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Ad Paridem Venerunt: tradução do episódio do julgamento de Páris em Excidium Troiae

Ad Paridem Venerunt: translation of the episode of the judgement of Paris in Excidium Troiae

Gelbart Souza Silva
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, câmpus de São José do Rio Preto., Brasil

Ad Paridem Venerunt: tradução do episódio do julgamento de Páris em Excidium Troiae

Classica - Revista Brasileira de Estudos Clássicos, vol. 36, pp. 1-8, 2023

Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos

Recepción: 08 Diciembre 2022

Aprobación: 12 Febrero 2023

Resumo: A obra anônima em latim Excidium Troiae (c. IV-VI d.C.) é um texto de viés mítico que narra a Guerra de Troia (desde o casamento de Peleu e Tétis até a queda da cidade troiana), as andanças de Eneias e parte da história de Roma, de sua fundação até o reinado de César Augusto. Excidium Troiae tem relativa importância para a produção posterior de obras com tema troiano, especialmente a partir do século XII, a exemplo da tradução realizada pelo alemão Konrad von Würzburg, Trojanische Krieg. Neste trabalho, propomos uma tradução, acompanhada de notas explicativas e comentários, do trecho de Excidium Troiae (4.23-32, 5.1-18) em que se narra o episódio mítico conhecido como “Julgamento de Páris”.

Palavras-chave: Excidium Troiae, mitologia greco-romana, Julgamento de Páris, tradução.

Abstract: The anonymous Latin work Excidium Troiae (c. IV-VI AD) is a mythical text that narrates the Trojan War (from the wedding of Peleus and Thetis to the fall of the Trojan city), the wanderings of Aeneas and part of the Roman history, from its foundation to the reign of Augustus Caesar. Excidium Troiae has relative importance for the later production of works with a Trojan War theme, especially from the 12th century on, such as the translation made by the German Konrad von Würzburg, Trojanische Krieg. In this paper, we propose a translation of the excerpt from Excidium Troiae (4.23-32, 5.1-18) in which the mythical episode known as the “Judgement of Paris” is narrated. This translation is accompanied by explanatory notes and comments.

Keywords: Excidium Troiae, Greco-Roman mythology, Judgement of Paris, translation.

A permanência do mito troiano tem uma história esparsa e tentacular que abrange, além da épica,2 a tragédia, a lírica, a estatuária e a prática pictórica, bem como a oralidade. Para além dos tipos de arte em que se processa essa história, que se expande no tempo e no espaço, a Guerra de Troia é fonte de múltiplos enredos e personagens, os quais fazem despontar grandes questões da civilização europeia.

Os temas troianos incluíam poder e guerra, amor e engano, perda na vitória e sucesso no fracasso, o Ocidente heroico e o suspeito (decadente) Oriente, as ligações emaranhadas entre os desejos humanos e a vontade divina, o fim do mundo, e o início de um novo modo de vida. (Thompson, 2013, p. 21)3

A despeito da importância inequívoca das obras homéricas, durante o medievo latino elas não estavam à disposição. Thompson (2013) explana dois eventos condicionantes da maneira como a tradição do mito troiano fez a gradual transição de um universo pagão para um mundo cristão. Por um lado, o próprio estabelecimento da religião cristã no Império Romano em 312 d.C., o que favoreceu a oposição aos deuses pagãos tão centrais na leitura de Homero. Por outro lado, a cisão do Império Romano entre o lado grecófono e o lado latinófono por volta de 395 d.C., fato esse que levou a uma divisão também da cultura que antes era dúplice e bilíngue. Assim, no espaço de herança grega, Homero continuou a fazer parte do cabedal erudito, enquanto, no espaço latino, são os textos romanos a dominarem as letras acerca do mito troiano.

Os poemas do ciclo épico do início da Grécia perderam-se e não mais foram recuperados. Homero, e Troia juntamente com ele, sobreviveu na memória cultural do Ocidente, em grande parte, através de obras da decadência greco-romana, e sob um disfarce que obliterou totalmente o espírito do poeta original e de sua canção. (Young, 1948, p. 48)4

Conforme Yavuz (2014), percebe-se uma predominância do sentimento anti-Homero no mundo europeu, especialmente durante a antiguidade tardia e os primeiros momentos do período medieval. Dessa forma, embora estivessem acessíveis as Metamorfoses, de Ovídio, a Eneida, de Virgílio, e a tradução adaptada para o latim da Ilíada homérica, a Ilias Latina, de Bébio Itálico, foram obras de outra sorte que desempenharam importante papel na transmissão do mito troiano a partir desse período. Constituindo, pois, uma via heterodoxa em relação a Homero, duas obras anônimas se destacam: Ephemeris belli Troiani (IV d.C.)5 e De excidio Troiae historia (V d.C.). As duas formam, via de regra, um par, a despeito de terem uma fortuna dessemelhante. Ambas, porém, apresentam estrutura e projeto literários bastante parecidos. Segundo Merkle (1999), essas narrativas recontam a Guerra de Troia a partir do ponto de vista de um narrador testemunha ocular dos fatos numa prosa plana, cronologicamente ordenada, sem demasiados adornos e com a diminuição drástica da potência sobrenatural dos heróis e dos deuses. Compreendidas no filão do romance antigo, caracterizam-se por tomar um assunto da épica e plasmá-lo em um formato (pseudo-)historiográfico, configuração que tem lhes rendido aproximação às ficções históricas e ao revisionismo mitológico de cariz evemerista (Silva, 2022). Ephemeris belli Troiani e De excidio Troiae historia têm como narradores, respectivamente, Díctis, um soldado cretense, e Dares, um frígio, nomes sob os quais a posteridade conhecerá esses textos que, ficcionalmente, precedem a Homero em tempo e autoridade. Essas duas obras tornam-se “clássicos” a partir da Idade Média.

Diversamente é Excidium Troiae (c. IV-VI d.C.), obra que se alocaria no nicho ortodoxo em relação a Homero, uma vez que mantém um viés mítico, não obstante vacile em certos pontos. Seu enredo pode ser dividido em três partes: 1) versão clássica do início da Guerra de Troia, situado no casamento de Peleu e Tétis; 2) versão virgiliana da queda de Troia e resumo das andanças de Eneias e 3) narração da fundação de Roma e de parte de seu progresso histórico. “Assim, o texto consiste numa narrativa contínua de Troia e Roma desde o arremesso da maçã dourada até ao reinado de César Augusto”6 (Atwood; Whitaker, 1944, p. xi). A simplicidade e a organização dessa obra permitem compreendê-la, na opinião de Atwood e Whitaker, como manual didático para jovens.

Yavuz (2014, p. 12) relata que Excidium recebera pouca atenção até então, mesmo que já se tenha percebido sua relativa importância para a produção de outras obras, especialmente a partir do século XII. Landa (2004, p. 3) atesta esse interesse indicando a existência de traduções livres de Excidium. Alguns exemplos são o poema anônimo em Middle English The Seege of Troye e Trojanische Krieg, do alemão Konrad von Würzburg (1235-1287).

Até onde foi possível sondar, ainda não consta proposta de tradução para o português7 dessa obra latina.8 Nesse sentido, propõe-se, nesta publicação, uma primeira incursão nesse texto por meio da tradução de episódio emblemático dentro do repertório do mito troiano: o julgamento de Páris.

Episódio seguinte ao casamento de Peleu e Tétis, em que a Discórdia lança aos pés das deusas Juno, Minerva e Vênus uma maçã dourada escrita “para a mais bela”, título que suscita intriga entre as divindades, cada uma crente de ser a destinatária de áureo presente. Júpiter se abstém de julgar sobre o caso e estabelece Páris, um pastor do monte Ida, para a função. Cada deusa oferece a Páris uma dádiva, agradando-lhe, porém, Vênus em primazia. Ao eleger a deusa do amor a mais bela e confiar-lhe a maçã, o jovem provocou a ira das deusas preteridas. Esse é o cerne do mito, que se pode ler em variadas fontes.9 Outrossim em Excidium Troiae.

Para a tradução, o trecho selecionado começa com a chegada das deusas junto a Páris, seguida do processo decisório, e termina com a sentença final, origem mitológica da contenda entre gregos e troianos.10 O texto latino, que reproduzimos a seguir, é o estabelecido por Atwood e Whitaker (1944, p. 4-5). A tradução para o português vem anotada com comentários sobre a narrativa, relações intertextuais e pontos de interpretação.

Texto em latim

Ad Paridem Iuno, Minerva, et Venus venerunt; et dum ei malum aureum offerrent, dixerunt: ‘Lege titulum, et quod tituli scriptura continet inter nos iudica.’ Ille vero accepto malo eas distulit et iudicium comperendinavit. Quia dum iudicium dilatum fuisset, uti habet vulgus: ‘Quid das ut vincas?’ secretim utreque11 ut nemo de se sentiret ad Paridem ingrediuntur. Quid multa? Primum Minerva ingressa est et Paridi dixit: ‘Ego consanctio arma tuaut quotienscumque cum aliquo dimicare volueris te victorem faciam et me iudica pulchriorem.’ Cui ille ita promisit et discessit, promissum ei retinens. Accedens deinde Iuno ad eundem Paridem ingressa est. Et ipsa iam ei promisit duplicari fetus armentorum suorum ut geminos parerent, et iudicaret eam pulchriorem. Etiam ipsi promisit, quia Iuno dea connubii et fetus appellatur, sicut Minerva dea armorum et pugne appellatur, et discessit. Postea vero Venus amicta pallio blatteo [nuda] tenens ante se duobus digitis pallium ad eum ingressa est, et dum ante eum staret, dimisso pallio nuda ei apparuit. Que Paridi sic dixit: ‘Ego tibi dabo pulchriorem uxorem et me iudica pulchriorem.’ Ille vero videns speciem dee12 vel virginis, ut habet etas13 iuvenilis, furore amoris incensus ei dixit: ‘Te iudico inter omnes pulchriorem,’ et discessit. Ergo venit dies statuta ut ad iudicium eius venirent, et malum aureum Veneri tradidit. Ille14 vero, videntes se despectas vel abiudicatas, exierunt cum magno dolore. [Manet alta mente repositum iudicium Paridis spreteque iniuria forme et genus invisum et rapti Ganimedis honores.] Quod iudicium fecit ut adversusTroiam iracundia dearum suscitaretur, ut adimpleretur quod per somnium regina viderat, quia per Paridem Troia periret. Ille15 vero, id est Iuno et Minerva, dum de iudicio Paridis abiudicate discesserunt, ceperunt cogitare qualiter Troia periret. Venus vero, pro qua iudicium fuerat, etiam ipsa ut Paridi promissum impleret, cepit de coniugio eius cogitare. (ET 4.23-32, 5.1-18)

Vieram a Páris Juno, Minerva e Vênus e, apresentando-lhe uma maçã dourada, disseram: “Leia o título, e julga, pois, a quem dentre nós pertence a descrição do título”. Ele então pegou a maçã e delas se afastou. Adiou o julgamento por três dias.16 Porque o julgamento havia se delongado demais, segundo pensa o povo: “O que dás para que venças?”, cada uma foi ter com Páris separadamente, para que ninguém se ouvisse.

E o que mais?

Foi Minerva quem primeiro avançou. A Páris disse: “Tuas armas eu consagro, para que, seja lá com quem tu queiras envolver-te em peleja, todas as vezes te saias vitorioso; julga-me, pois, a mais bela”.

Com ela assim ele se comprometeu e se afastou, conservando o prometido. Avançando, achegou-se, em seguida, Juno também a Páris. Ela então lhe prometeu duplicar os rebentos de seu rebanho, pois paririam gêmeos; que a julgasse a mais bela, então (Juno prometeu-lho porque era chamada “deusa do casamento e da fecundidade”, ao passo que Minerva, “deusa das armas e da guerra”).17 Ela se afastou.

Depois, Vênus, vestida com uma manta púrpura e mantendo nua ante de si dois dedos dessa manta, avançou na direção dele. Quando ela parou na sua frente, retirou a manta por inteiro e a ele revelou-se nua.18 A Páris ela assim disse: “Eu dar-te-ei a esposa mais bela;19 julgue-me como a mais bela”.20 Ele, então, vendo a figura da deusa ou da virgem, porque em idade juvenil, incendiado pelo ardor do amor, respondeu-lhe: “Julgo-te a mais bela dentre todas”, e se afastou.

Logo veio o dia estabelecido para que comparecessem ao julgamento, e a maçã dourada foi conferida a Vênus. As outras, pois, vendo-se desprezadas e rejeitadas, saíram com grande pesar. Esse julgamento parcial de Páris traz de forma desprezível à memória não só a injúria, mas também a raça odiosa e a lembrança do rapto de Ganimedes.21 Porque ele tomara essa decisão, ira contra Troia foi acendida nas deusas, cumprindo-se conforme a rainha vira em sonhos: que, por causa de Páris, Troia pereceria.22

De fato, elas, isto é, Juno e Minerva, logo que saíram rejeitadas do julgamento de Páris, começaram a pensar de que modo Troia pereceria. Por sua vez, Vênus, em favor da qual se tomou a decisão, também ela começou a pensar acerca de como iria cumprir o casamento que havia prometido a Páris.

Considerações finais

Pela leitura do texto latino, percebe-se a simplicidade da obra, simplicidade essa que procuramos manter na tradução, mesmo que viesse a parecer, em um ponto e outro, repetitiva. Também se observam explicações em Excidium Troiae que visariam talvez um leitor leigo, como é o caso da relação de cada deusa com o teor da promessa que faz. Isso corroboraria a tese apontada na introdução deste trabalho, a qual entende ser a obra um manual didático.

Portanto, em razão da sua localização na história literária, especialmente a de tema troiano, e da sua influência no contexto posterior, o estudo de Excidium Troiae figura como importante para a compreensão da permanência e da transmissão da história da Guerra de Troia.

Referências

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MERKLE, Stefan. News from the past. Dictys and Dares on the Trojan War. In: HOFMANN, Heinz. Latin fiction. The Latin novel in context. London: Routledge, 1999, p. 132-40.

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THOMPSON, Diane P. The Trojan war. Literature and legends: from the Bronze Age to the present. 2 ed. London: McFarland & Company Inc. Publishers, 2013.

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YOUNG, Arthur M. Troy and her legend. Pittsburgh: Universityof Pittsburgh Press, 1948.

Notas

1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. Gostaria também de agradecer a meus alunos de latim Marcelo Salles Bueno e Frederico Teixeira Tangi, que estudaram uma versão adaptada por mim do texto aqui traduzido e cujas reflexões me instigaram a formular e publicar este trabalho.
2 Contem-se aqui, além da Ilíada e Odisseia, os poemas do “ciclo épico de tema troiano”, que se conhecem por fragmentos ou por comentário da Crestomatia de Proclo conservada na Biblioteca (códice 239) de Fócio.
3 Todas as traduções são de responsabilidade do autor do artigo. Em caso contrário, será notificado. Texto original: “Trojan themes included power and war, love and deceit, loss in victory and success in failure, the heroic West and the suspect (decadent) East, the tangled connections between human desires and divine will, the end of the world, and the beginning of a new way of life”. .
4 “The poems of the cyclic epic of early Greece were lost, and were never to be recovered. Homer and Troy along with him survived in the cultural memory of the West largely through works of Graeco-Roman decadence, and under a guise which totally obliterated the spirit of the original poet and his song”.
5 Para uma introdução acerca de Ephemeris belli Troiani e a trajetória do mito troiano, ver Silva (2019).
6 “Thus the complete text consists of a continuous narrative of Troy and Rome from the casting of the golden apple to the reign of Augustus Caesar”.
7 Miguel Abrantes (2017) traduz um trecho da obra em seu artigo intitulado “Porque foi Páris escolhido para julgar as deusas?: a resposta do Excidium Troiae”: https://impactum-journals.uc.pt/bec/article/view/62_4/4026.
8 Atwood e Whitaker (1944) supõem haver um original grego de base para a versão latina, tal qual ocorre efetivamente para Ephemeris belli Troiani (cf. Peinado, 2015). No entanto, consideram materialmente difícil definir tal questão. A presença de um repertório de fundo helênico aliada a palavras gregas decalcadas no texto latino leva Atwood e Whitaker a considerarem que, pelo menos, o autor anônimo tinha algum conhecimento de grego ou mesmo uma inclinação ao grecismo vocabular.
9 Para além de menções na Ilíada (XXIV, 28-30) e em peças de Eurípides, citem-se Cíprias, Elogio de Helena, de Górgias, outro Elogio de Helena, este de Isócrates, Fábulas, de Higino, Heroides (XVI), de Ovídio, Diálogo dos Deuses, de Luciano, e a representação teatral do julgamento no Asno de Ouro, de Apuleio. Para um panorama maior, cf. Ehrhart (1987).
10 Ao escolher Vênus e ter-lhe prometido Helena, que será por esse mesmo Páris subtraída de Menelau mais tarde em Esparta, instaura-se a crise que perdurará ao longo da narrativa mítica. Outras fontes justificam a guerra de maneira diversa. Por exemplo, em De Excidio Troiae Historia, o rapto de Helena é uma resposta ao rapto anterior de Hesíone, irmã de Príamo e filha de Laomedonte. Outras versões ainda assumem que Helena nunca esteve em Troia e que os gregos buscavam uma ilusão causada por uma divindade, como a peça euripidiana Helena.
11 Utreque = utraeque. Aqui, como em outras ocorrências, ocorre monotongação ae >e.
12 dee = deae.
13 etas = aetas.
14 Ille= Illae.
15 Ille= Illae.
16 Comperendināreé verbo específico da corte, o que acentua a atmosfera jurídica desse julgamento (iudicium). Na tradução, não foi possível manter a expressão via um verbo, pois, segundo os dicionários Oxford (Glare et al., 1968, p. 375) e Faria (1994, p. 122), o verbo significa intimar (um réu) para dali a três dias, prorrogar por três dias; adiar julgamento por três dias.
17 Explica-se a conexão entre os dons ofertados e as artes patenteadas pelas deusas. A tríplice divisão entre poder, riqueza e amor é marca desse mito e tem desdobramentos no pensamento filosófico, inclusive em época cristã. Veja, por exemplo, a leitura desse mito feita por Fulgêncio (Livro das Mitologias, II, 1; Philosophi tripertitam humanitatis uoluerunt uitam, ex quibus primam theoreticam, secundam practicam, tertiam filargicam uoluerunt, quas nos Latine contemplatiuam, actiuam, uoluptariam nuncupamus; “Os filósofos queriam uma vida tríplice da humanidade, da qual queriam a primeira teórica, a segunda prática, a terceira filárgica, que chamamos em latim contemplativa, ativa, voluptuosa”).
18 Vênus tem mais espaço narrativo que as outras deusas. Ao decidir narrar o despir de Vênus, o autor sugere uma intenção de sedução. Na ampla maioria das representações pictóricas, a nudez é assumida pelas três deusas, que abdicavam de seus adereços para eles não se imporem sobre a decisão do jovem juiz. Outrossim ocorre nos Diálogos dos Deuses, de Luciano. Páris indica a Hermes que, para configurar a lisura do processo: γυμνὰςἰδεῖνβούλομαι; “quero vê-las nuas” (XX, 9).
19 Atwood e Whitaker (1944, p. 60) consideram que o comparativo pulchriorem usado em lugar de um superlativo possa ser um galicismo. Na variante contida em Ri (Florence, Bibl. Riccardiana 881, fols. 54-72v), ocorre dabo pulchriorem me uxorem.
20 Torna-se significativa a nudez da deusa da beleza seguida de sua oferta. Páris está diante de uma deusa que promete dar-lhe uma esposa tão ou mais bela que a própria deusa. Nas Cíprias, teria sido prometida nominalmente Helena (ἐπαρθεὶς τοῖς Ἑλένης γάμοις Ἀλέξανδρος; “Alexandre excitado pelo casamento com Helena”), assim como ocorre em Luciano (Diálogo dos Deuses, XX, 15): ὑπισχνοῦμαι δή σοι τὴν Ἑλένην παραδώσειν γυναῖκα, “Prometo-te Helena por esposa”. Outrossim nas Fábulas de Higino (XCII, Venus autem Helenam Tyndarei filiam formosissimam omnium mulierum se in coniugium dare promisit. “Vênus, contudo, prometeu-lhe dar em casamento Helena, filha de Tíndaro, a mais formosa dentre as mulheres”).
21 Ganimedes foi um jovem troiano raptado por Zeus para servir de garçom no Olimpo. Em Luciano (Diálogos dos Deuses, 5), Hera demonstra-se enciumada pela atenção que Zeus presta ao jovem.
22 Referência ao sonho funesto de Hécuba em que ela paria um tição incendiador de Troia. Esse sonho é narrado anteriormente em Excidium Troiae. Feita a consulta no templo, responde-se que, nascendo e vivendo o bebê que a rainha esperava, Troia estaria fadada à ruína. Quando nasce Páris, Hécuba pede que escravas levem a criança para fora da cidade. Por sorte, como sói acontecer com os heróis expostos, Páris é recolhido, salvo e criado como pastor até que seja reconhecido como príncipe (cf. Higino, Fábulas, XCI). Em Ephemeris belli Troiani (III, 26), o sonho é mais detalhado e traz a informação de que as casas de Antenor e Anquises são poupadas pelo fogo (ad cineres conlapsam civitatem intactis inviolatisque Antenoris et Anchisae domibus). Importante prenúncio, pois Antenor e Eneias serão traidores da pátria no decurso narrativo.
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