Resenhas Críticas

MARTINS, Paulo. A representação e seus limites: pictura loquens, poesia tacens. São Paulo: EDUSP, 2021, 368p. ISBN: 978-65-5785-007-7.

Henrique Verri Fiebig
Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil

MARTINS, Paulo. A representação e seus limites: pictura loquens, poesia tacens. São Paulo: EDUSP, 2021, 368p. ISBN: 978-65-5785-007-7.

Classica - Revista Brasileira de Estudos Clássicos, vol. 36, pp. 1-4, 2023

Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos

Recepción: 18 Octubre 2022

Aprobación: 16 Diciembre 2022

A representação e seus limites. Pictura loquens, poesia tacens, de Paulo Martins, professor de Língua e Literatura Latina na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, é não somente um livro, mas um monumento; em dupla acepção, pois, se imponente pela extensão e diversidade da matéria tratada, é também memorial, produto que é da tese de livre-docência defendida pelo autor em 2013, a culminância de uma pesquisa que, segundo o mesmo, ocupa-o já há mais de três décadas.

Formatado em duas partes distintas, compostas por seis e sete capítulos, respectivamente, o trabalho ocupa-se sobretudo de imagines – ou, talvez mais propriamente, das práticas do fabrico de imagens – verbais e não-verbais, discursivas e iconográficas, em recorte espaço-temporal que compreende a Roma da República tardia e do Principado augustano.

Disso decorre que o objeto do estudo consista, por um lado, de textos que produzam visualidades, pertencentes a gêneros poéticos tão diversos quanto o épico, o elegíaco e o bucólico, e, por outro lado, de toda uma série de reproduções pictóricas, da pintura à escultura, passando pelos mosaicos, pelos baixos e altos-relevos e também por moedas, que são examinados, do ponto de vista teórico, sob o prisma das práticas e doutrinas poéticas, retóricas e gramaticais encontradas em vários autores e tratados antigos, com evidente auxílio de abundante bibliografia moderna.

A análise que se apresenta na primeira seção do livro e em seus seis capítulos assenta-se, antes de tudo, sobre a figura da écfrase (ἔκφρασις, em latim descriptio), procedimento retórico-poético primeiro sistematizado nos progymnasmata, manuais práticos de retórica aplicados nas escolas imperiais a partir do século I d.C., e que pode ser sumariamente definido como um mecanismo descritivo que detalha pessoas e objetos de modo a produzir enargia. A enargia (ἐνάργεια, em latim euidentia), conceito correlato e indissociável da écfrase, consiste na “descrição viva e detalhada de um objeto, mediante a enumeração de suas particularidades sensíveis, quer sejam reais ou inventadas pela fantasia” (Rodolpho, 2014, p. 95). A fantasia (φαντασία, em latim imaginatio), enquanto faculdade do intelecto, é requisito não só para a confecção da écfrase pelo autor, mas também para a recepção da écfrase pela audiência.

A fundamentação teórica essencial do livro é fornecida pelo autor nos prolegômenos; pois que a primeira parte (intitulada Pictura loquens – Pintura de Palavras) não tem como intuito apresentar teorização exaustiva da écfrase ou dos conceitos afins a ela;1 antes – e esse é grande mérito de Martins – visa à reflexão do tropo a partir de sua aplicação na exegese de diversos textos dotados de visualidades e produzidos no recorte histórico proposto – o primeiro capítulo a lidar com passagem da Odisseia é exceção que confirma a regra.

Assim, o autor discorre sobre como a écfrase do palácio de Alcínoo, no canto VII da épica homérica, funciona tal e qual uma suspensão digressiva da narrativa odisseica, intermédio entre as ações presentes – a saída da ilha de Calipso e o regresso a Ítaca – e as passadas – o fim da guerra de Troia e a chegada aos domínios da deusa; e, ademais, no segundo capítulo, sobre como, não obstante seu caráter digressivo, a écfrase não se apresenta na qualidade de mera ferramenta ancilar à narração, mas, sim, é nela inserida e a ela integrada, conforme se constata pela análise das cenas iliádicas pintadas nas paredes do templo de Juno em Cartago, descritas no livro I da Eneida, de Virgílio, e sua associação – amparada nos conceitos de δόξα e ἐπιστήμη, termos derivados da epistemologia platônica – com a catábase empreendida pelo herói no livro VI, ambas as passagens marcos no autorreconhecimento de Eneias em seu caminho para a realização de seu fatum – e, por que não?, para a realização da narrativa mesma.

A ligação entre digressão e écfrase, em suas diferenças e semelhanças, é explorada mais detalhadamente no capítulo seguinte, no qual, tendo discorrido acerca do caráter recapitulativo da digressão, por um lado, e da função antecipatória da écfrase, por outro, Martins argumenta como a “écfrase digressiva”, em que consiste a elegia 2.12, de Propércio – célebre retrato de Amor, ou Cupido, enquanto menino alado com setas nas mãos –, quando relacionada ao poema precedente, 2.11, e ao contexto geral da divisão dos livros do poeta elegíaco, reforça a tese de que 2.12 consiste, de fato, no início de um novo livro, usualmente nomeado 2B pela crítica.2

No quarto capítulo, o estudioso trabalha certas visualidades presentes nas Bucólicas, de Virgílio, tendo em vista sua finalidade – a qual seria, dada a complementaridade entre as categorias poéticas e retórica, tanto delectare, pois dulces, quanto mouere, porque utiles, atendendo, portanto, às virtudes da elocutio e também às da inuentio. Já a associação (ou mais propriamente, como diz Martins, a homologia) entre o verbal e o não verbal é explorada no seguinte, que tem como ponto de partida a relação traçada por Cícero, em De Inuentione, entre seu projeto retórico e a pintura de Zêuxis. Demonstra-se, por exemplo, como, através dessa homologia, Cícero predica sua retórica a partir das qualidades costumeiramente atribuídas à obra de Zêuxis, de modo a transferir para si, ainda um jovem orador à época da composição do tratado, a auctoritas conferida ao pintor grego.

Mas se, nessa primeira parte do livro, a reflexão acerca do procedimento da écfrase e sua aplicação dominam o horizonte argumentativo, a segunda parte (nomeada Poesia Tacens – Poesia de Imagens), que lida com as imagens pictóricas propriamente ditas, caracteriza-se por maior variação na abordagem teórica. Assim, vê-se, no capítulo inicial, como o uso da parataxe, enquanto mecanismo que transforma “as proposições [...] em construções paralelas, independentes ou justapostas” e que consiste em um “processo de ligação que encadeia frases ou termos, sem explicitar por meio de partículas coordenativas e subordinativas a relação de dependência ou independência existente entre elas” (Martins, 2021, p. 155), pode ser aplicado, a despeito do anacronismo, à análise da iconografia antiga, ou, no capítulo a seguir, como o discurso visual também se utiliza de figuras como a metáfora, o símile e a alegoria para a produção de sentido.

A homologia entre palavra e pintura é retomada no terceiro capítulo, quando Martins lança mão da correspondência entre gêneros e artes visuais proposta por Aristóteles na Poética e na Política; isto é, utiliza-se da correlação entre os gêneros elevado, médio e baixo que imitam, respectivamente, homens superiores, iguais a nós e inferiores, assim designados de acordo com sua índole elevada, média ou baixa, para a análise de diversas pinturas antigas.

No capítulo que se segue, são discutidos, no âmbito mais geral da imago, os termos específicos simulacrum e effigies. O autor argumenta como o uso de um e de outro não é arbitrário e parte, antes, de uma terminologia bem estabelecida, na qual effigies corresponde ao que os modernos chamam de retrato verista – ou seja, um retrato calcado a partir de um modelo – e simulacrum, ao idealizado, e como tal nomenclatura pode ser aplicada, outrossim, a retratos verbais. As effigies são, oportunamente, no quinto capítulo, associadas ao culto patrício aos antepassados, no âmbito privado e, em procissões, ritos e sacrifícios públicos, à manutenção e perpetuação do poder e posição social da gens.

No penúltimo capítulo, o sexto, Martins demonstra como a homologia entre texto e imagem pode ser utilizada para o estudo da história romana. No caso, lança-se mão tanto de textos quanto de imagines públicas produzidos sob o domínio de Augusto para investigar a constituição de seus poderes e autoridades, e suas respectivas representações, enquanto Caesar diuifilius, propraetor, princeps senatus, Pontifex Maximus etc. Já no capítulo derradeiro, buscam-se, a partir da exposição – e disposição – da iconografia romana em mostras e museus, as diferentes leituras dadas a esse material nos tempos atuais.

O livro, que contém ainda excurso no qual se discute o problema da verdade e verossimilhança a partir da interpretação, outrora comum, da poesia antiga em chave histórico-biográfica, e também prefácio escrito pelo Prof. João Angelo Oliva Neto, é, ao fim e ao cabo, importante contribuição às letras clássicas e à história da arte antiga, em especial no que toca às homologias de ambos os discursos, textual e pictórico.

Referências

MARTINS, Paulo. A representação e seus limites. Pictura loquens, poesia tacens. São Paulo: EDUSP, 2021.

RODOLPHO, Melina. Écfrase e evidência nas letras latinas. Doutrina e Práxis. São Paulo: Humanitas, 2013.

RODOLPHO, Melina. Écfrase e evidência. Letras Clássicas, v. 18, n. 1, p. 94-113, 2014.

WEBB, Ruth. Ekphrasis, Imagination and Persuasion in Ancient Rhetorical Theory and Practice. Farnham: Ashgate Publishing Limited, 2009.

Notas

1 Àqueles que buscam semelhante discussão teórica, recomenda-se as monografias de Webb (2009) e Rodolpho (2013).
2 A propósito, o gênero elegíaco é discutido novamente no capítulo VI, último da primeira parte do livro, no qual o autor lida, com menor ênfase na discussão do tropo ecfrástico, com o estabelecimento do programa poético da elegia erótica romana a partir do poema 65 de Catulo.
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