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Entre Éros e Amor: jogos intertextuais de Teócrito (Idílios 11) e Virgílio (Bucólicas 2)

Between Eros and Amor: intertextual games of Theocritus (Idylls 11) and Virgil (Eclogues 2)

Rafael Guimarães Tavares da Silva
Universidade Estadual do Ceará, Brasil

Entre Éros e Amor: jogos intertextuais de Teócrito (Idílios 11) e Virgílio (Bucólicas 2)

Classica - Revista Brasileira de Estudos Clássicos, vol. 36, pp. 1-20, 2023

Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos

Recepción: 08 Junio 2023

Aprobación: 05 Julio 2023

Resumo: O presente artigo aborda a ideia da poesia como um remédio para as afecções provocadas pelo amor [éros / amor], a partir do que fica sugerido pelo diálogo intertextual de duas obras da Antiguidade clássica: Idílios 11 de Teócrito, que apresenta o canto dos sofrimentos amorosos de Polifemo; Bucólicas 2 de Virgílio, que traz o pastor Córidon cantando seu amor não correspondido. Com o objetivo de apresentar esses poetas antigos, interpretar suas reflexões metapoéticas e propor uma compreensão paralela de suas obras, procederei em bases filológicas para, em seguida, avançar uma interpretação de seus posicionamentos filosóficos em chave intertextual.

Palavras-chave: amor, poesia amorosa, bucólica, Teócrito, Virgílio.

Abstract: The present paper addresses the idea of poetry as a remedy for the affections caused by love [eros / amor], based on the intertextual dialogue between two ancient classical works: Idylls 11 by Theocritus, which presents the song of the amorous sufferings of Polyphemus; Eclogues 2 by Virgil, which brings the shepherd Coridon and his song about an unrequited love. With the aim of presenting these ancient poets, interpreting their meta-poetic reflections, and proposing a parallel understanding of their works, we proceed on a philological basis to suggest an intertextual interpretation of their philosophical positions on the subject.

Keywords: love, love poetry, bucolic, Theocritus, Virgil.

Introdução

O amor é um tema comum da tradição poética ocidental, ensejando reflexões de caráter metapoético em autores da Antiguidade greco-romana que vão de Safo a Catulo, por exemplo, ou de Anacreonte a Horácio. No presente artigo, gostaria de abordar esse tema a partir do que fica sugerido sobre ele com base no diálogo intertextual de duas obras antigas: um trecho de um dos Idílios de Teócrito, o de n. 11, que apresenta o canto dos sofrimentos amorosos de Polifemo diante de Galateia, com composição do período helenístico; um trecho que traz ecos do poema teocriteano, na segunda das Bucólicas de Virgílio, que mostra o pastor Córidon cantando seu amor não correspondido pelo puer delicatus Aléxis, numa das primeiras composições virgilianas (do século I AEC). Com o objetivo de apresentar esses autores da tradição de poesia erótica greco-romana, interpretar suas reflexões metapoéticas e propor uma compreensão paralela de suas obras, pretendo proceder em bases filológicas para, em seguida, avançar uma interpretação de seus esforços em chave intertextual.1

Apresentação de Teócrito e seu contexto

Teócrito tem um lugar cativo na história literária moderna como criador da poesia pastoral, uma manifestação poética também conhecida como gênero bucólico. Esse tipo de composição é marcado pela representação de pastores, sua vida e seu contexto, segundo uma forte idealização da realidade rural. Caracteriza-se também pela exaltação da natureza, do amor, da vida simples e rústica. Grandes autores da literatura ocidental têm obras que se inserem na tradição bucólica, como Virgílio, John Milton, Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga e Fernando Pessoa (Alberto Caeiro). Apesar das dificuldades de definição desse “gênero literário”, na linha do que é apontado por Paul Alpers (1982), parece possível trabalhar com a ideia de uma tradição literária bucólica constituída desde a Antiguidade, principalmente a partir do diálogo entre Virgílio e Teócrito.

Embora Teócrito também tenha escrito poemas dedicados a outras temáticas, inclusive com argutas representações da realidade urbana de Alexandria, seu nome se imortaliza pelo bucolismo de suas “pequenas imagens” (sentido da palavra “idílios”, que consiste num diminutivo da palavra eîdos, “forma”, “imagem”). Para entender um pouco melhor seu projeto poético, é importante situar historicamente sua obra no contexto helenístico: nesse período, ao longo das várias regiões de cultura helenizada, as condições para a performance poética ficam relativamente limitadas devido à imposição de uma ordem monárquica – constituída a partir das conquistas militares de Alexandre e das divisões estabelecidas por seus principais generais –, num tipo de organização política que orienta grande parte do que pode (ou não) ser dito em certas ocasiões. Ademais, a disseminação cada vez mais ampla da escrita torna possível que o público encontre na leitura uma forma privada de fruição da poesia e da prosa. A corte real torna-se o mais valorizado contexto de apresentação para poetas e outros artistas da palavra, como sugere uma das cenas descritas por Teócrito (Idílios 15), ainda que ocasiões mais populares certamente continuem existindo. As situações de apresentação da palavra pública ficam mais limitadas, acarretando uma série de transformações detectáveis no material legado por esse período. Pela primeira vez na história da Antiguidade helênica, a comunicação passa a ter na escrita um de seus meios preferenciais e os autores demonstram uma consciência relativamente clara sobre isso.2

Esse aspecto é em larga medida responsável pela sofisticação escritural da poesia helenística. Enquanto a compreensão de uma canção ou de um poema recitado oralmente parte das especificidades da ocasião de performance, incluindo aquilo que é compartilhado comunitariamente, a leitura acarreta uma separação espaço-temporal entre quem produz a poesia e quem a recebe. A tecnologia da escrita exerce uma enorme influência no que pode ser entendido como a passagem de uma “cultura da canção” para uma “cultura da poesia”. Os leitores, desprovidos dos dados específicos de uma ocasião de performance concreta, precisam recorrer a seus próprios conhecimentos culturais para situar e interpretar o texto escrito. Não à toa, a figura do autor – criado a partir de uma biografia dotada de elementos mais ou menos tradicionais – ganha relevo cada vez maior na cultura letrada desse período. Esses aspectos podem ser ilustrados com base na produção poética de figuras como Calímaco, Apolônio e Teócrito, mas também nos trabalhos críticos de Zenódoto de Éfeso, Aristófanes de Bizâncio e Aristarco da Samotrácia. A maioria desses autores é das mais diversas proveniências, embora todos atuem sob o poder centralizador da corte Lágida em Alexandria (entre os séculos III e II AEC).

Apesar da partilha dessas condições históricas fundamentais, é preciso levar em conta a seguinte ressalva proposta por Poulheria Kyriakou (2018), na introdução de um trabalho recente que ela consagra a Teócrito e sua poesia:

Estudiosos têm chegado nos últimos anos à conclusão frutífera de que, apesar de suas afinidades, os poetas helenísticos não são todos produtos de um mesmo molde, e que seu trabalho não segue nenhum conjunto de regras estéticas, como a brevidade (comumente associada sobretudo a Calímaco). A perda da maioria de seus trabalhos e a escassez de evidências secundárias disponíveis dificultam uma avaliação abrangente das estratégias e resultados de seus esforços. No entanto, as evidências supérstites mostram que os poetas escolhem não apenas gêneros diferentes, mas também maneiras diferentes de lidar com os desafios que enfrentam para equilibrar o peso da tradição, negociar uma recepção favorável e garantir um patrocínio. Os estudiosos que procuram definir a individualidade poética dos poetas helenísticos frequentemente se voltam para suas declarações sobre poesia e outras estratégias metapoéticas. (Kyriakou, 2018, p. 1)3

Com o objetivo de explicitar as particularidades do trabalho poético de Teócrito quanto ao tema do amor, uma análise do décimo primeiro de seus Idílios pode oferecer um vislumbre significativo do trabalho desse autor. Como no caso dos outros poemas dessa coleção, trata-se de uma composição em hexâmetros datílicos, compostos com recurso a essa rica tradição poética (que remonta aos poemas homéricos e hesiódicos), com influências consideráveis em termos de vocabulário, fórmulas e imagens mitológicas. Apesar disso, o dialeto poético de Teócrito é atravessado por doricismos, numa forma de expressão que costuma ser entendida como uma pista de sua origem siciliana (embora possa consistir num rebuscado jogo poético para reivindicar o bucolismo pré-existente de uma tradição siciliana, mais do que um elemento biográfico propriamente dito). Em todo caso, no Idílio 11, tem-se um enquadramento narrativo inicial de caráter “paratextual”. Nele, o enunciador teocriteano se dirige a uma 2ª pessoa do singular de nome Nícias, médico e poeta, para refletir sobre a poesia como um fármaco para aflições provocadas por Eros [Amor].4 Com o objetivo de ilustrar sua própria tese, vem citada então uma canção entoada por Polifemo – o mesmo que Odisseu afirma ter encontrado e vencido em suas narrativas no canto IX da Odisseia –, mas numa época em que o Ciclope teria entrado na puberdade e, apaixonado por Galateia, teria padecido os sofrimentos de um amor recusado.

Vejamos o enquadramento narrativo que guia o teor das reflexões avançadas nesse poema a fim de propor alguns esclarecimentos sobre o que parece estar em jogo para Teócrito:



οὐδὲν ποττὸν ἔρωτα πεφύκει φάρμακον ἄλλο,
Νικία, οὔτ᾽ ἔγχριστον, ἐμὶν δοκεῖ, οὔτ᾽ ἐπίπαστον,
ἢ ταὶ Πιερίδες· κοῦφον δέ τι τοῦτο καὶ ἁδὺ
γίνετ᾽ ἐπ᾽ ἀνθρώποις, εὑρεῖν δ᾽ οὐ ῥᾴδιόν ἐστι.
γινώσκειν δ᾽ οἶμαί τυ καλῶς ἰατρὸν ἐόντα [5]
καὶ ταῖς ἐννέα δὴ πεφιλημένον ἔξοχα Μοίσαις.
οὕτω γοῦν ῥάιστα διᾶγ᾽ ὁ Κύκλωψ ὁ παρ᾽ ἁμῖν,
ὡρχαῖος Πολύφαμος, ὅκ᾽ ἤρατο τᾶς Γαλατείας,
ἄρτι γενειάσδων περὶ τὸ στόμα τὼς κροτάφως τε.
ἤρατο δ᾽ οὐ μάλοις οὐδὲ ῥόδῳ οὐδὲ κικίννοις, [10]
ἀλλ᾽ ὀρθαῖς μανίαις, ἁγεῖτο δὲ πάντα πάρεργα.
πολλάκι ταὶ ὄιες ποτὶ τωὔλιον αὐταὶ ἀπῆνθον
χλωρᾶς ἐκ βοτάνας· ὁ δὲ τὰν Γαλάτειαν ἀείδων
αὐτόθ᾽ ἐπ᾽ ἀιόνος κατετάκετο φυκιοέσσας
ἐξ ἀοῦς, ἔχθιστον ἔχων ὑποκάρδιον ἕλκος [15]
Κύπριδος ἐκ μεγάλας, τό οἱ ἥπατι πᾶξε βέλεμνον.

Fuente: (Teócrito, Idílios 11.1-16)



Nenhum outro fármaco amoroso existe,
ó Nícias, me parece, que possa ser derramado ou salpicado,
senão as Piérides. E este leve e doce
é entre os humanos, mas não é fácil encontrá-lo.
Julgo que sabes bem disso, sendo médico [5]
e excepcionalmente amado pelas nove Musas.
Pelo menos era assim que mais fácil vivia o nosso Ciclope,
o antigo Polifemo, quando amava Galateia,
há pouco tendo começado a ter barba em volta da boca e nas bochechas.
Amava não com maçãs, nem rosa, nem madeixas de cabelo, [10]
mas com loucuras direitas, e deixava tudo de lado.
Frequentemente, as cabras por si mesmas para a gruta partiam
do verde pasto, enquanto ele, cantando a sua Galateia,
de lá mesmo, na praia cheia de alga, derretia-se
desde a aurora, tendo a mais odiosa ferida no coração [15]
por causa da grande Cípris, ferida que um dardo abriu em seu fígado.

O poema apresenta uma tese: existe um único fármaco para lidar com o Eros, mas esse fármaco não consiste em nenhum tipo de substância material empregada por médicos (como pomadas, óleos, talcos e ervas), mas se trata do produto da atividade inspirada pelas Musas Piérias (evocadas aqui como metonímia da poesia). A referência direta a Nícias, especificado como um médico que se destaca também por suas capacidades poéticas, cumpre uma função importante na explicitação dessa tese. Para além da possível identificação histórica desse Nícias (na linha do que estudos prosopográficos sugerem) (Gow, 1952, p. 208-9; Hunter, 1999, p. 215), sua função intratextual aqui é conferir uma espécie de autoridade erudita à tese do poeta. Afinal, ninguém poderia ser mais apto nem ter mais interesse em contestar uma pretensa ingerência equivocada do poeta sobre assuntos de alçada médica do que um profissional que tivesse experiência tanto com a medicina quanto com a arte poética. Um desdobramento da tese principal do poema é que, na medida em que a poesia é o único fármaco para lidar com o Eros, esse tratamento não é fácil de ser encontrado. No emprego do verbo heurískein [encontrar], há uma alusão (meta)poética ao nível de inventividade necessário para uma prática poética digna das Musas.

A tese principal do Idílio 11 não é necessariamente inovadora, como sugere sua possível relação com a ideia da Teogonia (56) sobre as Musas como “esquecimento de males e pausa das preocupações” [λησμοσύνην τε κακῶν ἄμπαυμά τε μερμηράων] (Hunter, 1999, p. 224). Ainda assim, alguns aspectos dessa ideia e das estratégias para ilustrá-la são característicos da poética helenística de Teócrito. O enunciador propõe compartilhar com seu enunciatário o exemplo mitológico de como Polifemo – depois de se apaixonar por Galateia e ter suas ofertas de amor recusadas – consegue encontrar uma forma de passar a vida mais tranquilo e superar o sofrimento amoroso. Trata-se, portanto, de uma exemplificação com a qual pretende convencer seu público do acerto de sua tese: em termos de um enunciatário interno ao poema, trata-se de Nícias, mas em termos de um enunciatário externo, cada leitor do poema se vê instado a refletir sobre as relações entre o exemplo mencionado e a ideia que ele pretende ilustrar.

Sem entrar nos muitos detalhes possíveis da canção entoada por Polifemo, cumpre destacar que ela vem enquadrada pela seguinte explicitação enunciativa: ἀλλὰ τὸ φάρμακον εὗρε, καθεζόμενος δ᾽ ἐπὶ πέτρας/ ὑψηλᾶς ἐς πόντον ὁρῶν ἄειδε τοιαῦτα. Ou seja: “Ele encontrou o fármaco, sentando-se nos rochedos/ altos, e, olhando para o mar, cantou o seguinte” (Idílio 11.17-8). Há aqui uma nova referência ao verbo heurískein, para se referir à ação de compor um poema eficaz contra o Eros, e seu sentido (meta)poético aparece assim destacado.

Os comentários filológicos de Gow (1952, p. 209-12), Hunter (1999, p. 215-20) e Kyriakou (2018, p. 96-9) ao poema começam abordando os antecedentes culturais das figuras de Polifemo e Galateia na tradição grega antiga. A principal referência é o canto IX da Odisseia, quando Odisseu narra aos feácios a história dos horrores vividos por ele e alguns companheiros durante sua passagem pela gruta do Ciclope. Os muitos ecos textuais confirmam que há um jogo erudito e divertido de prolepse estabelecido por Teócrito entre o que ele apresenta em seu Idílio 11 como fatos ocorridos durante a puberdade de Polifemo e aquilo que será vivenciado posteriormente entre ele e Odisseu (na linha do que aparece na Odisseia). Outras referências importantes para Teócrito são do período clássico: o drama satírico de Eurípides, Ciclope, e dois ditirambos dessa mesma época (compostos segundo a voga do “novo ditirambo”), um da autoria de Timóteo e outro, de Filoxeno de Citera (Hunter, 1999, p. 216). O que essas obras parecem propor é uma representação de Polifemo de uma perspectiva mais simpática, capaz de apresentá-lo de forma diferenciada da tradição homérica, evocando assim certa empatia com seu estilo de vida frugal, ainda que sem abrir mão do que pode haver de cômico nesse tipo de proposta (como é possível conferir na leitura do único drama satírico supérstite de que dispomos, o Ciclope de Eurípides). É preciso jamais perder de vista o caráter ridículo que subjaz à representação de um Polifemo apaixonado (Kyriakou, 2018, p. 101).

Por outro lado, a escolha de Galateia também desempenha um papel fundamental na constituição de sentido do Idílio 11. Ela aparece em catálogos de Nereidas da tradição hexamétrica arcaica (Il. 18.45; Teog. 250), ainda que sem qualquer associação com histórias especificamente delas. Na Antiguidade tardia, seu nome vem conectado com a palavra γαλήνη (“calmaria”), assim como com γάλα (“leite”), em jogos etimológicos explorados por Teócrito na canção de Polifemo – em geral de forma ridícula, sugerindo o caráter simplório do cantor5 –, mas o que mais interessa é o fato de que Galateia seja uma figura mitológica característica do mar.

Apesar de nenhum dos comentadores aqui consultados ter sugerido isso, algo que a anedota dos amores de Polifemo por Galateia obviamente explora é o que já aparecia como uma contradição para o público dos poemas homéricos: por que Polifemo nasce como Ciclope, se ele é filho de um deus marítimo (Poseidon) e uma Nereida (Toosa)? Essa é a formulação de um dos célebres “problemas homéricos”, tal como mencionado pelo escólio de uma passagem da Odisseia (9.106), em referência à solução encontrada por ninguém menos que o próprio Aristóteles.6 Independentemente da forma como os eruditos antigos tenham respondido a esse “problema”, o interessante é que Teócrito – talvez seguindo a trilha aberta por Timóteo e Filoxeno – resolve explorá-lo para refletir sobre a curiosa natureza do desejo erótico: Polifemo, filho de Poseidon e Toosa, embora nasça com a forma de um Ciclope e pertença a esse povo, no momento em que passa pela puberdade e começa a se tornar adulto, desenvolve um desejo erótico por uma figura feminina que o remete a seus próprios pais (e as várias referências à mãe ao longo da canção constituem indícios não apenas de sua puerilidade, mas também de sua identificação afetiva com ela).7 Nesse sentido, os versos entoados por Polifemo oferecem um caminho de reflexão que lhe permite compreender não apenas aspectos de seu próprio desejo, mas de sua própria identidade. Ele parte de uma indagação sobre os motivos para que Galateia o recuse e, a despeito dos jogos verbais de seu amor-próprio (que tenta protegê-lo dos aspectos mais violentos dessa recusa amorosa), formula a seguinte hipótese:



γινώσκω, χαρίεσσα κόρα, τίνος οὕνεκα φεύγεις·
οὕνεκά μοι λασία μὲν ὀφρὺς ἐπὶ παντὶ μετώπῳ
ἐξ ὠτὸς τέταται ποτὶ θὥτερον ὦς μία μακρά,
εἷς δ᾽ ὀφθαλμὸς ὕπεστι, πλατεῖα δὲ ῥὶς ἐπὶ χείλει.

Fuente: (Teócrito, Idílios 11.30-3)



“Sei, graciosa donzela, por que motivo foges:
porque uma espessa sobrancelha por toda a minha testa
de orelha a orelha se estende, única e enorme,
com um olho só e um nariz achatado por cima do beiço.”

Apesar de Polifemo parecer concentrar-se num elemento superficial da resposta para sua indagação – porque a sugestão subjacente a uma formulação assim é a de que Galateia o repele porque ele seria feio –, a verdade é que ele consegue formular a razão principal de seu problema amoroso: Galateia recusa-o porque eles são de naturezas diferentes. Embora Polifemo seja filho de Toosa e Poseidon, constituindo assim a priori um possível bom partido para uma Nereida, o fato de que ele tenha nascido como Ciclope se revela um obstáculo incontornável para o amor de Galateia por ele. Os versos seguintes da canção aproximam-se cada vez mais da compreensão dessa incompatibilidade de base entre o amante e sua amada, como indicam as diferenças entre aquilo que cada um valoriza (com base no que cada um deles é), culminando na seguinte reflexão:



αἰ δέ τοι αὐτὸς ἐγὼν δοκέω λασιώτερος ἦμεν,
ἐντὶ δρυὸς ξύλα μοι καὶ ὑπὸ σποδῷ ἀκάματον πῦρ·
καιόμενος δ᾽ ὑπὸ τεῦς καὶ τὰν ψυχὰν ἀνεχοίμαν
καὶ τὸν ἕν᾽ ὀφθαλμόν, τῶ μοι γλυκερώτερον οὐδέν.
ὤμοι, ὅτ᾽ οὐκ ἔτεκέν μ᾽ ἁ μάτηρ βραγχί᾽ ἔχοντα [...]

Fuente: (Teócrito, Idílios 11.30-54)



“Mas se a ti pareço ser muito peludo,
tenho lenha de carvalho e, debaixo da cinza, fogo incansável.
De ti suportava até que me queimasses a alma
e o único olho (que é o que tenho de mais valioso).
Ai de mim, mas a mãe não me gerou tendo brânquias [...].”

Criaturas marítimas são escamosas, enquanto criaturas terrestres são peludas. Quando Polifemo alude a sua “espessa sobrancelha” [λασία ... ὀφρῦς], ele indica o que pode haver de feio em seu rosto, mas encontra um indício preciso das diferenças de natureza entre ele e Galateia. No trecho citado, sem explorar a possível conotação erótica de suas imagens do tronco duro e do fogo duradouro, cumpre notar a incongruência de se oferecer fogo para uma criatura da água. Por outro lado, a alusão a seu futuro cegamento constitui um elemento de sua tomada de consciência para o que pode haver de danoso em seu amor e sua impossibilidade de concretização.8

As reflexões de Polifemo continuam por esse caminho, até que, após evocar a mãe e comentar que ela se compadeceria com o sofrimento físico de seu filho, uma espécie de admoestação realista é subitamente pronunciada. A meu ver, a referência à mãe não é gratuita, pois essa virada pode muito bem constituir um recurso dialógico por meio do qual a canção incorpora o conteúdo da própria reprimenda materna:



ὦ Κύκλωψ Κύκλωψ, πᾷ τὰς φρένας ἐκπεπότασαι;
αἴ κ᾽ ἐνθὼν ταλάρως τε πλέκοις καὶ θαλλὸν ἀμάσας
ταῖς ἄρνεσσι φέροις, τάχα κα πολὺ μᾶλλον ἔχοις νῶν.
τὰν παρεοῖσαν ἄμελγε· τί τὸν φεύγοντα διώκεις;
εὑρησεῖς Γαλάτειαν ἴσως καὶ καλλίον᾽ ἄλλαν.

Fuente: (Teócrito, Idílios 11.72-6)



“Ó Ciclope, Ciclope, onde é que estás com a cabeça?
Se fosses trançar cestos e brotos colher para as tuas
cabritas, muito mais rapidamente recobravas o juízo.
Tira leite da que está presente: por que persegues a que foge?
Hás de encontrar uma outra Galateia, talvez mais bela.”

Essa admoestação realista convoca Polifemo a se dar conta da realidade. Ele é um Ciclope e faria melhor se estivesse se dedicando ao tipo de ocupação que é característico de seu povo rústico, em vez de ficar sonhando com o impossível e perseguindo quem o evita. Essa referência a uma ocupação mais proveitosa, inclusive, parece estar prenunciada na alusão que o início do Idílio 11 faz às Musas Piérides, elas que aparecem como inspiradoras do canto hesiódico de Trabalhos e dias (uma referência importante para Teócrito, como já sugerido antes). Em todo caso, é a partir daí que vem uma exclamação pronunciada por Polifemo em 1ª pessoa, concentrando a conclusão do longo processo de autoconhecimento que constitui sua canção:



πολλαὶ συμπαίσδεν με κόραι τὰν νύκτα κέλονται,
κιχλίζοντι δὲ πᾶσαι, ἐπεί κ᾽ αὐταῖς ὑπακούσω.
δῆλον ὅτ᾽ ἐν τᾷ γᾷ κἠγών τις φαίνομαι ἦμεν.

Fuente: (Teócrito, Idílios 11.77-79)



“Muitas moças me chamam à noite para brincar
e todas sorriem quando lhes dou atenção:
é claro que, nesta terra, eu próprio pareço ser alguém.”

Assim se conclui a canção de Polifemo. Enquanto um percurso de reflexão que propicia o reconhecimento da própria identidade e suas implicações em termos de desejo, a poesia revela-se o único fármaco capaz de lidar verdadeiramente com o Amor. Polifemo percebe que pode desfrutar do amor das “moças” [kórai] de sua terra, na medida em que sua natureza é a mesma delas. Em vez de almejar o que está além dos limites da existência de um Ciclope e sofrer com a impossibilidade de realizar seu desejo, ele pode reconhecer quem é, guiando seu desejo amoroso em função desse reconhecimento. O fato de que Polifemo sobreviva aos males de seu amor por Galateia e consiga chegar à idade adulta, tal como aparecerá no canto IX da Odisseia, sugere a influência positiva que a canção exerce em seu caso. Dessa maneira, fica não apenas exemplificada a tese principal que aparece no início do Idílio 11, mas surgem especificações sobre a forma como a poesia deve ser encarada como o único fármaco erótico efetivo.

Nos dois últimos versos do poema, o enunciador teocriteano volta a assumir a voz no primeiro plano da enunciação para arrematar sua reflexão:



οὕτω τοι Πολύφαμος ἐποίμαινεν τὸν ἔρωτα
μουσίσδων, ῥᾷον δὲ διᾶγ᾽ ἢ εἰ χρυσὸν ἔδωκεν.

Fuente: (Teócrito, Idílios 11.80-1)



“Dessa maneira, por fim, Polifemo pastava o amor
com as Musas, e mais fácil vivia do que se gastasse seu ouro.”

A alusão ao “ouro” no verso final pode ser um tipo de crítica à prática de médicos cobrando dinheiro para tratar os males de amor (Gow, 1952, p. 220; Hunter, 1999, p. 243). Nesse sentido, o poema de Teócrito estaria reivindicando uma potência curativa em esferas da vida psicológica não alcançadas pela Medicina. Expandindo um pouco esse horizonte epistemológico para além da área médica, parece possível sugerir que – de forma discreta – ele reivindica para a poesia um papel fundamental na vida humana de modo geral, complementar mesmo às atividades mais amplas da própria Filosofia. Essa é uma das propostas do excelente artigo de Erling B. Holtsmark (1966), que sugere existir aí uma concepção de poesia como auto-iluminação [poetry as self-enlightenment], numa intuição retomada depois na interpretação desse mesmo poema por Érico Nogueira (2012, p. 100-22).9

A meu ver, uma das referências mais importantes no horizonte intelectual de Teócrito para a composição de seu Idílio 11 é o Fedro de Platão. As influências desse diálogo na constituição de aspectos tradicionais do gênero bucólico são amplamente reconhecidas pelos estudiosos – a começar pela descrição do locus amoenus em que Sócrates e Fedro conversam, sob a sombra de uma faia em que cantam as cigarras, ao pé de um riacho fresco –, mas esse reconhecimento nem sempre se faz acompanhar pela compreensão dos posicionamentos de Teócrito face às questões filosóficas colocadas ali. A certa altura do diálogo, Sócrates propõe compreender a poesia como uma divina loucura [manía], valendo observar que Teócrito descreve Polifemo como alguém que ama justamente “com loucuras direitas” [orthaîs maníais] (Idílios 11.11). Ainda assim, as limitações impostas ao discurso poético com base no argumento da “concessão divina” [theía moíra] são consideráveis no Fedro e restringem qualquer pretensão epistemológica que a poesia pudesse reivindicar.10

Teócrito apropria-se dos argumentos apresentados por Platão no Fedro e defende que a paixão erótica é superior a todas as formas de loucura, propondo que o caminho dessa loucura de Eros não é levar diretamente à prática da Filosofia, mas sim à prática da poesia: dessa forma, Polifemo, depois de se apaixonar por Galateia, passa a cantar continuamente sua amada, inclusive descuidando-se de seus outros afazeres (Idílio 11.12-6). Esse elemento do poema, que aparece como uma incongruência insuportável para vários comentadores desse Idílio 11 de Teócrito – isto é, o fato de que a canção surja, ao mesmo tempo, como um dos sintomas do Eros e como o único fármaco capaz de curá-lo11 –, pode ser entendido a partir dessa intertextualidade com o Fedro de Platão. Teócrito propõe entender a loucura poética (o que ele chama de “loucuras direitas” [orthaîs maníais]) como a primeira manifestação da loucura erótica, mas também como o caminho necessário para quem queira conquistar a boa vida: depois de ser ferido por Eros, Polifemo começa a cantar e, na companhia das Musas, compreenderá aspectos fundamentais de seu desejo, reconhecendo enfim quem realmente é.

Teócrito não esclarece aqui seu próprio entendimento acerca do lugar da Filosofia nesse processo, mas é possível conjecturar o seguinte: como a Filosofia é apresentada no Fedro em seu aspecto dialético, parece lícito entender que a súbita manifestação de um elemento dialógico na canção de Polifemo – quando uma voz não identificada (mas talvez relacionável com a de sua mãe) se dirige com um vocativo diretamente ao próprio Ciclope, instando-o ao trabalho – seja compreendida como o indício de um elemento filosófico nesse processo. Se essa sugestão estiver correta, Teócrito vale-se de pressupostos platônicos para defender contra Platão o lugar central da poesia no processo filosófico de conhecimento da realidade na vida humana.12

Apresentação de Virgílio e seu contexto

A vida e a obra de Virgílio situam-se num momento absolutamente crucial da história de Roma, quando sua civilização aprofunda seu diálogo com o legado helênico anterior. Para compreender o projeto poético de um autor como ele é preciso não perder de vista esse contexto histórico. Aqui, isso será feito por meio de uma análise da segunda de suas Bucólicas, a partir daquilo que sua intertextualidade com Teócrito faz emergir como as especificidades de sua obra poética em termos de reflexão sobre o amor.13

Qualquer leitor familiarizado com a poesia grega antiga reconhece imediatamente sua presença nas Bucólicas de Virgílio. No caso específico do poema que nos ocupa aqui, é possível mencionar que a cena se passa na Sicília (21), provavelmente na mesma região onde Polifemo entoa sua canção para Galateia, também não muito longe do mar (25). Enquanto Córidon caminha pelas montanhas e bosques (5), ele pode ver e sentir o cheiro da vida rural acontecendo (11 olentis ervas; 66 aspice). O sol está a pino num dia de verão. Pã e as Ninfas são divindades familiares nessa tradição. Todos os personagens nesse mundo rústico têm nomes teocriteanos, com as exceções significativas das figuras urbanas de Aléxis e seu mestre Iolas. A fauna e a flora são extraídas principalmente da tradição bucólica de Teócrito, incluindo bois, ovelhas, cabras, cigarras e lagartos, assim como faias, espinhais, alfenas, jacintos e outras plantas floríferas. Ainda que as diferenças possam ser significativas também, como bem sugerido por Du Quesnay (1979, p. 39-40), esses ecos são evidentes e ajudam a situar o poema de Virgílio no âmbito de uma tradição de poesia bucólica.

Tal como no Idílio 11 de Teócrito, aqui também há uma introdução de caráter paratextual que ajuda a situar o contexto de uma canção de amor não correspondido. Ao contrário do que acontece lá, contudo, essa introdução é mais direta e não apresenta nenhuma tese específica, oferecendo apenas uma breve descrição do contexto em que a tal canção é entoada:



Formosum pastor Corydon ardebat Alexin,
delicias domini, nec quid speraret habebat.
tantum inter densas, umbrosa cacumina, fagos
adsidue ueniebat. ibi haec incondita solus
montibus et siluis studio iactabat inani

Fuente: (Virgílio, Bucólicas 2.1-5)



O pastor Córidon ardia-se pelo formoso Aléxis,
delícias do seu senhor, ainda que não tivesse o que esperar.
Muito frequentemente em meio a densas faias, de cumes umbrosos,
ele vinha. Aí, sozinho, estes despropósitos
lançava para os montes e bosques, num esforço inane

Aqui, o enquadramento narrativo explicita que Córidon arde de amores por Aléxis, sem sucesso porque seu amado é desfrutado por um rival mais poderoso (chamado apenas de dominus), e, ainda que sem qualquer esperança de reverter a situação, ele frequenta lugares agrestes isolados e entoa sua canção sozinho.14 É importante notar que essa canção é descrita como incondita, numa referência à sua falta de polimento formal, mas também ao seu despropósito circunstancial (afinal, seu esforço poético é sem nenhum resultado, studio... inani). Ao contrário do que acontece no Idílio 11, quando Polifemo tenta inicialmente convencer a amada da conveniência do amor entre eles – uma vez que a canção é entoada por Polifemo na direção do mar, onde habita Galateia –, nada no poema de Virgílio permite supor que Córidon esteja cantando para tentar persuadir Aléxis a amá-lo. Eles estão fisicamente separados e esse contraste entre o espaço do campo e o espaço da cidade é um aspecto fundamental da proposta virgiliana. Ainda assim, Córidon insiste em continuar frequentando esses lugares ermos e não há qualquer especificação de seus propósitos com isso (Du Quesnay, 1979, p. 47).

Assim têm início os incondita de Córidon:



O crudelis Alexi, nihil mea carmina curas?
nil nostri miserere? mori me denique cogis.

Fuente: (Virgílio, Bucólicas 2.6-7)



“Ó cruel Aléxis, em nada te ocupas de minhas canções?
Não tens pena de nós? Por fim, me obrigas a morrer [...].”

A queixa contra o amado expressa-se a partir da constatação de que suas canções não parecem afetá-lo e, portanto, de que seu amor não é correspondido. Diante da miséria em que o amante solitário se encontra, ele sugere que a morte talvez seja o único caminho à sua disposição. É lícito supor que Córidon tenha tentado em algum momento anterior apresentar sua canção diretamente para Aléxis, mas – ainda que isso tenha acontecido e que o amado realmente não tenha mostrado interesse por sua proposta – o fato de que ele continue frequentando lugares ermos para entoar seus incondita e teime em se surpreender com sua inefetividade, chegando a cogitar o suicídio como saída para a indiferença do amado, deveria aparecer como algo ridículo (Paraskeviotis, 2013, p. 116-7).

Isso aparece bem demonstrado por Du Quesnay (1979, p. 40-1), em seu trabalho com as ambiguidades por trás da representação de figuras rústicas na tradição poética greco-romana, sendo depois aprofundado pelo artigo de Paraskeviotis (2013). Tal como já sugerido aqui ser o caso de um Polifemo apaixonado, há algo de cômico na apresentação de um homem rústico que se apaixona por uma pessoa da cidade e se desespera com o fracasso de estratégias totalmente inapropriadas para conquistar seu amor. Esse aspecto será reforçado em trechos da própria canção de Córidon, nos quais – sem qualquer perspectiva de realidade – ele se projeta em comparações com figuras célebres da tradição mitológica do campo, como Anfion, Dáfnis, Pã e Páris Alexandre.

A forma como Córidon se compara com Anfion (24) e Dáfnis (26) evoca um sorriso: a discrepância é mais aparente do que a semelhança. Um humor gentil que permeia todo esse poema deriva da consciência constante do leitor de que Córidon está na verdade representando o papel do Polifemo de Teócrito. Mas o lado humorístico do poema não deve ser superestimado. É característico da poesia helenística em geral e dos Idílios em particular tratar personagens do mito e das classes sociais mais baixas como membros da mesma classe social à qual pertencem o poeta e seus leitores, explorando as incongruências resultantes para fins de efeito humorístico. Mas são igualmente característicos o interesse profundo na psicologia e na vida emocional do indivíduo e uma preocupação séria com a humanidade comum do ser humano. Como estudo de um amante rejeitado, a segunda das Bucólicas é tão séria e perspicaz quanto qualquer elegia romana. Humor e seriedade não são mutuamente excludentes. (Du Quesnay, 1979, p. 41)15

O que pode estar por trás da representação que Virgílio propõe desse pastor, em seu esforço quixotesco de recitar frequentemente seus sofrimentos de amor menosprezado em regiões ermas e solitárias? A continuação de seus incondita dá pistas de como se deve entender isso.



nunc etiam pecudes umbras et frigora captant,
nunc viridis etiam occultant spineta lacertos,
Thestylis et rapido fessis messoribus aestu
alia serpyllumque herbas contundit olentis.
at mecum raucis, tua dum uestigia lustro,
sole sub ardenti resonant arbusta cicadis.

Fuente: (Virgílio, Bucólicas 2.8-13)



“Agora até os gados gozam sombras e frescores;
agora até os espinhais ocultam verdes lagartos
e Téstilis para os ceifeiros exauridos pelo voraz verão
mistura alhos e serpilho com ervas olentes.
Mas, enquanto ilumino os teus rastros, comigo
sob o sol ressoam os arbustos com roucas cigarras.”

Nessa breve descrição do espaço e do tempo em que Córidon se encontra durante a recitação de seus versos, insinuam-se os termos do impasse amoroso que ele vive: está na hora da sesta, quando o sol arde ao meio-dia, e mesmo os animais podem desfrutar do descanso oferecido pelo campo; os ceifeiros, depois de uma manhã de trabalho produtivo, descansam e se regozijam com a culinária de Téstilis; apenas Córidon, em desvairamento provocado por sua paixão, persegue os rastros imaginários de Aléxis, cansando-se enquanto caminha sob o sol ardente. Aqui, as roucas cigarras não são elementos meramente ilustrativos do cenário bucólico, mas, em sua prática de um canto ininterrupto e improdutivo, parecem simbolizar o próprio Córidon: tal como as cigarras da fábula esópica são censuradas por negligenciar o trabalho útil, enquanto se dedicam ao esforço inane do canto, Córidon aparece sub-repticiamente criticado pelo mesmo motivo.

A continuação do trecho é ilustrativa do desarranjo em que esse pastor se encontra com relação a seu contexto natural:



nonne fuit satius tristis Amaryllidis iras
atque superba pati fastidia ? nonne Menalcan,
quamuis ille niger, quamuis tu candidus esses?
o formose puer, nimium ne crede colori:
alba ligustra cadunt, uaccinia nigra leguntur.
despectus tibi sum, nec qui sim quaeris, Alexi,
quam diues pecoris, niuei quam lactis abundans.

Fuente: (Virgílio, Bucólicas 2.14-20)



“Não seria melhor as iras amaras de Amarílis
e seus soberbos fastios sofrer? Ou Menalcas,
embora ele seja negro, enquanto tu és tão cândido?
Ó formoso rapaz, não te fies excessivamente na cor!
Alfenas alvas caem, jacintos negros são colhidos.
Desprezado por ti sou e não perguntas quem eu seja, ó Aléxis,
quão rico de gado e quão abundante de níveo leite.”

O v. 16, no qual é apresentado o contraste entre a cor da pele de alguém que executa obras externas no campo e a de quem fica na cidade, passando a maior parte do tempo em ambientes fechados (Clausen, 1994, p. 68-9), oferece uma das chaves principais de interpretação desse poema. Córidon – embora seja um pastor do campo – deixa sua paixão se guiar por valores estéticos urbanos, preferindo a beleza de alguém que leva uma vida totalmente diversa da sua, em vez de se permitir afetar pelo que pode haver de belo em quem vive como ele próprio. A segunda referência a Téstilis é emblemática disso: essa mulher, que é quem sacia com alimento os exaustos ceifeiros (v. 10), insiste em obter certos presentes de Córidon, mas não tem sucesso (v. 43). A pergunta que o eu-lírico da canção de Córidon parece hesitar em fazer é: por que eu amo o cruel Aléxis, que me rejeita, mas rejeito Téstilis, que me ama?16

O contraste profundo entre o sujeito do amor e o objeto amado está presente também no Idílio 11 de Teócrito: da mesma forma que lá, aqui há uma tentativa de convencer o objeto amado a se submeter às especificidades do sujeito; em ambos os casos, a tentativa é fracassada porque a estratégia de persuasão que parece mais apropriada para o sujeito não surte qualquer resultado positivo junto ao objeto (Córidon sugere aspectos “atraentes” da vida campesina para Aléxis, mas prefere não perceber quão desagradáveis esses aspectos necessariamente deveriam parecer para um jovem urbano como seu amado).17 Diferentemente do Idílio 11 de Teócrito, contudo, esse fracasso não se faz acompanhar por uma reflexão capaz de levar o sujeito a reconhecer em si mesmo – ou melhor, na incompatibilidade entre si mesmo e o objeto amado – a impossibilidade de sucesso em sua reivindicação amorosa.

No fim de sua canção, Córidon chega a reconhecer seu fracasso, apresentando uma imagem pungente do desperdício de seus esforços. Cumpre observar que isso aparece, em termos discursivos, com jogos de evocação do próprio Córidon ora em 2ª pessoa, ora em 1ª pessoa:



rusticus es, Corydon; nec munera curat Alexis,
nec, si muneribus certes, concedat Iollas.
heu heu, quid uolui misero mihi! floribus Austrum
perditus et liquidis inmisi fontibus apros.

Fuente: (Virgílio, Bucólicas 2.56-9)



“És um rústico, Córidon! Aléxis não se ocupa de teus presentes
e, mesmo que disputes com presentes, Iolas não o perderá para ti.
Ai, pobre de mim! O que eu quis para mim mesmo? Perdido, impeli
contra as flores o Austro e, contra as fontes claras, javalis.”

Esse reconhecimento do fracasso não leva a um movimento de autocrítica do sujeito que ama. Muito antes pelo contrário, ele parece motivar uma renovação do ímpeto para atacar, agora com imprecações dirigidas contra o objeto amado (que sequer está presente na cena, reforçando assim com sua ausência o caráter despropositado e ridículo do procedimento de Córidon):



quem fugis, ah, demens? habitarunt di quoque silvas
Dardaniusque Paris. Pallas quas condidit arces
ipsa colat; nobis placeant ante omnia siluae.
torua leaena lupum sequitur, lupus ipse capellam,
florentem cytisum sequitur lasciva capella,
te Corydon, o Alexi: trahit sua quemque uoluptas.

Fuente: (Virgílio, Bucólicas 2.60-65)



“De quem foges, ah, demente? Deuses também habitaram bosques,
assim como o dardânio Páris. Palas habita as cidadelas
que ela própria fundou; a nós, que agradem antes de tudo os bosques.
A torva leoa persegue o lobo; o lobo, à cabra;
a lasciva cabra persegue a flor do codesso;
Córidon, a ti, ó Aléxis; pois o desejo de cada um é o que o arrasta.”

Aqui, talvez apareça a primeira formulação de Virgílio nesse poema que tenha um valor de tese. Se, no Idílio 11, algo como uma tese surge no âmbito do enquadramento enunciativo (enquanto formulação do enunciador teocriteano), diversamente, na segunda das Bucólicas, uma fórmula de valor geral é pronunciada por Córidon: trahit sua quemque uoluptas. E essa constatação pessimista sobre as possibilidades de um indivíduo resistir às exigências de seu próprio desejo vem acompanhada na imediata sequência por uma indagação igualmente pessimista: depois de constatar que o dia termina e, com ele, a faina dos trabalhos diários, o eu-lírico nota a desmesura de um amor que não dá nem sinal de trégua. Afinal, quis enim modus adsit amori? Ou seja: “qual então é a medida do amor?” (Bucólicas 2.68). Assim, o amante parece enfim reconhecer-se incapaz de enfrentar as exigências ilimitadas do amor, que se faz sentir não apenas no desejo de submeter o objeto amado por meio da violência (como indicam as alusões a uma cadeia alimentar predatória), mas também na capacidade de arrastar o próprio amante.

Há uma diferença radical entre a visão poética de Teócrito sobre éros (Idílios 11) e aquela que Virgílio apresenta, nas palavras de Córidon, sobre amor (Bucólicas 2). Apesar dos eventuais ecos e semelhanças entre os textos – como nas imprecações com que Polifemo e Córidon se esforçam por denunciar para si mesmos os próprios delírios amorosos, a fim de passar à execução de trabalhos produtivos (Idílios 11.72-6; Bucólicas 2.69-72)18 – o desfecho de seus esforços não poderia ser mais diverso: Polifemo resolve encontrar alguém para substituir Galateia, talvez uma outra ainda mais bela, e suas chances de sucesso são reforçadas por sua referência a garotas de sua própria terra já interessadas anteriormente por ele; Córidon, por outro lado, propõe-se a encontrar outro Aléxis sob a justificativa de que este aí não o quer: inuenies alium, si te his fastidit, Alexin. Tudo o que Córidon revela sobre Aléxis em sua canção, e que pode ser reforçado pelas associações tradicionais de seu nome, sugere que qualquer outro Aléxis será um puer delicatus et urbanus e, como tal, rejeitará quaisquer investidas de um pastor rusticus como Córidon. É significativo que não haja referência aí a possíveis amantes alternativos e que mesmo sua alusão a um envolvimento com Amarílis venha matizada pela noção dos fastios que precisou sofrer. Contrariamente ao que acontece com Polifemo, a canção de Córidon encerra-se com a reiteração do nome do amado Aléxis e essa é a última palavra do poema inteiro. Nesse sentido, a segunda das Bucólicas parece sugerir que o pastor está fadado a continuar sofrendo por causa de um amor não correspondido: seja com esse mesmo Aléxis, seja com outro, pouco importa, ele não está curado e ainda continuará padecendo sofrimentos amorosos. Portanto, ao contrário do que pode ser proposto a partir de Teócrito (Idílios 11), aqui a poesia não se revela um remédio eficaz, mas apenas um meio de perpetuação e aprofundamento dos males de Córidon, uma vez que engendra ilusões acerca de si mesmo e seu amor.

Conclusão

Sabemos que essa questão dos “remédios de amor” é um tema importante para os contemporâneos de Virgílio, como indicam os tratamentos que Lucrécio (De rerum natura 4.1037-287) e Ovídio (Amores, Ars amatoria, Remedia amoris) desenvolvem poucas décadas antes e depois do período de publicação das próprias Bucólicas. Essas obras podem orientar uma especulação sobre as possíveis motivações filosóficas – de caráter epicurista – por trás daquilo que Virgílio introduz em sua representação do amor, em distinção ao que Teócrito propõe alguns séculos antes sobre o éros. Nesse sentido, o jogo entre imitatio e aemulatio que escritores latinos estabelecem com seus predecessores helênicos revela todo o seu potencial numa leitura intertextual como a que foi avançada aqui: entre semelhanças e diferenças, uma tradição poética se constitui no diálogo com o passado, enquanto se apresenta como um meio de reflexão crítica sobre o presente. É de se supor que os exageros testemunhados pelo contexto histórico de Virgílio tenham motivado a violência subjacente ao seu entendimento do amor. Uma leitura atenta das próprias Bucólicas permite entrever os horrores de décadas de guerra civil e espoliação do campo, não sendo preciso aprofundar as referências epicuristas para compreender as ambiguidades de um verso como: omnia uincit Amor et nos cedamus Amori. É sob esse signo que se encaminha a conclusão de suas Bucólicas e tudo indica que Virgílio manterá uma atitude constante de desconfiança face às manifestações mais efusivas do Amor, em que pese sua enorme admiração pelas obras gregas compostas sob a égide do Éros.

In memoriam

Marcus Vinícius Tavares da Silva (01/12/1959 - 20/03/2023)

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Notas

1 A base das lições textuais seguidas aqui é a das edições de Gow (1952), para Teócrito, e Clausen (1994), para Virgílio.
2 Para outros apontamentos e referências bibliográficas sobre essas questões: Silva (2022, p. 380-427).
3 No original: “Recent scholarship has come to the fruitful conclusion that, despite their affinities, Hellenistic poets were not all products of the same mold, and their work did not follow any one set of aesthetic rules such as brevity, commonly associated primarily with Callimachus. The loss of most of their works and the scarcity of available secondary evidence hamper a comprehensive appraisal of strategies and outcomes. Nevertheless, the remains show fairly clearly that poets chose not only different genres but also different ways of handling the challenges they faced in balancing the weight of the tradition, negotiating favorable reception and, not least, securing patronage. Scholars seeking to define the poetic individuality of Hellenistic poets have often turned to their statements about poetry and other metapoetic strategies.”
4 Sobre a falta de especificidade desse enunciador, ainda mais obscuro do que o próprio Nícias: Kyriakou (2018, p. 99).
5 Aspectos formais do poema sugerem um jogo talvez deliberado com asperezas métricas e linguísticas (Hunter, 1999, p. 218-9).
6 Segundo a edição de Pontani, eis o texto no original: ζητεῖ Ἀριστοτέλης [fr. 172 Rose] πῶς ὁ Κύκλωψ ὁ Πολύφημος μήτε πατρὸς ὢν Κύκλωπος (Ποσειδῶνος γὰρ ἦν) μήτε μητρὸς Κύκλωψ ἐγένετο αὐτός. ἑτέρῳ δὲ μύθῳ ἐπιλύεται· καὶ γὰρ ἐκ Βορέου ἵπποι γίνονται, καὶ ἐκ Ποσειδῶνος καὶ τῆς Μεδούσης ὁ Πήγασος ἵππος· τί δ’ ἄτοπον ἐκ Ποσειδῶνος τὸν ἄγριον τοῦτον γεγονέναι, ὥσπερ καὶ τὰ ἄλλα τὰ ἐξ αὐτοῦ ἀναλόγως τῇ θαλάττῃ ἄγρια γεννᾶται ἢ τερατώδη ἢ παρηλλαγμένα;
7 As três referências à mãe de Polifemo ocorrem nos versos 26, 54 e 67, sempre em conexão com Galateia. Seu pai, Poseidon, não é mencionado nenhuma vez. Sobre essa questão: Kyriakou (2018, p. 101, n. 176).
8 Comentando o mesmo trecho, Spofford (1969, p. 33-4) afirma: “The passage is amusing because the language about fire does not become figurative. For a moment it looks as though that were happening; the third line is vague enough to suggest the language of love. But the gruesome ‘foreshadowing’ of Odysseus’ blinding of the Cyclops in the next line shows that nothing was further from Polyphemus’ mind than a play on words. Theocritus has created false expectation in such a way as to compel comparison of the rustic and cultivated. Polyphemus’ ardor is recognized as the emotional state that makes talk about fire and a wound relevant to the subject of love. But the expectation of figurative language proves too sophisticated. The surprising meaning of Polyphemus’ words is a joke on us.”
9 Em seu livro recente, Kyriakou (2018) contrapõe-se diametralmente a tal entendimento, propondo a existência de uma dimensão irônica que minaria a representação da poesia como fármaco para lidar com o amor no Idílio 11. Segundo a estudiosa: “In Theocritus, though, song fails to help the characters not only to satisfy their passion but also to fall out of love, or at least place it in some kind of (soberer) perspective. Song is difficult to master and it does offer pleasure, since this is its nature, as, for example, it is in the nature of animals to graze and mate, while heroes (and heroines) suffer and achieve fame in song. Song, though, is not by nature a panacea or even a cure. At most, it is a palliative that allows the lovesick to perpetuate their torment, as illustrated mainly in the Cyclops pieces. The failure of the characters to attract the objects of their desire or secure their loyalty is a manifestation of these limitations.”
10 Para referências bibliográficas sobre esse problema: Silva (2022, p. 295-7).
11 Em seu comentário, Gow (1952, p. 211) afirma o seguinte: “Song, says Theocritus, is the only cure for love, as Polyphemus found when in love with Galatea. He was distraught with passion and neglected all his affairs, but he discovered the remedy (17) and thus would hymn his love. Theocritus is here describing the symptoms of Polyphemus’s affliction, and if one of them was singing, his whole paragraph, which asserts that it is not a symptom but a cure, falls to pieces.”
12 Concomitantemente, pode ser que Teócrito estivesse também sugerindo o que existe de poético no próprio empreendimento filosófico de Platão, na linha do que um diálogo como o Fedro indica bem. Nesse sentido, ele talvez prenuncie o entendimento que apareceria séculos depois no tratado Do Sublime (13.3).
13 Como colocado por Du Quesnay (1979, p. 36): “The Roman aristocracy was quite consciously trying, as the Ptolemies had done for Alexandria before, to make Rome the cultural centre of the world and a city worthy of her position as the caput rerum.”
14 Em seu comentário à segunda das Bucólicas, Clausen (1994, p. 61) afirma que o primeiro verso desse poema consiste numa imitação de Virgílio de uma estratégia composicional helenística em que o sujeito do amor e seu objeto são unidos num único e mesmo verso por um verbo. A título de exemplo, o comentador menciona justamente um verso de Teócrito (Idílio 11.8): ὡρχαῖος Πολύφαμος, ὅκ᾽ ἤρατο τᾶς Γαλατείας.
15 No original: “Corydon’s comparison of himself with Amphion (24) and Daphnis (26) evokes a smile: the discrepancy is more apparent than the similarity. A gentle humour which pervades the whole poem derives from the reader’s constant awareness that Corydon is acting out the role of Theocritus’ Polyphemus. But the humorous side of the poem should not be overemphasized. It is characteristic of Hellenistic poetry in general and of the Idylls in particular to treat characters from myth and from the lowest social classes as members of the same social class as that to which the poet and his readers belong and to exploit the resulting incongruities for humorous effect. But equally characteristic are the insatiable interest in the psychology and emotional life of the individual and a serious concern for the common humanity of man. As a study of a rejected lover the second Eclogue is as serious and searching as any Roman elegy. Humour and seriousness are not mutually exclusive.”
16 À luz dessas considerações, causa espanto a interpretação defendida recentemente por Erick France Meira de Souza (2019), em sua tese sobre as Bucólicas. Além de propor que a referência à cor negra da tez de Menalcas seja um anúncio do bom acolhimento de estrangeiros e mestiços em Roma, ele interpreta as alusões ridículas de Córidon a figuras pastoris do mito tradicional como constituintes de uma uma "atmosfera mística" de iniciação no canto em ambiente fúnebre. Para detalhes dessa leitura extravagante: Souza (2019, p. 73-80).
17 É certo que ele demonstra uma consciência relativa dessa incompatibilidade, ainda que prefira continuar acreditando que será capaz de superá-la. Tal é o sentido da escolha de expressões como sordida rura e humilis... casas, numa passagem como a de Bucólicas 2.28-30: “O tantum libeat mecum tibi sordida rura / atque humilis habitare casas, et figere cervos, / haedorumque gregem viridi compellere hibisco!” – Em tradução: “Ah! Se te aprouvesse estes meus sórdidos campos / e cabanas humildes habitar, caçar cervos, / e a grei dos cabritos guiar rumo ao verde hibisco!”
18 Esses ecos são bem analisados por Du Quesnay (1979, p. 56-7).
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