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O infanticídio à luz das emoções na Medeia de Eurípides

The infanticide in the light of emotions in Euripides’ Medea

Thais Portansky
Universidade de São Paulo, Brasil., Brasil

O infanticídio à luz das emoções na Medeia de Eurípides

Classica - Revista Brasileira de Estudos Clássicos, vol. 36, pp. 1-18, 2023

Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos

Recepción: 04 Febrero 2023

Aprobación: 07 Marzo 2023

Resumo: Neste artigo, discute-se o infanticídio cometido por Medeia na peça homônima de Eurípides a partir da representação das emoções da personagem ao longo da trama. Momentos antes do filicídio, Medeia profere um monólogo em que debate se deve prosseguir com o ato ou poupar a vida de seus filhos (1021-80). Esse momento crítico da peça já foi lido como o emblema da cisão entre razão (βούλευμα) e emoção (θυμός) que perpassaria a tragédia euripidiana. Entretanto, para compreender o que move Medeia a cometer infanticídio é necessário se ater aos seus discursos. Desse modo, com base na abordagem aristotélica das emoções e no trabalho de David Konstan (2006), argumenta-se que, em vez de ser tomada pela raiva, Medeia convence-se de que a morte de seus filhos é necessária a fim de reparar a injustiça e o dano que Jasão lhe inflige ao quebrar a φιλία outrora estabelecida pelo seu casamento.

Palavras-chave: infanticídio, emoções, raiva, ódio, Eurípides.

Abstract: This article discusses the infanticide committed by Medea in Euripides’ homonymous play considering the representation of the character’s emotions throughout the plot. Moments before the filicide, Medea utters a monologue in which she debates whether to proceed with the act or spare the lives of her children (1021-80). This critical moment in the play has already been read as the emblem of the split between reason (βούλευμα) and emotion (θυμός) that would permeate this Euripidean tragedy. However, to understand what moves Medea to commit infanticide, it is necessary to analyze her speeches. Thus, based on the Aristotelian approach to the emotions and the work of David Konstan (2006), it is argued that, instead of being taken by rage, Medea becomes convinced that the death of her children is necessary to repair the injustice and damage that Jason inflicts on her by breaking the φιλία once established by their wedding.

Keywords: infanticide, emotions, anger, hatred, Euripides.

Considerações iniciais1

Neste artigo, discute-se a motivação da protagonista para cometer infanticídio como ato de vingança contra Jasão na peça Medeia, de Eurípides. Após ser abandonada pelo marido, que está prestes a se casar com a princesa de Corinto, Medeia vinga-se através de duas séries de duplo homicídio. Na primeira, ela assassina Creonte, rei de Corinto, e sua filha; na segunda, mata seus dois filhos. A decisão pelo filicídio é precedida de um longo monólogo em que Medeia se defronta com o dilema de prosseguir com a vingança ou poupar a vida de seus filhos. Esse momento crítico da peça já foi lido como o emblema da cisão entre razão (βούλευμα) e emoção (θυμός) que perpassaria a tragédia euripidiana. Se admitíssemos essa leitura, seria possível admitir também que Medeia não é capaz de controlar suas emoções e, portanto, mata os filhos em consequência de sua fúria. Nesse sentido, questiona-se quais são as forças que operam em Medeia. O infanticídio seria consequência de uma loucura irrefletida e irracional que a arrasta sem que tenha autonomia diante de seus atos? São essas questões que norteiam a discussão que se segue.

Medeia entra em cena

Durante o prólogo da peça de Eurípides, a audiência toma conhecimento do estado de Medeia pelo discurso da nutriz. Enfatizando a desonra e injustiça sofridas, a nutriz demonstra inquietude quanto ao que Medeia pode estar tramando. Por meio desse primeiro discurso, descobrimos que a protagonista está sem se alimentar, com dores no corpo, chorosa, cabisbaixa e que ignora palavras de consolo (24-9). O relato denota uma mulher abalada, o que parece ser confirmado quando, interrompendo o prólogo, Medeia profere lamentos de dentro de sua casa, longe do público,2 gerando expectativa quanto ao primeiro momento da protagonista em cena.

Embora o público não possa vê-la, os lamentos da protagonista continuam até atrair as mulheres coríntias, que se aproximam para saber o que se passa. Entretanto, o párodo é continuamente interrompido pelo lamento de Medeia. A anomalia de um párodo a três, isto é, o diálogo entre coro e nutriz interrompido pelo clamor da protagonista, que, como nota Wyles (2014, p. 51-2), é uma ocorrência única nas tragédias áticas supérstites, enfatiza a força disruptiva das emoções de Medeia. Ademais, a protagonista não interage com as personagens em cena, aumentando a sensação de caos. Contudo, a expectativa de vislumbrarmos Medeia com um estado de ânimo abalado é frustrada quando enfim a personagem entra em cena. Em vez de uma figura tresloucada ou lastimosa, Medeia aparece com um discurso organizado e repleto de recursos retóricos tecidos para sua audiência primeira.

Essa alteração na disposição da protagonista, que se repetirá ao longo da tragédia, provou-se um desafio e uma incógnita para os estudiosos. Gellie (1988), a título de exemplo, defende que os “diferentes lados” de Medeia estariam de acordo com a necessidade narrativa da peça e não com uma personalidade una da protagonista. Medeia não estaria dividida entre razão e emoção, mas seus modos de sentir e de pensar, ao longo de toda peça, seriam incompatíveis entre si. Também Gould (2012, p. 552), de modo não muito distinto, faz menção a “Medeias” e coloca suas alterações em termos de transformações. De uma voz incoerente e praguejante, Medeia se transformaria em uma “brilhante oradora, vítima patética, manipuladora desonesta, vingadora exultante (e estranha), mãe atormentada até a sua metamorfose final (...) em uma figura demoníaca...” (trad. nossa).3

Entretanto, concordando com Van Emde Boas (2017, p. 360), no caso de Medeia, a caracterização da personagem deve ser compreendida não a despeito de suas mudanças psíquicas, mas por causa delas. Já foram reconhecidos pela crítica a habilidade oratória de Medeia e seu êxito em persuadir os interlocutores com o propósito de obter de cada um o necessário para os seus objetivos.4 Uma vez que Medeia tem o domínio de seus discursos5 e subordina suas emoções aos seus objetivos, como a entrada da protagonista demonstra, parece improvável que o infanticídio seja consequência de uma loucura irrefletida. Nesse sentido, propõe-se uma análise das emoções de Medeia como modo de compreender o que a move a cometer infanticídio.

A raiva de Medeia

Entre seus lamentos antes de entrar em cena, Medeia declara desejar ver o marido e a princesa mortos porque ousaram ser injustos com ela primeiro (163-5). Esses versos mencionados se coadunam ao princípio grego segundo o qual um prejuízo infligido sem motivo é reputado como uma injustiça e, portanto, é lícito causar danos em retribuição.6 Contudo, há na peça uma polifonia no que diz respeito às motivações para a reação da protagonista.

Obtuso sobre os planos de vingança, Jasão entra em cena para se defender antecipadamente das acusações de ter abandonado seus amigos (459-60, 463-4). O herói não parece considerar que a separação afeta de alguma forma o status de sua φιλία,7 e, por isso, apresenta-se como provedor de Medeia e de seus filhos no exílio.

Ignorando a oferta de ajuda, Medeia diz que aproveitará a ocasião para aliviar a alma ao maldizê-lo (473-4). Assim, a protagonista retoma, agora de modo ordenado, os argumentos já levantados na tragédia anteriormente. Medeia salvou Jasão na Cólquida, e para isso traíra seu pai (475-85); matou Pélias, destruindo toda a sua casa (486-7); deu-lhe filhos, tornando a troca de leito injustificável (488-91). A linguagem quase jurídica na fala de Medeia indica que a protagonista considera sua união a Jasão mais do que um mero casamento tradicional, ela o vê como uma aliança política igualitária.8

A união entre Medeia e Jasão se distingue dos costumes da Atenas do século V AEC, e até mesmo do passado heroico. O casamento no período clássico é visto como um evento natural e desejável,9 mas que traz para a patrilocalidade um ser intruso: a mulher. Potencialmente dividida entre sua família original e matrimonial, os ritos da cerimônia solidificariam, de forma simbólica, a transferência da mulher de um lar a outro.10 A excepcionalidade do casamento de Medeia, como nota Cairns (2014, p. 123), é consequência das típicas concepções ou costumes nupciais levados a sua máxima potência. Por um lado, Medeia assume a forma de “inimigo interno”, que é ressaltada por sua condição de estrangeira; por outro, contudo, ela rompe com sua família de modo inconciliável ao se casar sem permissão de seu pai, fugir de sua pátria e assassinar seu irmão. Assim, embora Medeia pudesse, enquanto estrangeira, manter-se simbolicamente na ambígua margem da lealdade entre as duas casas – a paterna e a nupcial – a ruptura com a primeira é tão veemente que ela interrompe também a possibilidade de ter sua lealdade a Jasão questionada.

Em contrapartida ao que Medeia fez por ele, Jasão quebrou suas juras (490-5). Medeia deixou um rastro de inimigos atrás de si ao auxiliá-lo em suas conquistas e agora pergunta ao herói o que fazer, visto que destruíra qualquer possibilidade de refúgio em seu favor (χάριν, 508). De modo extremo, Medeia entende que cumpriu os requisitos da sua φιλία, e exige que Jasão a cumpra em retorno.

A reciprocidade envolvida na relação de φιλία é enfatizada por Aristóteles no Livro VIII da Ética a Nicômaco.

Ora, as pessoas amam (φιλοῦσιν) por três razões. Para o amor (φιλήσει) dos objetos inanimados não usamos a palavra “amizade” (φιλία), pois não se trata de amor mútuo (ἀντιφίλησις), nem um deseja bem ao outro (seria, com efeito, ridículo se desejássemos bem ao vinho; se algo lhe desejamos é que se conserve, para que continuemos dispondo dele); no tocante aos amigos (φίλῳ), porém, diz-se que devemos desejar-lhes o bem no interesse deles próprios. Mas aos que desejam bem dessa forma só atribuímos benevolência (εὔνους), se o desejo não é recíproco; a benevolência, quando recíproca (ἀντιπεπονθόσι), torna-se amizade (φιλίαν). (Aristot. Nic. Eth. 8.2, 1155b27-34. Tradução de Vallandro e Bornheim)

Ao distinguir três modos de amar, Aristóteles estabelece dois critérios para a diferenciação: o critério da reciprocidade (ἀντιφίλησις) e o de querer bem a alguém (βούλησις ἐκείνῳ ἀγαθοῦ). Para que haja φιλία, é necessário que se cumpram essas duas especificações conjuntamente. Aristóteles destaca que, na ocorrência de o bem querer ser unilateral, o que existe é benevolência (εὔνους). φιλία, portanto, é desejar reciprocamente o bem. Já no Livro II da Retórica, Aristóteles estabelece que as causas da φιλία são “o favor (χάρις), o fazê-lo sem que seja solicitado e o não divulgá-lo, após tê-lo prestado, pois assim parece que se agiu por causa desse amigo e não por uma outra razão” (Aristot. Rh. 2.4, 1381b35-7. Trad. Isis Borges B. de Fonseca).

Com base nessa asserção, Konstan (2006) argumenta que Aristóteles exclui qualquer elemento de obrigação entre as partes da amizade. De fato, parece contraditória a ideia de obrigação quando se espera de amigos favores não requeridos. Além disso, Aristóteles constrói a imagem do amigo como alguém altruísta, pois são amigos “aquele[s] que se regozija[m] com nossos bens e sofre[m] com nossas tristezas sem outra razão que o nosso interesse” e “aqueles que consideram como bens e males as mesmas coisas que nós, assim como os que têm em comum conosco amigos e inimigos” (Aristot. Rh. 2.4, 1381a3-5; 7-9. Trad. Isis Borges B. de Fonseca).

Entretanto, ainda que espontâneo, é o favor que torna (ποιητικά, 1381b35) alguém amigo, isto é, ele é condição para o laço de amizade. Alguém que não socorre seu amigo quando necessário falha em atender o que é esperado dessa relação. Para Medeia, Jasão interrompe, unilateralmente, a φιλία estabelecida por seu casamento. Ela lhe fora leal em excesso, prestando-lhe favores e cumprindo todos os aspectos do que entende ser basilar para sua união, sendo-lhe companheira de aventuras e mãe de seus dois filhos homens.

Jasão, por sua vez, rebate a “eloquente falação” (525) de Medeia, desdenhando dos favores (χάριν, 526) da heroína em suas conquistas, e dando crédito somente a Eros e a Afrodite pelo auxílio prestado (526-31).11 Jasão argumenta também que, a partir da união dos dois, ela obtivera mais benefícios do que ele, visto que agora reside na Grécia; conhecendo, assim, a justiça e obtendo fama.

Além de o novo casamento não romper com a φιλία entre eles, Jasão defende que o próprio ato fora uma demonstração de amizade para com Medeia, pois assim ele poderia cuidar de seus filhos após ter outros com a princesa de Corinto, reforçando que suas ações assegurariam um futuro para os seus filhos já nascidos e para Medeia. Ademais, o herói enfaticamente nega não gostar mais do leito da protagonista, nem desejar o leito da princesa (555-8), mas atribui ao “leito ferido” a causa da reação intempestiva de Medeia.

Há na fala de Jasão lugares-comuns para que o leitor moderno atrele o que foi alegado a um possível ciúme sentido pela protagonista. Sanders (2013) defende que o alto número de ocorrências dos termos para “leito” (λεχός, λέκτρον, εὐνή, κοίτη), usados na peça como metonímia para matrimônio, indica que o relacionamento entre Medeia e Jasão tinha uma forte ligação sexual.

Não há na Retórica uma análise de alguma emoção semelhante ao ciúme romântico ou sexual, o que não prova em definitivo que os gregos antigos não entendiam ou sentiam essa emoção da forma como nós a sentimos, visto que à Retórica, enquanto um tratado de instrução sobre como o orador poderia instrumentalizar as emoções do júri, não seria útil um exame do ciúme erótico. Por essa razão, a análise do ciúme na Antiguidade mostra-se mais tortuosa do que as demais emoções presentes no corpus aristotélico.

Dessa forma, Konstan (2006, p. 222) investiga o termo ζηλοτυπία, comumente traduzido para as línguas modernas como “ciúme”, datado do século IV AEC, após o período áureo da produção trágica ateniense. O uso contextual, contudo, examinado em diversas fontes filosóficas e literárias, não corresponde ao requisito básico do que o autor entende ser o ciúme moderno: o medo da perda do objeto de desejo. Como delineado por Sanders (2013) à luz da psicologia moderna, há três fatores que antecedem o ciúme: 1. um relacionamento exclusivo entre duas pessoas; 2. uma das partes sente que está em perigo de perder a exclusividade da relação ou até mesmo perdê-la inteiramente; 3. e isso porque que há uma terceira pessoa rivalizando o afeto do parceiro ou parceira. O ciúme, portanto, é uma rara manifestação de uma emoção triádica.

Como exemplo do uso de ζηλοτυπία, Konstan (2006, p. 228) defende que o termo no Banquete, de Platão, usado por Sócrates para se referir ao comportamento de Alcibíades para com ele, é empregado em referência a um conjunto de comportamentos do último, apontando para um sentimento de desejo de exclusividade da relação entre ambos, sem que houvesse um indicativo de alguma espécie de medo da perda do parceiro. Estando a rivalidade do ciúme moderno projetada ao redor da disputa pelo afeto, a noção de ciúme na Antiguidade pode ser entendida mais pelas emoções que a acompanham, como raiva e ódio, do que como uma emoção independente. Para o autor, prova disso é a concepção de ζηλοτυπία para os estoicos, que tratam esse conceito como uma resposta a alguém passar a ter algo que nós já possuímos, diferentemente do que acontece na inveja, em que nos incomodamos por alguém possuir o que não temos. Concebendo assim a ζηλοτυπία, não há disputa de afeto com uma terceira pessoa. É próprio do aspecto social da emoção certa dissonância cultural. Isso não significa, contudo, que outras sociedades, ou outras épocas, não entendam o que nós hoje entendemos por ciúme erótico, mas é plausível que a falta de um vocabulário específico ou sua ausência da lista de emoções possa ser um indício de que a ênfase era dada a outros fatores ou emoções adjacentes ao ciúme.

Para Konstan (2006, p. 224), quando alguém nos tira algo anteriormente nosso, como no caso de um parceiro(a), as emoções responsivas são a raiva12 e o ódio, e não ciúme ou inveja, segundo trata a Retórica. Ademais, nem Aristóteles nem os estoicos reservam um termo para um cenário em que alguém nos toma o afeto de uma pessoa amada. É necessário, entretanto, admitir que mesmo se não for considerada uma emoção autônoma, Jasão interpreta a raiva de Medeia de modo semelhante ao ciúme erótico, servindo como um propulsor de suas emoções exageradas.

Jasão diz à protagonista que tudo fizera “não odiando teu leito, como te dói, | aturdido por desejo de nova noiva” (οὐχ, ἧι σὺ κνίζηι, σὸν μὲν ἐχθαίρων λέχος | καινῆς δὲ νύμφης ἱμέρωι πεπληγμένος, 555-6. Trad. Jaa Torrano). Nessa passagem, λέχος (“leito”) é amplamente entendido como metonímia para o ato sexual, assim como ἵμερος (“desejo”) se refere, em seu contexto, a um desejo erótico. Jasão exclui o fator sexual de suas motivações para o casamento com a filha do rei, ao mesmo tempo que o imputa à raiva de Medeia. A sentença proferida por Jasão sobre o gênero feminino (566-75) demonstra a crença de que às mulheres é o sexo o que importa, contrastando-se com o discurso de Medeia ao coro (214-266). Naquela ocasião, ela lamenta o destino feminino que, além de comprar marido com o dote, não pode buscar conforto quando o casamento vai mal, do modo como fazem os homens (243-7). Medeia ainda declara



[...]. Mulher é cheia de pavor
e má em resistir e enfrentar faca,
mas quando injustiçada no leito (εὐνὴν ἠδικημένη),
não há nada mais sujo de sangue.

Fuente: (263-6. Trad. Jaa Torrano)

Ao final da peça, contudo, Medeia não nega o motivo do “leito” para o assassinato.



J. Ó filhos, que maligna mãe tivestes!
M. Ó filhos, morrestes por mal do pai!
J. Não os destruiu esta minha destra.
M. Mas o teu ultraje e novas núpcias (γάμοι).
J. Pelas núpcias (λέχους) decidiste matá-los?
M. Crês pequena a dor para a mulher?

Fuente: (1363-8. Trad. Jaa Torrano)

Para Sanders (2013), a confissão de Medeia reforça a ideia expressa nos versos anteriormente direcionados ao coro. O leito, enquanto símbolo da união sexual entre o casal, seria um dos motivos ou emoções que movem Medeia. Sanders tem razão ao argumentar que os estudiosos são precipitados em descartar o ciúme como um fator motivador na peça.13 O ciúme não tem grande aceitabilidade social, e é difícil atribuir uma emoção grosseira a uma personagem da grandeza de Medeia. Entretanto, ainda que se aceite a premissa de não desconsiderar uma emoção apenas pela ausência de termos específicos para ela, é necessário, em contrapartida, ponderar que enquadramento a própria protagonista dá ao leito abandonado.

As menções ao leito são de fato copiosas e, assim como as demais personagens, Medeia alterna entre os termos para casamento. Contudo, há certo padrão no uso pela protagonista. λέχος, em sua maioria, está vinculado à consequência reprodutiva do casamento.14



Ainda assim tratado por nós, ó pior varão,
traíste-nos e contraíste as novas núpcias (λέχη),
já com filhos. Se fosses ainda sem filho,
seria perdoável a tua paixão por núpcias (λέχους).

Fuente: (488-91. Trad. Jaa Torrano)

No diálogo após o infanticídio, contudo, o termo empregado por Medeia é γάμος, cujo sentido está mais fortemente conectado ao matrimônio, seja em relação à celebração ou à instituição. É Jasão quem, em sua resposta, substitui o termo para λέχος, palavra cuja conotação sexual é mais presente. Medeia frequentemente se refere ao γάμος entre Jasão e a princesa para proferir pragas e insultos.15 Assim, não é Medeia quem dá conotação erótica à sua fala. Jasão é quem permuta os termos, reforçando as acusações que lhe fizera no primeiro agon.

Não é de pouca relevância que, ao lado de γάμος, Medeia o acuse de ultraje (ὕβρις).16 Para Medeia, não ter sido incluída no plano de casamento é prova de injustiça (586-7), uma vez que isso pode ser interpretado como desprezo por ela e desdém dos favores prestados anteriormente.

Sanders (2013) argumenta, pautado pela psicologia moderna, que frequentemente o indivíduo que sente ciúmes não o reconhece, deixando à vista de todos emoções adjacentes, como raiva ou ódio.17 Para o autor, esse seria o caso de Medeia. Se, por um lado, Sanders tem razão acerca da não-monotonia das emoções da protagonista, por outro, defende-se que isso se dá pela polifonia da peça. A ênfase no leito abandonado e em seu aspecto erótico é dada por Jasão.18 O leitor pode ser convencido por seus argumentos e interpretar a raiva de Medeia como uma resposta ao ciúme. Contudo, deve-se também considerar a voz da protagonista, que enfatiza a desonra e, principalmente, a injustiça da quebra de φιλἰα do marido, mesmo quando menciona o leito.

Retomando o que já foi defendido acima sobre o discurso de Medeia ao coro (214-66), é necessário examinar o encadeamento de seus argumentos. No párodo, o coro, ao tentar apaziguar os ânimos de Medeia, garante-lhe que Zeus agirá como seu advogado, mas não antes de questionar a dimensão de seu amor. Em realidade, é o coro quem amalgama leito, amor e injustiça.



Que amor tens
de inabordável leito, ó tola?
Apressarás o termo da morte?
Não peças por isso!
Se teu marido tem novo leito (λέχη),
não te exasperes por isso
Zeus nisso te fará justiça (συνδικήσει).
Não chores demais o marido.

Fuente: (151-8. Trad. Jaa Torrano)

Visto que não interage com as personagens em cena durante o párodo disruptivo, não há como assegurar que Medeia as ouvira ou se deliberadamente ignorava o que era dito. Entretanto, seu discurso parece responder às inquietações do coro. A protagonista tece duas breves generalizações acerca das ações injustas dos homens (219-21) e do comportamento apropriado ao estrangeiro e ao autóctone (222-4), e, em seguida, desenvolve sua fala ao redor dos pesares que as mulheres encontram no casamento. Primeiro, mulheres precisam comprar marido com dote, que passa a ser dono de seu corpo (232-4); caso o casamento não vá bem, divórcio gera má fama às mulheres (236), e não há possibilidade de recusar marido sexualmente (237);19 mulheres também não são ensinadas a como melhor proceder com a vida de casada, e cabe à sorte ditar se terão sucesso (238-43); quanto ao homem, a ele é possível ter consolo fora do lar (244-7). Medeia conclui essas considerações com uma refutação sobre o lugar-comum da vida sem perigo das mulheres. Seria preferível usar a espada três vezes a parir uma única vez (248-51).

Depois de mobilizar a visão da condição passiva feminina diante das intempéries, Medeia particulariza sua situação.



Mas eu e tu não falamos o mesmo:
tu possuis esta urbe e casa paterna,
fruição da vida e convívio dos seus,
mas eu, erma de urbe, sou ultrajada
pelo varão, cativa de terra bárbara,
sem mãe, nem irmão, nem família
para ancoradouro deste infortúnio.
Tanto almejarei alcançar de ti,
se tiver inventado meio e via
de punir o varão por estes males:
silêncio! [...]

Fuente: (252-63. Trad. Jaa Torrano)

Medeia, apresentando-se como butim de guerra (256) entre os espólios de Jasão, diminui toda sua participação na empreitada heroica na Cólquida, motivo pelo qual ela não pode retornar à sua terra. Tal como as mulheres em geral, Medeia se coloca como figura passiva, que sofre as consequências das ações do marido. Ela então pede a anuência do coro para executar justiça pelos males sofridos (261), e finaliza o discurso atrelando leito (εὐνὴν) e injustiça (ἠδικημένη), tendo já mencionado fama (εὐκλεεῖς, 236) e ultraje (ὑβρίζομαι, 255).



[...] Mulher é cheia de pavor
e má em resistir e enfrentar faca,
mas quando injustiçada no leito,
não há nada mais sujo de sangue.

Fuente: (263-266. Trad. Jaa Torrano)

O leito nesse discurso, diferentemente do teor empregado por Jasão, reflete a condição privativa das mulheres, cujo ambiente doméstico é a totalidade de suas existências. Enquanto na fala de Jasão o leito era metáfora para o sexo, Medeia aqui o aplica no auge da sequência de argumentos sobre a condição infeliz das mulheres e da dominação de seus corpos pelos maridos.

Com efeito, a fala é arquitetada para angariar a compaixão do coro, mostrando a habilidade de Medeia em ignorar ou tecer os fatos em uma trama que a favoreça. A manipulação do discurso de Medeia se dá, mais do que por declarações completamente mentirosas,20 por meio do rearranjo, supressão ou ênfase em determinado acontecimento ou aspecto. O seu estado solitário não é inverídico, mas é notável que a heroína não dê mostras, como em outros momentos da peça, da sua traição em relação ao seu lar paterno. Nesse sentido, a menção ao ultraje sofrido (255), que fora retomado em 1366 (“mas o teu ultraje e novas núpcias”), indica que há uma associação entre o leito, isto é, o casamento, e o protesto de Medeia.

Raiva ou ódio?

A raiva que a protagonista sente é reiteradamente aludida durante a peça pelas personagens secundárias. Medeia, por sua vez, não fala de sua raiva,21 mas de seu ódio contra Jasão (311). Já no prólogo, além de assim denominar a atual situação do casal (16), a nutriz declara que o ódio de Medeia havia sido despertado (45-6). Também o gramático Aristófanes de Bizâncio, em sinopse antecedente à sua edição do texto trágico, imputa ao ódio (ἒχθρα) o motivo dos assassinatos na peça.22

Na Retórica, Aristóteles define o ódio (ἒχθρα καὶ τὸ μισεῖν) por suas causas, sendo elas a raiva (ὀργή), a difamação (ἐπηρεασμός) e a calúnia (διαβολή) (Aristot. Rh. 2.4, 1382a2-3). Não há, na breve análise da Retórica, uma definição do ódio, mas é possível tecer algumas ponderações se a cotejarmos com a φιλία, como anunciado pelo filósofo23 e como faz Konstan (2006, p. 189). Desse modo, Konstan conclui que o ódio é um desinteressado desejo de que danos ocorram a alguém e uma disposição para fazer com que isso aconteça.

Além de compará-la com o ódio, Aristóteles cita a raiva como uma de suas causas. Kalimtzis (2012), fundamentado pela Política, defende que o objeto sobre o qual Aristóteles se debruça diz respeito ao ódio gerado a partir de uma raiva causada, por seu turno, por uma injustiça.24 Dessa forma, essa raiva “funciona como uma espécie de ponte pela qual cidadãos-amigos cruzam para a inimizade” (Kalimtzis, 2012, p. 125). A injustiça que suscita o ódio é mais pungente do que a da raiva porque o maior mal é menos perceptível.25 A transformação da raiva em ódio deteriora a φιλία, tornando o que antes era amizade em inimizade.

Nessa perspectiva, a declaração de Medeia sobre odiar seu marido reflete a enormidade da injustiça cometida por ele. Não sem razão, ela menciona injustiça mais enfaticamente do que desonra.26 Ainda que Medeia confesse odiar Jasão em discurso a Creonte, em tentativa de dissuadi-lo do édito de exílio, a escolha do termo não deve ser desconsiderada. Tal como o discurso ao coro, as falas de Medeia precisam tanto ser entendidas como instrumentos para sua vingança quanto meio de analisar suas motivações.

Medeia pergunta a Creonte



Por que és injusto comigo? Casa a filha
com quem quiseres. Mas o meu marido
odeio. Tu, creio, agiste com prudência,
e agora não renego o teu bem estar.
Casai, sede felizes; mas nesta terra
deixai-me viver. Ainda injustiçada,
farei silêncio, vencida por mais forte.

Fuente: (309-15. Trad. Jaa Torrano)

Injustiça e ódio, portanto, estão atrelados em sua fala. Medeia enfatiza que Creonte pode dar a sua filha em casamento a quem seu ânimo o impelir. A manipulação de Medeia não é negar suas emoções, mas disfarçar seu alvo, alegando que apenas Jasão é objeto de seu ódio.

Medeia também fala sobre a injustiça ao coro (261, 265, 764, 767, 802), ao próprio herói (580, 582) e a Egeu (692). Em resposta, o coro concorda com a protagonista (158, 208, 267, 411) até mesmo na presença de Jasão (578). A entrada de Egeu, embora criticada por Aristóteles na Poética (1461b20), não somente corrobora a importância dos filhos aos homens e a relevante posição social que Medeia usufruía, mas também oferece uma perspectiva masculina e heroica sobre os seus reveses. Com efeito, Egeu denomina a substituição da “senhora da casa” (694) como vergonhosa. É irônico que Jasão declare ter apresentado a justiça grega a Medeia, o que para ele seria maior do que qualquer favor que Medeia lhe tenha feito. Mastronarde (2002, p. 261) enfatiza o absurdo da asserção, uma vez que não há justiça ou meios jurídicos aos quais Medeia possa recorrer e denunciar os atos injustos do marido.

Contrapondo-se ao seu discurso manipulador, durante toda a peça ela declara que a princesa e o rei são seus inimigos. No início da revelação dos planos de vingança ao coro, Medeia os coloca na mesma categoria que Jasão (“farei três de meus inimigos | mortos, o pai, a filha e meu marido”, 314-5). Também a Egeu Medeia afirma que tanto a casa de Pélias quanto a de Creonte são suas inimigas (734-5), o que é ratificado pelo herói (744). Entretanto, é após Egeu garantir-lhe refúgio que Medeia declara que executará justiça contra eles.



Ó Zeus, Justiça de Zeus e Luz do Sol,
agora vitoriosas sobre os meus inimigos
seremos, ó amigas! Estamos a caminho.
Agora creio ter justiça de inimigos meus.

Fuente: (764-7. Trad. Jaa Torrano)

Nesse último verso, lê-se em tradução mais próxima do grego “agora tenho esperança de que meus inimigos paguem a pena com justiça”.27

Em seguida, Medeia detalha o plano completo: o de matar a filha do rei e também seus próprios filhos (794-810). A vingança, que pela primeira vez na peça envolve as crianças, é justificada mediante a insuportabilidade do riso dos inimigos, sendo o escárnio mais intolerável do que o ato profano de filicídio. Medeia ainda confessa ter cometido um erro ao abandonar sua terra pátria por ter sido persuadida pelas palavras de um homem grego (801-2) e que ele pagará com justiça por isso. Copiosas são as alusões ao arrependimento de ter traído sua pátria, e Medeia e as demais personagens usam o mesmo termo para fazer referência à traição de Jasão (17, 207, 489, 578, 606, 778) e à da protagonista (32, 483, 503, 1332). No primeiro agon, Medeia expõe a Jasão a situação com sua antiga casa.



Pois assim está: inimiga me tornei
dos de casa e os que eu não devia
maltratar fiz inimigos por favor a ti.

Fuente: (506-8. Trad. Jaa Torrano)

Devido à ênfase na origem grega de Jasão, é plausível assumir que Medeia faz referência ao embate entre os argonautas e os colcos, concluindo que ela agora faz parte dos inimigos que tomaram o velo de ouro. Medeia reclama acerca da proporcionalidade da injustiça sofrida, uma vez que traíra a sua casa paterna por ele. Nesse sentido, o casamento com Jasão representa a recompensa de Medeia por trair sua casa ao trocar a φιλία de seu pai pela φιλία de seu marido. Se ao coro Medeia se coloca como butim de guerra, a protagonista entende que Jasão também é o seu - o que é representado pelo leito nupcial, mais adequado ao ambiente doméstico da peça.

Em Medeia, as personagens secundárias afirmam que sua reação é a raiva, ao passo que ela diz, uma única vez, ser o ódio. O ódio, como visto, tem como fim fazer dano em vez de apenas infligir dor como resposta a uma injustiça sofrida, o que tem o potencial de transformar amigos em inimigos. Acreditando ser injustiçada pelas ações de quem outrora fora amigo, Medeia busca retaliar o mal infligido primeiro (163-5). Nesse sentido, o assassinato dos filhos do casal culmina não só em sofrimento, mas também na interrupção de sua linhagem que tanto carregaria o nome de Jasão quanto o ampararia na velhice. O assassinato da princesa, além disso, garante que não haveria meios de reconstruir o que Medeia destruirá em seguida. Medeia busca arruiná-lo de forma mais pungente do que apenas matá-lo. Contudo, em seu monólogo, quando se questionava sobre levar a cabo o infanticídio, a protagonista identifica seu θυμός como agente do assassinato.

O monólogo de Medeia

Depois de enganar Jasão e mandar os filhos com presentes envenenados para a princesa, o plano de Medeia é colocado em ação. Em discurso repleto de ambiguidades, Medeia chora antecipadamente por se separar de seus filhos, visto que narrativamente entende-se que ela sairá em exílio enquanto eles permanecerão aos cuidados do pai.

Conseguido o abrigo para as crianças, as menções à cidade onde “morarão para sempre” (1023) morbidamente apontam para uma possível permanência naquela terra depois da dupla morte. Medeia lamenta porque, pelo curso natural da vida, ela deveria vê-los casados (1025-7) e ser amparada por eles na velhice, assim como receber deles os rituais fúnebres (1033-4). Medeia conclui dessas considerações que, sem os filhos, ela viverá uma vida penosa e dolorosa (1037). Fitando-os, então, Medeia pela primeira vez começa a se desfazer dos planos enunciados como βουλεύματα (as deliberações. cf. “Não conseguirei! Dou adeus às resoluções (βουλεύματα) de | outrora”, 1045-6, tradução nossa).

Logo após dar adeus às suas resoluções (repetindo o termo βουλεύματα em referência ao plano infanticida, 1048), Medeia discute consigo mesma ao se recordar do riso dos inimigos (1049-50). Esse momento do monólogo é atravessado por termos masculinos e heroicos. Além de se exortar a ousar (1051), ela classifica a desistência do plano como covardia de permitir “brandas falas no peito” (1052). Essas “falas brandas”, ressalta Mastronarde (2002, p. 338), foram utilizadas como recurso persuasivo na peça, como confessa Medeia (776) e como Creonte reconhece (316). Nesse sentido, Medeia coloca-se em embate verbal consigo, assim como faz contra os seus inimigos.

Em mais um contramovimento, Medeia se endereça ao seu θυμός a fim de convencê-lo a poupar as crianças (1056-7), mas logo retoma a resolução invocando “as divindades vingadoras infernais de Hades” (1059). O forte rogo por divindades vingadoras atesta a força da resolução e a convicção acerca do seu direito de vingança. Nesse momento vacilante, em vez de recorrer novamente à ideia do riso dos inimigos contra si, Medeia diz que não permitirá que seus inimigos ultrajem seus filhos, portanto, é necessário que ambos morram (1061-3).

A morte das crianças como uma necessidade nos remete à tradição anterior a Eurípides, em que os filhos de Medeia morriam pelas mãos dos cidadãos de Corinto. Entretanto, como um resultado trágico das suas habilidades retóricas,28 esse é mais um dos argumentos que a protagonista usa contra si, visto que já no verso 1058 ela havia mencionado a possibilidade de levar os filhos consigo. Em realidade, não há motivo para que as crianças ficassem em Corinto à mercê da violência dos cidadãos daquela terra. Se ela pôde carregar ambos os corpos mortos na carruagem rumo a Atenas, ela poderia levá-los vivos. Eurípides, trazendo à mente a tradição, instrumentaliza o mito para reforçar a autonomia dos atos de Medeia.

Decidindo-se então pelo filicídio, Medeia contempla a dor que causará a si mesma, confessando estar cônscia da extensão de seus atos (1078). Contudo, a protagonista imputa a Jasão a impossibilidade de manter os filhos vivos e consigo (1074). O assassinato das crianças se mostra apropriado para Medeia, o que é ilustrado pela extensão de sua dor e pelo pesar que ela demonstra diante da morte prestes a acontecer. O desconsolo da protagonista apenas reforça a dimensão do dano que ela pretende causar a Jasão. Não haveria vingança maior.

Contudo, Medeia declara que seu θυμός está no comando: θυμὸς δὲ κρείσσων τῶν ἐμῶν βουλευμάτων (1079). A tradução deste verso resulta de sua interpretação. Há dois elementos possíveis de serem debatidos: o valor sintático de κρείσσων e o referente de βουλευμάτων. O primeiro, κρείσσων, pode tanto ter um sentido verbal de “controlar” ou “dominar” quanto um valor comparativo significando “mais forte” ou “mais poderoso”. No primeiro caso, ler-se-ia “meu furor é que está no controle das minhas deliberações”, ao passo que, no segundo, “meu furor é mais forte do que minhas deliberações”. Ambas as traduções oferecem objeções, apontadas por Mastronarde (2002, p. 344-5). A maior objeção à leitura de κρείσσων como verbo é seu uso menos comum com relação ao comparativo. Em contrapartida, o entendimento de que a fala de Medeia significa que seu furor suplanta (é superior, é mais forte) às suas deliberações parece obscurecer o uso de βούλευμα na peça, frequentemente associado às resoluções de vingança.

Por esse motivo, se a leitura de κρείσσων como adjetivo comparativo for admitida, βούλευμα deve fazer referência ou à breve e passageira decisão de poupar as crianças ou à complexidade das deliberações como um todo, isto é, Medeia estaria confessando que sua fúria seria superior a qualquer elucubração e movimento dos seus pensamentos, sua razão.

Como se demonstrou, porém, durante o próprio monólogo, ela emprega o termo em referência ao plano de vingança. Com efeito, ao longo de toda a tragédia, βούλευμα tem esse mesmo referente (372, 769, 772). Não há como considerar βούλευμα apenas como os breves momentos de seu recuo e ignorar que o monólogo se constrói ao redor de dois polos: matar ou não os filhos. Dessa forma, se admitirmos que Medeia declara “a fúria controla as minhas deliberações/os meus planos”, fica explícito qual das duas considerações foi a vencedora.29

Considerações finais

É necessário ainda entender a relevância do θυμός na fala de Medeia. Sousa (2019, p. 19) define o termo como “uma força interior que conduz à ação que pode estar mesclada com um sentimento de raiva”. Portanto, o θυμός não é apenas a raiva, sendo ele tanto o ânimo quanto a fúria. Sousa (2019, p. 20) ressalta que, embora faça parte de um Eu, o θυμός não se confunde com ele. Isso pode ser visto ao longo da tradição poética em que personagens, sejam elas líricas, épicas ou trágicas, dirigem-se ao seu θυμός. Em seu monólogo, em consonância com o recurso poético, Medeia não só se endereça a ele, como utiliza os verbos em diferentes pessoas (cf. Por certo não, θυμός, tu não farás isso!, 1056; nós mataremos quem fizemos nascer, 1063; compreendo como estou a ponto de fazer coisas horríveis, 1078, tradução nossa).

O θυμός é o que dá contorno ao Eu, ao seu ser e julgamento, deixando transparecer como as personagens lidam com as contingências, mas é também um impulso violento, “até animalesco, que se aliena da personagem praticando crueldades que colocam em dúvida a virtude do Eu e que mudam sua fortuna trágica” (Sousa, 2019, p. 20-1). Essa metamorfose ocorre em resposta a um dano feito ao θυμός-Eu.

Em Medeia, há diferentes perspectivas quanto à espécie de dano responsável pela alteração do θυμός da protagonista. Ainda no prólogo, a nutriz diz que ele havia sido golpeado com amor (ἒρως) por Jasão (8). O coro também entende ser um amor desmedido o responsável por sua reação.30 Jasão, por sua vez, interpreta o comportamento de Medeia como resultado de seu ciúme. Entretanto, o dano apenas surge quando há o abandono do laço de φιλία entre a protagonista e Jasão. Medeia não menciona seu amor pelo marido ou o desejo de reconquistá-lo. Para ela, a causa da transformação de seu θυμός-Eu em um θυμός-fúria é a injustiça que o abandono implica. Quando confessa que seu ímpeto-fúria rege a sua decisão,31 Medeia revela a lucidez com que examina suas deliberações, visto que o monólogo é construído aos moldes das demais persuasões na peça. No embate verbal entre Medeia-mãe e seu θυμός-fúria, é a fúria quem vence. Medeia deixa-se vencer, por isso o tom resignado de seu monólogo.32

Embora reconheça o mal que faz a si, o que narrativamente espelha a dimensão do mal que busca infligir a Jasão, Medeia parece triunfar ao final da peça. A protagonista prediz o destino do herói, que terá seu crânio esmagado pela madeira da nau Argo (1386-7), mas apenas após saber de seu casamento com Egeu (1388). Ela também anuncia, em referência ao tradicional culto pelo assassinato dos seus filhos pelas mãos dos coríntios, que enterrará as crianças no templo de Hera, sugerindo “assim que a narrativa mítica é confirmada por fatos do conhecimento público contemporâneo” (Torrano, 2018, p. 11). Cônscia de que o filicídio é um ato profano (1383), embora haja um silêncio divino, Medeia parece ter a autoridade para ela mesma instaurar o culto reparador de sua poluição, projetando, dessa forma, a máxima vingança: a morte inglória de Jasão, seu casamento com outro herói e a expiação do infanticídio.

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Notas

1 Agradecemos a Profa. Dra. Lucia Sano pela orientação da pesquisa que resultou neste artigo. Também agradecemos à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), processo nº 2018/06554-1, pelo financiamento à pesquisa. As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade da autora e não necessariamente refletem a visão da FAPESP e da CAPES.
2 Esse recurso é utilizado com frequência para reproduzir sons de assassinatos e suicídios que, por convenção, acontecem fora de cena. Sobre o padrão de lamentos fora de cena, cf. Hamilton (1987).
3 “...brilliant orator, pathetic victim, devious manipulator, exultant (and uncanny) avenger, tormented mother until her final metamorphosis (…) into the demonic figure…”
4 Cf. Mastronarde (2002, p. 340); Seidensticker (2008, p. 342-3).
5 Cf. Eur. Med. 368-70; 776-89.
6 Cf. Mastronarde (2002, p. 198); Tedeschi (2010, p. 113).
7 A tradução de φιλία não é sem dificuldade, uma vez que o termo é mais amplo do que o correspondente em português. O Greek-English Lexicon (Liddell, Scott, 1996, p. 1934) estabelece as seguintes definições: “1. estima afetuosa, amizade; 2. amigabilidade, afabilidade. 3. posteriormente, para amantes, afeição”. Sobre a discussão da φιλία enquanto uma emoção, cf. Konstan (2006, p. 177 et seq.).
8 Cf. McClure (1999). Somando-se às demais características heroicas de Medeia, a forma de invectiva de seu discurso constrói uma justa censura (514) contra Jasão. Embora, sob os parâmetros jurídicos da Atenas do século V AEC o casamento entre ambos pudesse ser considerado ilegal, uma vez que a peça foi apresentada após a lei de Péricles que condicionava a cidadania ateniense apenas a pessoas cujos ambos os pais fossem atenienses, em momento algum da peça a legitimidade desse matrimônio é questionada.
9 Cf. Aristot. Nic. Eth.,8.12 1162a16-9; Aristot. Pol., 1.1 1252a26-30.
10 Cf. Seaford (1990).
11 Como comenta Mastronarde (2002, p. 260), para os gregos, reconhecer a ajuda divina não exclui a contribuição das figuras humanas envolvidas. A alegação de Jasão é retórica.
12 Cf. Aristot. Ret. 2.2, 1379a12-19.
13 Contudo, há estudiosos que defendem haver ciúme entre as motivações de Medeia, cf. Cairns (2014, p. 135). Além disso, ao longo da recepção crítica, o ciúme foi amplamente aceito como motivação para a vingança, cf. Gellie (1988).
14 O uso que mais destoa está no verso 380, quando Medeia conjectura sobre invadir o palácio para matar Jasão e a princesa na cama. Nesse contexto, contudo, o uso pode ser literal. Em 672, Medeia usa λέχος para perguntar se Egeu não tem filhos mesmo estando casado. Já em 887, Medeia utiliza λέχος em seu falso discurso a Jasão, para dizer que ela deveria ter aplacado sua raiva e tê-lo auxiliado inclusive no ritual do matrimônio. Entretanto, há dois casos que serão analisados posteriormente.
15 Cf. 399, 405, 587, 622, 1356, 1366. Em 778, mesmo em seu discurso dissimulado, Medeia coaduna o casamento da princesa com a traição de Jasão. A única exceção é em referência a seu próprio casamento e a seu “amargo fim” em 1388.
16 Medeia, no primeiro agon, também o acusa de ultraje (603) e no discurso ao Coro diz ter sido ultrajada (255).
17 O autor não invalida a honra e a justiça como motivações para a raiva de Medeia, mas defende que ela, a raiva, pode estar a serviço de uma emoção menos aceitável socialmente.
18 Creonte também pode ter implicado um teor sexual no verso 286.
19 O sentido sexual implícito é reforçado pela alegação de que os maridos são donos dos corpos de suas esposas, proferida em 232-4. Cf. Mastronarde (2002, p. 211).
20 A exceção é a tentativa de convencer Jasão de que mudara de ideia em 869-905.
21 As exceções são proferidas durante sua fala mentirosa em que busca enganar Jasão (cf. 870, 879, 883, 898). Entretanto, como será analisado, Medeia também se refere ao seu θυμός.
22 A sinopse pode ser consultada, em tradução para o português, na edição de Medeia traduzida por Vieira (2010).
23 Cf. Aristot. Rh. 2.4, 1382a1-2.
24 A leitura de Kalimtzis (2012) não é unânime. Cf. Konstan (2006, p. 192).
25 Cf. “As coisas que causam dor são todas perceptíveis, as que acarretam os maiores males são as menos perceptíveis: a injustiça (ἀδικία) e a insensatez (άφροσύνη), pois a presença do vício (κακίας) não nos causa nenhuma dor” (Aristot. Rh. 2.4, 1382a10, Trad. Isis Borges B. de Fonseca com alterações).
26 O radical de δική (“justiça”) aparece 26 vezes na peça, enquanto são 9 as ocorrências de τιμή (“honra”). Na voz de Medeia, são 13 em oposição a 3.
27 νῦν ἐλπὶς ἐχθροὺς τοὺς ἐμοὺς τείσειν δίκην, 767.
28 Cf. Mastronarde (2002, p. 340).
29 Cf. Gill (1996, p. 217).
30 Cf. 6-8; 151-56; 629-30.
31 Adota-se a interpretação do verso na mesma linha defendida por Gill (1996, p. 223-4). Em contrapartida, Sousa (2019, p. 28-9) se vincula à interpretação de que Medeia é vítima de suas ações.
32 Cf. Harris (2001, p. 54), que ressalta a distinção feita por Aristóteles, na Ética a Nicômaco, entre uma ὀργή-irracional e um θυμός-racional (Aristot. Nic. Eth. 3.8, 1117a8). Na Poética, Aristóteles cita Medeia como personagem consciente de seus atos: “...personagens que sabiam e tinham conhecimento do que faziam; como fez Eurípides ao representar Medeia assassinando os filhos” (1453b28-9, tradução de Paulo Pinheiro, 2015). Para uma problemática da leitura da responsabilidade das ações de Medeia nos moldes aristotélicos, cf. Marcela Coria (2013).
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