofo Crates, que vivia em pobreza voluntária por causa de sua filosofia cínica, ou porque talvez a inscrição original fosse comum na casa das classes mais abastadas, e quando colocada no contexto de casas mais humildes causasse motivo de riso, pois, por ser pobre, naturalmente não chamaria a atenção de nenhum malfeitor, isso não importa. O fato é que o tom dessa anedota revela um epigrama já afastado daquela tradição epigráfica originada no século VII AEC. O sabor que Alberti deixa na língua do leitor é bem marcialesco, pois, como menciona Dina Maria da Silva Baptista (2009, p. 258), Marcial frequentemente fez invectivas com base no hiato social entre ricos e pobres.
Apesar de Marcial ter sido o expoente do gênero em Roma, o epigrama entre os latinos começa já no final do século III e início do II AEC, fortemente influenciado pelo epigrama helenístico. Citroni (2019, p. 33-4) diz que o gênero teria começado a ser praticado por Ênio, passando por Névio, Pacúvio, Plauto, Lucílio, Catulo, Domício Marso, Albinovano Pedão, Getúlico e, obviamente, Marcial. O gênero parece ter tido uma popularidade intermitente, ou pelo menos assim nos parece com base naquilo que a transmissão textual nos deixou. Após Marcial, teve um revival no século IV EC, sofrendo um declínio durante a Idade Média para florescer novamente no Renascimento. Isso não quer dizer que o gênero parou de ser praticado totalmente durante esses períodos intermediários, mas que sua popularidade variou de amplitude nesses recortes de tempo.
Desses autores latinos, Alberti nesse capítulo cita o alegado autoepitáfio de Ênio – que nós já reproduzimos como epígrafe deste artigo, mas traremos novamente no parágrafo seguinte –, o que nos faz encerrar essa breve história do desenvolvimento genérico do epigrama e nos leva à nossa terceira pergunta: o que Leon entende por epitáfio? Apesar de a resposta a essa pergunta, à primeira vista, parecer simples, ela não o é, porque envolve uma terminologia que nem a própria crítica literária moderna define com exatidão e, na maioria das vezes, não é clara em classificar o epitáfio como um sinônimo de epigrama funerário ou como um gênero independente.
Comecemos investigando o autoepitáfio em questão, assim como Alberti cita de Cícero:9Aspicite, o cives, senis Ennii imaginis urnam/ Qui vestrum pinxit maxima facta patrum /Nemo me lachrimis decoret nec funera fletu / faxit. Cur? Volito vivus per ora virum (Alberti, 1541, p. 118). Traduzindo para o português, temos:
Contemplem, ó cidadãos, a urna funerária com a estátua do velho Ênio,
Que pintou os melhores feitos de vossos pais.
“Que com lágrimas ninguém me preste as honras nem com choro me faça os ritos funerários. Por quê? Voo, ainda vivo, pelas bocas do homens”.
Fuente: Tradução nossa, 2023.
Apesar de ser tradicional que a crítica literária classifique os versos escritos acima como “epitáfio” (Sandys, 1927, p. 7), Alberti não usa esse termo em nenhum lugar do texto que estamos analisando. Aliás, nem sequer Cícero (Tusc. I, 34), que é a fonte de Alberti para esse trecho, usa especificamente a palavra grega latinizada “epitaphios” ou “epitaphium” para se referir a esse poema sepulcral de Ênio, apesar de tê-la usado mais à frente exatamente na mesma obra: Quid vero? in Epitaphio quo modo idem? (Cic. Tusc. V, 36), o que nos indica que essa palavra fazia parte do vocabulário ciceroniano, mesmo que não quisesse aplicá-la ao contexto do autoepitáfio de Ênio, e que ela talvez não fosse de uso tão frequente no conjunto de sua obra.
Alberti no capítulo IV usa geralmente perífrases com verbo scribo + substantivo sepulchrum ou o substantivo titulum + sepulchrum para se referir ao que tradicionalmente conhecemos como epitáfio: De sepulchrorumtitulis; Sepulchris versus scriberent; Ad sepulchra eorum scripserant (Alberti, 1541, p. 118). Talvez a escolha dessas perífrases indique que o que mais importa a Alberti é, de fato, o contexto funerário.
Quando olhamos para a crítica literária moderna, percebemos que as coisas não mudaram muito desde Alberti, e que talvez ela não tenha tido muito interesse em descrever as características do epitáfio ou estabelecer suas relações com outros gêneros como o epigrama. Quando o epitáfio é citado, geralmente o que mais é comentado pelos críticos é sua função enquanto instrumento perpetuador da memória. Flávia Amaral (2018, p. 60-1), em sua tese de doutorado sobre os epigramas fúnebres do livro VII da Antologia Palatina, diz que “a função do epitáfio é ser o instrumento de preservação do morto na memória dos vivos”, e parece usar epigrama fúnebre de uma forma menos generalizante do que epitáfio. Mais à frente (Amaral, 2018, p. 69), ela é ainda mais categórica quanto à função do epitáfio, “a função primordial do epitáfio [...] é manter a memória do morto reavivada e a proximidade física do espaço funeral com os familiares que foram deixados vivos”. Essa ideia se relaciona com o que Joseph Day (2007, p. 31) chama de μνῆμα, isto é, função memorial de transmitir “informações básicas como nomes e o que essa pessoa conquistou ou a maneira da morte”. Apesar dessa função memorial, em Roma também é possível identificar um outro uso do epitáfio, principalmente no âmbito privado: o de reafirmar os direitos à herança (Meyer, 1990, p.78).
Entretanto, algumas perguntas ainda perduram, como: os epitáfios podem ser escritos em ambas as formas de expressão: em verso e em prosa? No caso de ser em verso, há um metro específico para o epitáfio? Epitáfio é sinônimo de epigrama funerário? Algumas dessas questões nem mesmo a fortuna crítica consegue nos responder, e pode ser que tal feito nem mesmo seja possível, dada a variedade formal que o epitáfio – e também o epigrama funerário – apresenta. Contudo, algumas informações podem, sim, ser depreendidas por meio de um levantamento bibliográfico inicial. O que mais pretendemos com isso é: 1) colocar em movimento uma discussão – tendo como ponto de partida a visão de Alberti, mas expandindo os horizontes para outros contextos – que está estagnada há muito tempo na academia sobre as definições e os limites do epitáfio, e 2) concentrar aqui um primeiro conjunto de referências existentes sobre o assunto, mas que está distribuído de forma pulverizada na bibliografia, a fim de servir de reflexão inicial sobre o assunto.
Embora não tenhamos as respostas a todas as perguntas formuladas no início do parágrafo anterior, podemos fazer algumas constatações quanto à forma dos epitáfios. Eles podem, sim, ser em verso e em prosa, aproximando-se do epigrama funerário pelo contexto e pelo suporte no qual são gravados, mas se distanciando pela forma de expressão. Mais de uma vez o próprio Joseph Day (2007, p. 34, 38) usa o termo “verse epitaph”, o que, por exclusão, pressupõe a existência do “prose epitaph”, embora não tenhamos encontrado essa expressão em nenhuma de suas obras, pelo menos às quais tivemos acesso. De todo modo, a existência de epitáfios em prosa (prose epitaphs) é apresentada explicitamente por Richmond Lattimore (1962, p. 15), que também utiliza uma outra expressão interessante, “prose inscriptions”, automaticamente nos levando a pensar que o epitáfio em prosa se constitua, portanto, como um subtipo dessas inscrições em prosa, cujos contextos poderiam ir, dessa maneira, para além do funerário. Talvez isso explique por que Alberti focou tanto em evidenciar o contexto dos epitáfios em perífrases com sepulchrum. Ademais, há ocorrências do termo epitáfio em prosa (epitaffio in prosa) também na crítica italiana (Limentani, 1991, p. 96).
Mesmo chegando a ser explicitamente mencionado pela crítica, o epitáfio em prosa realmente não ganhou tanto destaque assim. Marcus N. Tod, em seu artigo Laudatory Epithets in Greek Epitaphs nos diz:
Mas os epitáfios em prosa têm recebido relativamente pouca atenção e, geralmente, são ignorados por acharem que são registros enfadonhos e pouco proveitosos, breves e desprovidos de adornos, e que, na maior parte das vezes, possuem uma expressão rigidamente formal sobre as mortes de homens, mulheres e crianças desconhecidos pela história. (Tod, 1951, p. 182, tradução nossa)
Com relação às diferenças entre epigrama inscrito em contexto funerário e epitáfio em verso, parece não haver diferenças relevantes entre eles. Day (2007, p. 38-42), pelo menos, usa esses termos de maneira aparentemente intercambiável. Contudo, a mesma aproximação não poderia ser feita entre epigrama inscrito em contexto funerário e epitáfio em prosa, uma vez que as formas de expressão são divergentes. Com relação aos termos “inscrição epigráfica em verso” e “epigrama inscrito”, também parece não haver diferenças significativas. Inclusive, durante o Renascimento, o epigramatista francês Jean Visagier intitula sua obra de Inscriptionum Libri Duo, o que acaba por evocar essa tradição mais antiga, que comentamos anteriormente, de epigramas literalmente inscritos, e não o mais comum que era nomear de Epigrammaton ou de Epigrammata, remetendo mais à tradição de epigramas literários. Esse tema, inclusive, é motivo de invectiva do epigramatista português Antônio de Gouveia, contemporâneo de Visagier, que o critica exatamente pela escolha ambiciosa do nome.
PARA VISAGIER
Livro de Inscrições, não de Epigramas,
É como intitulas a Amazônia das tuas bobagens.
Erras grosseiramente: são livros de Escrevinhações.
Fuente: Gouveia apud Lima (2007, p. 295), tradução de Ricardo da Cunha Lima.
Em latim temos:
AD VVLTEIVM
Inscriptionum, non Epigrammatum libros,
Tuarum ineptiarum Amazonidem uocas.
Erras, inepte, Scriptionum sunt libri.
Fuente: Gouveia apud Lima (2007, p. 194).
É interessante observar como os humanistas já pensavam essas classificações e como eram sensíveis a elas, pois estavam estabelecendo relações de imitatio e æmulatio com as tradições da Antiguidade. Na própria grafia do título do epigrama, Gouveia reproduz as capitulares romanas, mais uma vez remetendo a essa tradição de epigrama inscrito mais antiga que, de alguma forma, Visagier tentou se conectar ao nomear seu livro, e da qual Gouveia veementemente discordou.
Com base nas leituras de todos esses pesquisadores previamente citados, mas principalmente de Joseph Day, Mario Citroni e Richmond Lattimore, elaboramos uma espécie de fluxograma (Figura 2) para tentar deixar um pouco mais clara a terminologia necessária não só para entender o texto de Alberti, mas a relação entre epigrama e epitáfio, bem como a herança epigráfica do epigrama, que aliás carrega na etimologia de seu próprio nome a palavra “inscrição” em grego (ἐπίγραμμα).
Levando em consideração a análise dos três tópicos centrais colocados sob investigação neste artigo, nomeadamente 1) o que o autor entende por epigrama e que divisão ele faz do gênero; 2) com qual tradição do gênero epigramático o autor está dialogando neste capítulo e 3) o que é epitáfio para Alberti e para a crítica literária moderna, podemos chegar às seguintes conclusões.
A visão apresentada por Leon Battista Alberti no capítulo IV do livro VIII do tratado De Re Ædificatoria, de 1452, é uma visão binária, dividida entre os tituli scripti, os quais ele propriamente chama de epigrammata, e os tituli notati signis et imaginibus, as inscrições ideogramáticas, das quais os hieróglifos são o principal exemplo. Dentro dessa arquidivisão, Alberti se demora mais em descrever sua visão sobre epigramas sepulcrais. De todo modo, ele acaba por falar de questões poéticas muito relevantes ao gênero do epigrama como um todo. O principal exemplo disso é quando ele disserta sobre a necessidade da brevitas na composição de epigramas.
Além disso, escrevendo sob o ponto de vista de um arquiteto, naturalmente estabelece contato mais direto com a tradição de epigramas inscritos em materiais duros e monumentais, principalmente aqueles de contexto sepulcral, os quais tem existência atestada desde o período arcaico grego (séc. VII AEC). Contudo, Alberti não parece se limitar apenas à tradição dessa época, uma vez que apresenta epigramas modelares com estrutura dialógica, recurso desenvolvido apenas a partir do período clássico grego (séc. V AEC), bem como epigramas com clara evidência de humor ácido e espirituoso, uma característica muito comum dos epigramas literários do período helenístico grego e dos autores romanos. Não há propriamente uma contradição em misturar essas tradições, pois ao mesmo tempo em que, naturalmente, por uma questão de desenvolvimento cronológico, o epigrama literário foi influenciado pelo epigrama inscrito, o inverso é igualmente verdadeiro, pois, como Bettenworth (2007, p. 69) descreve, houve uma mútua influência entre o epigrama inscrito e literário.
Por último, Alberti entende o epitáfio como um instrumento de perpetuação da memória, como pudemos ver ao citar o autoepitáfio do poeta Ênio. Contudo, não nos dá muitas pistas sobre as questões formais do epitáfio, não usando sequer uma vez esse termo ao longo de seu texto, apenas termos perifrásticos. Mas essa questão não é obscura somente no texto do autor renascentista, pois nem mesmo a própria crítica literária moderna é clara e objetiva em fornecer informações sobre a métrica geralmente usada nos epitáfios em verso ou quais seriam suas diferenças com relação ao epigrama. Deste modo, propusemos um esquema (Figura 2) como um primeiro instrumento de investigação sobre as relações entre inscrição epigráfica, epigrama e epitáfio. Pretendemos com essa concentração inicial de informações suscitar novas discussões e debates sobre o tema.
Considerações Finais
Expor a visão de Leon Battista Alberti sobre o epigrama neste artigo nos propicia novos olhares para entendermos melhor como o gênero foi recebido e emulado durante o período do Renascimento, visto que o ponto de vista albertiano é mais teórico do que prático. Textos dessa natureza frequentemente são ótimas fontes para tracejarmos as preferências, as inclinações, as aversões e os modelos que esses autores tinham nesse recorte de tempo específico. Além disso, os estudos brasileiros sobre Leon Battista Alberti ainda são escassos, portanto, ocasiões que suscitem a discussão de suas obras e pensamentos são sempre muito oportunas para o desenvolvimento, no Brasil, não só dos estudos albertianos, mas também dos Estudos Clássicos voltados para o período do Renascimento.
Referencias
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Notas