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Tradução comentada de Corpus Hermeticum IV
Commented translation of Corpus Hermeticum IV
Tradução comentada de Corpus Hermeticum IV
Classica - Revista Brasileira de Estudos Clássicos, vol. 36, pp. 1-22, 2023
Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos
Recepción: 26 Agosto 2022
Aprobación: 09 Enero 2023
Resumo: Propõe-se aqui uma tradução comentada de Corpus Hermeticum IV (CH IV). O texto grego de base é o de Arthur Darby Nock e André-Jean Festugière, presente na edição de Ilaria Ramelli (Milano: Bompiani, 2014).
Palavras-chave: hermetismo, nous, batismo, cratera, tradução.
Abstract: This paper proposes a commented Portuguese translation of Corpus Hermeticum IV (CH VI). The reference Greek text is that of Arthur Darby Nock and André-Jean Festugière, present in the edition by Ilaria Ramelli (Milano: Bompiani, 2014).
Keywords: hermetism, nous, baptism, crater, translation.
Introdução
O estilo redacional de Corpus Hermeticum IV (CH IV) se desenvolve por meio de uma estrutura exortativa, ou seja, enquanto um tratado protréptico (προτρεπτικός), promove a ideia de que o intelecto (νοῦς) é um dom fornecido por Deus, o qual deve ser adquirido como uma espécie de prêmio (ἆθλος), uma distinção que se caracteriza como uma impregnação noética. Dessa maneira, o texto é arranjado através de uma imagem mítica acerca do batismo do intelecto, cuja formulação poderia sugerir a existência de uma disposição ritual de base. Na medida em que, todavia, os traços de uma realidade ritual são mínimos, eles poderiam ser apresentados somente de maneira hipotética (Kerchove, 2012, p. 312).
O tratado versa sobre as propriedades do intelecto e as consequências de sua aquisição (Kerchove, 2012, p. 285). Nesse sentido, o texto é singularmente elaborado por meio da imagem da cratera (κρατήρ) e a sua imersão (βαπτίζω). O termo κρατήρ (cratera) possui o significado de tigela, vaso para misturar vinho e água, copo, taça, cavidade (Liddell; Scott, 1996, p. 991), ou seja, trata-se de um recipiente de armazenamento, onde os líquidos são misturados e a partir do qual são extraídos (Nilsson, 1958, p. 53). Com efeito, a literatura grega apresenta algumas ilustrações similares à que está presente em CH IV, entre as quais podemos destacar o demiurgo platônico que utiliza uma cratera (κρατῆρα) para misturar a alma do mundo (τὴν τοῦ παντὸς ψυχὴν): “ταῦτ᾽ εἶπε, καὶ πάλιν ἐπὶ τὸν πρότερον κρατῆρα, ἐν ᾧ τὴν τοῦ παντὸς ψυχὴν κεραννὺς ἔμισγεν” (Platão, Timeu, 41d). Assim, estamos diante de uma imagem que evoca a ideia de criação enquanto composição, ou seja, uma mistura que organiza e confere forma ao anteriormente desorganizado. Plutarco também escreve sobre uma cratera em que se misturam mitos e palavras “ἐπεὶ δὲ μύθων καὶ λόγων ἀναμεμιγμένων κρατὴρ ἐν μέσῳ πρόκειται” (Plutarco, De defectu oraculorum, 421.A.1). Proclo, por sua vez, relaciona a cratera à deusa Nix, a qual, junto com Fanes, traz à tona cada ser vivo oriundo do invisível, assim como a cratera sustenta as almas destes no mundo. A cratera é a fonte das almas de todos os seres vivos (Nilsson, 1958, p. 55).
O verbo βαπτίζω é raro na literatura hermética, havendo somente mais três ocorrências: CH XII 2 e S.H. XXV.8 (Kerchove, 2012, p. 301). Festugière (1938, p. 2) alude à dificuldade da passagem que alia os termos βάπτισον e κρατῆρα (CH IV 4). O autor de CH IV, segundo Festugière, mistura dois ritos, sendo que o primeiro não é um batismo, mas uma absorção sacramental do vinho que é colocado numa cratera (Festugière, 1938, p. 3). Na Ilíada, os arautos conduziam os leais sacrifícios: dois carneiros e vinho que alegra o coração, fruto da terra num odre de cabra. O arauto Ideu transportava a cratera (κρητῆρα) reluzente e taças de ouro: “Κήρυκες δ’ ἀνὰ ἄστυ θεῶν φέρον ὅρκια πιστὰ ἄρνε δύω καὶ οἶνον ἐΰφρονα καρπὸν ἀρούρης ἀσκῷ ἐν αἰγείῳ· φέρε δὲ κρητῆρα φαεινὸν κῆρυξ Ἰδαῖος ἠδὲ χρύσεια κύπελλα·” (Homero, Ilíada, III, 245-248). No ritual, os divinos arautos (κήρυκες ἀγαυοὶ) reúnem os sacrifícios para os deuses e misturam o vinho (οἶνον) numa cratera (κρητῆρι): “ἀτὰρ κήρυκες ἀγαυοὶ ὅρκια πιστὰ θεῶν σύναγον, κρητῆρι δὲ οἶνον μίσγον” (Homero, Ilíada, III, 268-270). Posteriormente, os carneiros são degolados e o vinho vertido da cratera (κρητῆρος) para as taças (δεπάεσσιν): “Ἦ, καὶ ἀπὸ στομάχους ἀρνῶν τάμε νηλέϊ χαλκῷ· καὶ τοὺς μὲν κατέθηκεν ἐπὶ χθονὸς ἀσπαίροντας θυμοῦ δευομένους· ἀπὸ γὰρ μένος εἵλετο χαλκός. οἶνον δ’ ἐκ κρητῆρος ἀφυσσόμενοι δεπάεσσιν ἔκχεον” (Homero, Ilíada, III, 292-6). As passagens homéricas sugerem uma vinculação entre o substantivo κρατήρ e o verbo μίγνυμι, cujo particípio é μίσγον. O verbo μίγνυμι ou μείγνυμι, num sentido estrito, significa misturar líquidos (Liddell; Scott, 1996, p. 1092). Na Odisseia, temos mais um exemplo dessa relação, onde vinho (οἶνον) e água (ὕδωρ) foram misturados (ἔμισγον) em crateras (κρητῆρσι): “οἱ μὲν ἄρ’ οἶνον ἔμισγον ἐνὶ κρητῆρσι καὶ ὕδωρ” (Homero, Odisseia, I, 100). Aqui, κρατήρ possui o sentido de taça, vaso ou jarro. Em Provérbios 9,1-6, a sabedoria (σοφία) mistura (ἐκέρασεν) na cratera (κρατῆρα) seu próprio vinho (οἶνον). Posteriormente, envia seus escravos para anunciar, junto à cratera, que os insensatos devem abandonar a insensatez (ἀφροσύνη) e procurar a sensatez (φρόνησιν), a fim de que vivam (βιώσητε). O primeiro aspecto, portanto, refere-se à mistura ritual do vinho numa cratera. O segundo, concerne à construção metafórica de beber o conhecimento, beber a virtude, beber a sabedoria, a fim de purificar as iniquidades. O emprego dessas metáforas é atestado em Philo de Alexandria (De Somniis, II, 190), Pistis Sophia (IV, 142) e Irineu de Lião, (Contra as Heresias, 13,2). Nesse sentido, a cerimônia que anuncia o arauto não constitui um banho, um batismo, mas uma absorção do νοῦς. A alma é convidada a beber o intelecto a fim de adquirir a iniciação perfeita (Festugière, 1938, p. 6). CH IV emprega a mistura de dois ritos, um relacionado à absorção de uma bebida sagrada tirada da cratera; o outro, a um banho de purificação e iniciação (Festugière, 1938, p. 8). Enquanto na literatura homérica destacamos o uso do verbo μίγνυμι, nos Provérbios há a prevalência do verbo κεράννυμι. Isso é bastante relevante e poderia sugerir, ao menos a partir da época helenística, uma vinculação mais íntima entre a cratera e as concepções alquímicas, tendo em vista que o verbo κεράννυμι, em sentido estrito, denota uma mistura que combina os elementos num novo composto, isto é, uma mistura química (Thayer, 2000, p. 344). Deve-se notar que o lexema κρατήρ advém da mesma raiz do verbo κεράννυμι (Lira, 2014, p. 155). Por outro lado, o verbo μίγνυμι se refere a uma mistura enquanto combinação, ou seja, uma mistura mecânica (Thayer, 2000, p. 344). Essa interpretação ganha força quando se leva em consideração uma passagem de Zósimo, onde é descrita a maneira de seguir a vida real da alquimia: recolher-se em si mesmo, cessar todas as paixões e fazer sacrifícios aos daemones (Kerchove, 2012, p. 314). Segundo Zósimo, a verdadeira via da alquimia consiste em perseguir a consciência de si e de Deus (Kerchove, 2012, p. 314). Por isso, Zósimo aconselha Theosebeia, para que, depois de ter se apressado para “Poimenandra” e se batizado numa cratera, ela deve retornar para sua classe espiritual: “καὶ καταδραμοῦσα ἐπὶ τὸν Ποιμένανδρα καὶ βαπτῖσθεισα τῷ χρατῆσι, ἀνάδραμε ἐπὶ τὸ γένος τὸ σόν” (Zósimo, A Quitação Final, 2.245.6-7).
Marc Philonenko evoca as imagens do escanção e da cratera, correspondentes a um aspecto da vida social grega antiga, a saber, o banquete a partir do qual um jovem servidor dispõe o vinho na cratera para servir aos convivas (2003, p. 335). É por meio dessa ilustração que Aquiles demanda a Pátroclo que coloque uma cratera maior, misture um vinho mais forte e sirva uma taça a cada um (Homero, Ilíada, IX, 202-203). Philo fala de um escanção (οἰνοχόος) que extrai de uma cratera divina (ἐκ τοῦ θείου κρατῆρος), a qual Deus mesmo encheu de virtudes (ἀρετῶν): “καὶ ὁ ἀρυσάμενος οἰνοχόος ἐκ τοῦ θείου κρατῆρος, ὃν αὐτὸς ὁ θεὸς ἀρετῶν πεπλήρωκεν ἐπὶ χείλη” (De Somniis II, 190). O Apocalipse Grego de Baruque (11.8.1-9) fala de uma grande tigela introduzida (φιάλην μεγάλην) pelo Arquiestratego Miguel (ὁ ἀρχιστράτηγος Μιχαήλ), um receptáculo que contém as virtudes dos justos (αἱ ἀρεταὶ τῶν δικαίων).
A imagem da cratera também se encontra na Cabala (Philonenko, 2003, p. 339). A doutrina da cratera mística, contida em CH IV, relaciona-se aos relatos de Hipólito (acerca dos Naassenos, Sethinianos), aos textos mandeus, ao Papiro Mágico de Turim: “les initiés buvaient l’eau vive des baptêmes et savaient que le rite de l’eau et du vin mêlés dans la coupe donnait naissance, dans les cieux, à l’Homme parfait et faisait d’eux, sur terre, à leur tour, deshommes parfaits” (Philonenko, 2003, p. 344). Em outros meios religiosos, entre os judeus, egípcios, nos cultos a Ísis, existem ritos de purificação junto à água, porém não se deve confundi-los com o batismo cristão, “un rite d’immersion symbolisant le commencement d’une nouvelle vie et l’entrée dans la communauté chrétienne” (Kerchove, 2012, p. 303).
CH IV apresenta algumas características da cosmologia e antropologia hermética. Assim, exprime que o demiurgo fez o cosmos com a palavra (λόγος) e pela própria vontade (τῇ δὲ αὐτοῦ θελήσει). Nesse sentido, pode-se considerar que a cosmologia hermética é otimista e o seu demiurgo é bom. Como consequência, temos que a natureza é essencialmente boa (CH V) e, dessa maneira, é afirmado um monismo, porquanto não existe oposição absoluta entre Deus e o mundo, tendo em vista que o bem é a essência de todo movimento e geração (Petersen, 2002, p. 98-9). Christian Bull (2018, p. 210) sugere que os tratados que versam sobre o vício do mundo material, a alienação do corpo e o problema da maldade pertencem a um grau de instrução denominado dualismo pedagógico, em que o iniciado é compelido a se alienar do corpo, mas, posteriormente, no ritual de regeneração (CH XIII), reavalia o estatuto do corpo e do mundo, entendendo a sua função. Em termos tipológicos, é preciso deixar claro que o panteísmo hermético é estritamente pragmático, ou seja, só faz sentido no aspecto ritual místico de ingressão ao reino divino. Nesse sentido, como defende Jørgen Podemann Sørensen (2017, p. 20), o Deus do Hermetismo é transcendente e a natureza é a sua presença tangível como um processo criativo contínuo. No que se refere à antropologia, todos os homens possuem a razão (λόγος), mas nem todos foram contemplados com o intelecto (νοῦς): “τὸν μὲν οὖν λόγον, ὦ Τάτ, ἐν πᾶσι τοῖς ἀνθρώποις ἐμέρισε, τὸν δὲ νοῦν οὐκετι” (CH IV 3). O motivo reside na vontade de Deus em estabelecer o intelecto como uma espécie de prêmio (ἆθλον), uma recompensa a determinadas almas que assimilarem o discurso de Hermes e participarem da gnose (οὗτοι μετέσχον τῆς γνώσεως), tornando-se, assim, homens perfeitos (καὶ τέλειοι ἐγένοντο ἄνθρωποι). A imagem formulada a partir dessa ideia é a de uma grande cratera preenchida de intelecto, cujo anúncio é fornecido por um arauto, a fim de que os ‘escolhidos’ possam se imergir nessa espécie de útero intelectual (CH IV 4).
Intelecto e razão são conceitualizados enquanto entidades distintas, porém não antagônicas, pois se harmonizam por meio de uma relação de complementariedade. Por conseguinte, o mal reside na ideia da autossuficiência da razão, tendo em vista que a natureza da realidade não pode ser reduzida a formulações discursivas, mas deve ser experienciada intelectualmente através de práticas visionárias, tal como fora concebida a revelação apresentada por Poimandres “τοῦτο εἰπὼν ἠλλάγη τῇ ἰδέιᾳ, καὶ εὐθέως πάντα μοι ἤνοικτο ῥοπή, καὶ ὁρῶ θέαν ἀόριστον, φῶς δὲ πάντα γεγενημένα, εὔδιόν τε καὶ ἱλαρόν, καὶ ἠράσθην ιδών” (CH I 4). Assim, no que se refere ao caminho da verdade, a razão discursiva (λόγος) conduz o intelecto (νοῦς) até certo ponto: “ὁ γὰρ λόγος οὐ φθάνει μέχρι τῆς ἀληθείας, ὁ δὲ νοῦς μέγας ἐστὶ καὶ ὑπο τοῦ λόγου μέχρι τινὸς ὁδηγηθεὶς φθάνειν ἔχει <ἕως> τῆς ἀληθείας” (CH IX 10).
De um ponto de vista teocêntrico, o intelecto (νοῦς) é concebido como a essência de Deus: “Ὁ νοῦς, ὦ Τάτ, ἐξ αὐτῆς τῆς τοῦ θεοῦ οὐσίας ἐστίν, εἴ γέ τις ἔστιν οὐσία θεοῦ· καὶ ποία τις οὖσα τυγχάνει, οὗτος μόνος ἀκριβῶς αὐτὸν οἶδεν” (CH XII 1). Num referencial antropocêntrico, o intelecto constitui a conexão do ser humano com o divino: “the Hermetical Nous is the connection of God with humankind and is the spiritual dimension of Man himself” (Pereira, 2012, p. 146). O homem só e capaz de obter o intelecto porque o próprio homem, em sua essencialidade, é uma emanação de Deus. Para compreender essa dimensão noética, é necessária uma análise do padrão cosmogônico egípcio. Com efeito, existe uma distinção entre o modelo judaico, onde Deus cria/produz as coisas no início: “ἐν ἀρχῇ ἐποίησεν ὁ θεὸς τὸν οὐρανὸν καὶ τὴν γῆν” (Bíblia, Gênesis I, 1), e o modelo emanacionista egipto-hermético, onde Deus é o próprio princípio. O princípio básico egípcio da criação é o seguinte: o criador vem a ser de si mesmo, ele é o criador de si mesmo, e reproduz a si próprio através da criação, e tudo que vem à existência já preexiste no criador antes da criação: “None of the different Egyptian myths of creation posits this radical distinction between creator and creation” (Sørensen, 2017, p. 2). O verbo utilizado nos mitos de criação para ‘existir’, ‘vir a ser’ é ḫpr (Gardiner, 2001, p. 552). Portanto, o homem noético já preexiste na esfera de Deus. Renata Tatomir sugere uma vinculação entre νοῦς e o vocábulo egípcio nw (Tatomir, 2002, p. 81).
Ronaldo Guilherme Gurgel Pereira (2012, p. 151), por sua vez, sugere a vinculação entre νοῦς e o vocábulo egípcio sj3, (pensamento/ vontade do coração). O νοῦς hermético, então, é a conexão de Deus com a humanidade, ou seja, o intelecto é a própria dimensão espiritual do homem. Dessa maneira, Ronaldo Pereira (2012, p. 151) propõe que a associação de νοῦς e λόγος na literatura hermética é similar ao mito de criação por sj3(pensamento/ vontade do coração), ḥw (enunciado) e ḥk3(heka: eficácia do poder criativo). Rehab Assem define ḥw como a personificação do termo religioso ‘enunciado criativo’. Nos ensinamentos alinhados à criação pela palavra, o deus-criador requer a sua realização. Assim, ḥw está ligado à personificação conceitual da realização que é sj3(pensamento/ vontade do coração). Portanto, “the seat of the utterance (ḥw) is the mouth, the realization (sj3) the heart” (Assem, 2012, p. 21). Dessa forma, a associação hermética de νοῦς e λόγος parece ser similar ao mito egípcio da criação por sj3, ḥw e ḥk3, isso pois “Egyptian thought had no formal separation between mental and magical operations” (Pereira, 2012, p. 156). O vocábulo sj3, que pode significar tanto pensamento quanto coração, relaciona-se ao intelecto (νοῦς) e ao coração (καρδία), cuja identificação é exposta em diversas passagens da literatura hermética, ou seja, o poder do intelecto é igualmente o poder do coração (CH VII 2): “porquanto ele não é audível, nem exprimível, nem visível aos olhos, mas ao intelecto e ao coração” (CH VII 2).
O argumento de Ronaldo Pereira, que defende a articulação entre λόγος e νοῦς à luz do pensamento egípcio, depende do exame da literatura cosmogônica, tal como é exposta na chamada Teologia de Mênfis. O texto estabelece a teoria da criação pelo comando, em que Ptah, o deus demiurgo, assume o aspecto de Atum enquanto coração (intelecto/ pensamento/ vontade do coração) e língua (enunciado, comando). Ptah está associado ao intelecto do criador (Atum), assim ele não é o deus criador, mas o intermediário entre o ato de pensamento criativo e o discurso (Pereira, 2010, p. 138). Esses dois aspectos, coração e língua, dão ensejo ao processo de eficácia do poder criativo (ḥk3) (Lichteim, 2016, p. 54).
A mensagem acerca do dom do intelecto é fornecida aos corações dos homens (Kerchove, 2012, p. 296). As Instruções de Ptahotep exemplificam a articulação entre a audição das coisas divinas e o coração do homem: “He who hears is beloved of god, / He whom god hates does not hear/ (550) The heart makes of its owner a hearer or non-hearer, / Man’s heart is his life-prosperity-health!” (Lichteim, 2016, p. 54). O coração hermético é aquele que escuta a palavra divina (Kerchove, 2012, p. 297). No pensamento egípcio, a “língua repercute o pensamento do coração” (Lira, 2014, p. 129). Os egípcios acreditavam em dois corações (ib e ḥ3tj). O ib pode ser traduzido como coração e mente (Lira, 2014, p. 129). Nesse sentido, “uma pessoa sem coração (ntj ḥ3tj) era, antes de tudo, uma pessoa estúpida, sem sentido ou sem mente” (Lira, 2014, p. 129). Anna van den Kerchove, numa comunicação, observa que o hieróglifo egípcio para coração, representando um vaso canópico (ib), se assemelha a uma tigela (Bull, 2018, p. 261). Nesse sentido, deve-se levar em consideração o banquete egípcio, no que se refere ao caráter devocional e sua dimensão espiritualizada (Lira, 2014, p. 177-8).
É possível que o autor do CH IV também tenha tido contato com a imagem da cratera relacionada aos banquetes hathóricos (Lira, 2014, p. 299). Nesse sentido, “é pertinente que se aprecie e se averigue o hino chamado de Aparição Onírica de Háthor (Estela Wien 8390), com o intuito de demonstrar sua tradição com respeito à ideia do banho e da embriaguez do coração” (Lira, 2014, p. 300). Com efeito, pode-se destacar ressonâncias egípcias dentro do constructo hermético, no que se refere a expressões relativas ao embriagar do coração e demais sentidos adjacentes (Lira, 2014, p. 275).
O intelecto estabelece uma ligação entre Deus e o homem (Kerchove, 2012, p. 292). Em CH IV, o intelecto é considerado simplesmente uma faculdade intelectual; em CH I, é considerado como uma entidade divina personificada (Kerchove, 2012, p. 300). Por sua vez, a cratera é o recipiente do intelecto e lugar no qual o coração deve ir, de acordo com a palavra divina (Kerchove, 2012, p. 304). No Egito, o coração intervém no destino do falecido, visto que o julgamento consiste em que o coração deve pesar menos do que uma pena (Kerchove, 2012, p. 297). Nas práticas rituais egípcias, a absorção de bebida é um modo de adquirir um saber ou um poder. A bebida incide sobre o coração concebido como o centro da vida afetiva do homem (Kerchove, 2012, p. 306).
Um outro aspecto do tratado versa sobre a metafísica de referência, a qual é constituída por uma tecitura neopitagórica. A mônada, por conseguinte, é considerada o princípio que abrange todas as coisas enquanto número (CH IV 10). Certas concepções neopitagóricas parecem estar presentes nessa elaboração. Segundo Moderato de Cádiz, o número é um sistema de mônadas, ou uma progressão de multiplicidades se iniciando a partir da mônada, e uma regressão terminando na mônada (Fragmento 1, Linha 1.1-3). Para Plutarco, os pitagóricos consideram o fogo (πῦρ) enquanto mônada (μονάδα) (Numa, 11.1.5-11.2.1). Cirilo de Alexandria conserva um fragmento hermético, no qual se diz que a pirâmide se encontra na fundação da natureza e do mundo inteligível; ademais, possui como líder e superior a palavra demiúrgica do senhor de todas as coisas (F.H. 28). Tendo em vista que, segundo Platão, a pirâmide é o primeiro tetraedro (Timeu, 56b3), Festugière (1949, p. 211) considera a pirâmide equivalente a Tetraktys pitagórica, visto que Jâmblico reporta que desde o tempo de Espeusipo a πυραμίς é o símbolo da tétrade (Teologia de Aritmética, 84.10-11). A tétrade enquanto pirâmide também se encontra em Sexto Empírico (Contra os Matemáticos, 7.100.5-7). A pirâmide é o fundamento da natureza justamente porque a pirâmide-tetraedro é o primeiro dos sólidos elementares que constituem o corpo do mundo e, ademais, a tétrade introduz a ordem da regularidade em todos os fenômenos do universo (Festugière, 1949, p. 214). Como contraponto, Mahé relaciona a pirâmide ao monte primal que se eleva a partir das águas primais (Nun), na mitologia egípcia (Mahè,1986, p. 30).
As concepções de Mahé e Festugière não se anulam necessariamente, assim sendo, a pirâmide é o elemento estrutural do fogo, fundamento do mundo inteligível (νοερῷ κόσμῳ) e, por conseguinte, o logos demiúrgico (τὸν δημιουργὸν λόγον) é senhor do fogo. A tetraktys consiste na ideia da dezena como número perfeito, alcançado através da soma 1+2+3+4 e figurado como um triângulo composto de quatro linhas com um, dois, três e quatro pontos por linha (Jâmblico, Teologia da Aritmética, 26.15-27.15.) Na Refutação de todas as Heresias (4.43.4), é dito que a mônada e a década são o início e o fim dos números, ligados por meio da tetraktys, e a década é uma mônada equivalente (4.43.5.3-6). A década engendra a alma, e a união de vida e alma causa a unidade a ser gerada pelo espírito (CH XIII 12). Essa especulação numerológica monádica ajuda a explicar a dinâmica da unidade da dezena contra a da dúzia (CH XIII 11). Os dez poderes conseguem expulsar os doze punidores, isso se dá porque ambos são uma unidade, todavia a dezena é uma unidade autêntica, ao passo que a dúzia é uma unidade somente no ato (ἐν τῇ πράξει) (CH XIII 12). Segundo Nicômaco de Gerasa, deus pode ser equalizado à mônada, pois ele é todas as coisas seminalmente (σπερματικῶς) na natureza, assim como é no número (Jâmblico, Teologia da Artimética, 3.1-4). A década, portanto, é a realização do sistema monádico (Bull, 2018, p. 287). Nesse sentido, poderia ser equalizada à mônada e representativa do poder de Deus no homem, um tal poder que conseguiria romper os vícios adquiridos na terra.
Assim, podemos considerar que o tema central do tratado “gira em torno do dom do conhecimento dado ao homem e o seu retorno a Deus por via contemplativa” (Lira, 2014, p. 137). Por conseguinte, a gnose hermética possui um papel primordial nesse procedimento, pois trata-se do processo de reconhecer a própria dimensão espiritual. Assim, a única maneira de se acessar o divino é através da lembrança de sua autêntica condição espiritual (Pereira, 2010, p. 163). Esse dom do intelecto se desenvolve dentro de uma metafísica que parece conter traços neopitagóricos e, ademais, estabelece-se uma conexão com o sistema semântico do Egito, no que se refere à teoria da criação pelo comando, os festivais hathóricos e o banquete egípcio.
CH IV: De Hermes para Tat: a cratera ou a mônada
[1] “Visto que o demiurgo1 fez o cosmos todo, não com as mãos, mas com a palavra, considera-o assim como aquele que é presente, e que sempre é, o um e único,2 que criou todas as coisas; que plasmou3 pela própria vontade4 as coisas que são. Porquanto, este é o corpo dele, nem tangível, nem visível, nem mensurável, sem dimensões, nem similar a qualquer outro corpo; de fato, nem é fogo, nem água, nem ar, nem sopro, mas todas as coisas derivam dele. Sendo bom,5 não quis só para si mesmo dispor esse dom votivo e adornar a terra; [2] ele enviou o homem para baixo, como ornamento do corpo divino, animal mortal como ornamento de um animal imortal, e o cosmos era superior aos seres viventes enquanto o eternamente vivo, assim como <o homem> é superior também ao cosmos, quanto à razão6 e ao intelecto.7 O homem se tornou espectador da obra de deus,8 e se maravilhou e reconheceu o criador. [3] A razão, então, ó Tat, foi distribuída em todos os homens, mas não o intelecto, não tendo inveja a alguns. A inveja, de fato, não vem de cima, mas se forma aqui embaixo nas almas dos homens que não possuem o intelecto”.9
“Por qual razão, então, ó pai, deus não distribuiu a todos o intelecto?10
“Ele quis, ó filho, que fosse posto no meio para as almas, tal como um prêmio.”11
[4] “E onde o pôs?”
“Tendo enchido disso [scil. De intelecto] uma grande cratera, enviou-o, confiando-o a um arauto,12 e ordenou-lhe proclamar13 aos corações14 dos homens o seguinte: ‘imerge-te nesta cratera,15 tu que podes, que tens fé, que ascenderás para aquele que enviou a cratera para baixo, e que sabes para qual fim nasceras.’”
“Então, todos os que entenderam o anúncio, batizaram-se com o intelecto;16 foram os que participaram da gnose e tornaram-se homens perfeitos,17 tendo recebido o intelecto. Ao contrário, todos os que erraram em entender o anúncio foram os que possuem [só] a razão, não tendo recebido o intelecto, e ignorando para qual fim nasceram e por quais causas. [5] As sensações desses, de fato, são parecidas com aquelas dos animais irracionais, e carregando o temperamento animoso e colérico, não admiram as coisas dignas de contemplação, mas dirigem à atenção aos prazeres e aos apetites dos corpos, e creem que o homem nascera por causa dessas coisas. Ao contrário, todos os que participam no dom recebido de deus, estes, ó Tat, segundo a comparação dos atos, são imortais18 em vez de mortais, todas as coisas tendo englobado com o próprio intelecto, as coisas sobre a terra, as coisas no céu, e também se há as coisas além do céu. Tendo se elevado grandemente, eles viram o bem e, tendo-o visto, consideram um infortúnio a demora aqui embaixo. Tendo desprezado todas as realidades corpóreas e incorpóreas, procuram com ardor o uno e o único. [6] Essa, ó Tat, é a ciência do intelecto, {abundância} das coisas divinas, compreensão de deus, sendo a cratera divina.”
“Eu também quero me batizar, ó pai.”
“Se primeiramente não odiares o teu corpo, ó filho, não serás capaz de amar a ti mesmo. Todavia, tendo amado a ti mesmo, terá o intelecto, e tendo o intelecto, também tu participarás na ciência.”
“Em que sentido tu falas essas coisas, ó pai?
“É de fato impossível, ó filho, tomar parte em ambos, nas coisas mortais e coisas imortais. Porquanto, há dois tipos de coisas que são, corpóreas e incorpóreas, nas quais há o mortal e o divino, a quem quer escolher resta a escolha de um ou de outro. Porquanto, não é possível escolher ambos, e nas coisas em que é deixada a escolha, o que resulta inferior revela a potência do outro. [7] A escolha do melhor não somente resulta belíssimo ao que escolhe, tornando o homem deus, mas também exibe a devoção a deus. Ao contrário, a escolha do pior destruiu o homem, mesmo se por nada ofendeu a deus, senão somente por isto: assim como as procissões passam no meio da rua e sozinhas não são capazes de produzir algo, mas são impedimentos aos outros, da mesma forma também, essas pessoas fazem procissões no cosmos, levadas pelos prazeres corpóreos. [8] Sendo assim as coisas, ó Tat, estarão à nossa disposição as coisas que vêm de deus. Que o que vem de nós siga e não seja menor, visto que deus não é responsável, mas nós somos as causas das coisas malvadas, preferindo-as às coisas belas. Vê, ó filho, através de quantos corpos devemos passar, e através de quantas fileiras de daemones, qual sucessão contínua e quantos cursos de estrelas, a fim de que sigamos em direção ao uno e único. O bem, pois, é intransponível, sem limites e sem fim, sem princípio em si mesmo, mas a nós parecendo que tenha um princípio, a ciência. [9] A gnose, então, não é o princípio do bem, mas nos proporciona o princípio do bem que será conhecido. Que nós peguemos, então, o princípio, e percorramos rápidos todas as coisas; sem dúvida é um caminho tortuoso, abandonar as habituais e presentes para voltar às arcaicas, às originárias. As coisas visíveis aprazem, ao passo que o não visível produz receio. A maldade é mais visível, mas as coisas invisíveis nos fazem desconfiar. As coisas mais manifestas são más, enquanto o bem é invisível às coisas visíveis; porquanto não há nem a forma nem o aspecto dele. Por isso, é similar a si mesmo, ao passo que é dessemelhante a todas as outras coisas; impossível é, pois, a um incorpóreo ser visível a um corpo; [10] esta é a diferença do similar em relação ao dessemelhante, e a deficiência do dessemelhante em relação ao semelhante. A mônada, pois, que é princípio e raiz de todas as coisas, está em todas as coisas como princípio e raiz. Sem um princípio não há nada, mas o princípio não advém de nada senão de si mesmo, se é o princípio das outras coisas. A mônada, sendo princípio, abrange todas as coisas enquanto número, e é abrangida por nenhum deles, e gera cada número, não sendo gerada por nenhum outro número.19 [11] Tudo o que é gerado é imperfeito e separável, sujeito a crescimento e diminuição, enquanto ao que é perfeito não acontece nenhuma dessas coisas. O que pode ser aumentado aumenta-se a partir da mônada, mas se consome pela sua própria fraqueza, não mais sendo capaz de acolher a mônada.20 Esta é, então, ó Tat, a imagem de deus, que foi traçada pelo que é possível. Se a contemplares com precisão e as pensares com os olhos do coração, confie em mim, ó filho, encontrarás a via para as coisas de cima. Mas sobretudo a própria te guiará. A contemplação carrega certa peculiaridade: ela liga e puxa para cima os que se anteciparam na contemplação, assim como dizem que o ímã faz com o ferro.”
Considerações Finais
CH IV apresenta a alegoria da cratera e a sua imersão. A imagem apresentada se refere à obtenção de um dom divino, o intelecto (νοῦς). Dessa forma, não se trata de um batismo no sentido de purificação, mas o de se impregnar, o de se embeber. A palavra divina, por conseguinte, fala ao coração dos homens, exorta-os a se tornarem homens perfeitos através da obtenção do intelecto, não se restringindo a possuir somente a razão/palavra (λόγος). Ocorre, por conseguinte, a distinção entre dois homens, segundo a posse ou não do intelecto. Assim, o coração é concebido como a sede do intelecto, ou, então, é identificado a ele. Isso poderia sugerir que o bem, frequentemente associado a Deus, não pode ser subsumido a uma realidade discursiva (λόγος), antes se faz necessária a aquisição de uma faculdade extradiscursiva que se reporte à dimensão espiritual do homem, a sua essência.
O dom divino do intelecto, portanto, possui suas consequências, tendo em vista que aqueles que o adquirem se tornam imortais, divinos. Com efeito, todos os homens possuem a razão; mas nem todos, o intelecto. Assim, Deus quis que o intelecto fosse colocado no mundo dos homens como um prêmio, ou seja, trata-se de um conhecimento passível de seleção. A cratera, então, é concebida como recipiente, um vaso de mistura dentro do qual o intelecto é disposto e ofertado aos homens, conferindo a oportunidade de uma absorção sacramental e, por conseguinte, não apenas ser dotado de razão, como também ser portador do intelecto. Pode-se colocar em relevo, nesse sentido, que o lexema κρατήρ advém da mesma raiz do verbo κεράννυμι, um tal verbo que se refere a uma mistura que combina os elementos num novo composto, isto é, uma mistura química. Assim, a imagem do batismo no intelecto também evoca a imagem alquímica como exemplificada por Zósimo.
O intelecto estabelece uma ligação entre Deus e o homem, tendo em vista que o seu coração embebido de intelecto se articula ao mundo divino. Assim, por meio do intelecto inteiramente iluminado, o hermetista enlaça tudo de uma vez e conhece a verdade. Uma via da imortalidade é pavimentada e a imortalidade é conferida através da vida do intelecto. O homem perfeito é então formado, levando-se em conta que o intelecto é emanação de Deus e, assim, ter intelecto é estar em contato com a vontade de Deus (Pereira, 2010, p. 133). Dessa forma, ocorre a ritualização da linguagem filosófica, na medida em que o tratado se ocupa, primordialmente, da evocação de imagens expressivas tais como a cratera, a imersão, o arauto, o coração dos homens, enfim, trata-se da habilidade em organizar essas imagens em termos de temas culturalmente relevantes. (Chlup, 2007, p. 148).
Glossário
ἀγαθός: o bem; o bom; o bem é invisível às coisas visíveis é similar a si mesmo e dessemelhante a todas as outras coisas (CH IV 9); tanto o bem (ἀγαθός) quanto o belo (κάλλος) são inseparáveis de Deus (CH VI 5); ignorar Deus é o vício completo, mas ser capaz de conhecer, querer e esperar, é a via que conduz ao bem (CH XI 21); o caminho da devoção (εὐσέβεια) conduz ao bem (S.H. II B 5-6); na literatura hermética, τὸ ἀγαθόν é a própria salvação (Lira, 2021, p. 11).
ἀθάνατος: imortal; a via da imortalidade é constitutiva de uma recusa de se manter no âmbito da ignorância (ἀγνωσία) (CH XI 21; CH I 28-29); o ditado de reconhecer a si próprio como imortal (CH I 18); é necessário uma conversão (μετανοέω) por aqueles que tomam parte na ignorância, a fim de participar da imortalidade (CH I 28); a privação da imortalidade (στερηθῶσι τῆς ἀθανασίας) ocorre aos ignorantes (οἱ ἀγνοοῦντες) (CH I 20); o homem é duplo, mortal por causa do corpo, imortal por causa do homem essencial (οὐσιώδη ἄνθρωπον) (CH I 15); homem terrestre é um deus mortal, e o deus celeste um homem imortal (CH X 25).
ἆθλον: prêmio; recompensa; Deus colocou o intelecto (νοῦς) no meio das almas como um prêmio (CH IV 3).
ἀριθμός: número.
ἀφανής: invisível; a literatura hermética realiza um jogo de palavras, no qual Deus, que é invisível (ἀφανὴς θεὸς), é o mais visível (φανερώτατός) de todos (CH V); o invisível é sempre ἀεί CH V 1; o um não gerado (εἷς ἀγέννητος) é invisível (CHV 2).
βαπτίζω: batizar; imergir; misturar de encher-se, embeber-se, ensopar-se, encharcar-se (voz média); em CH XII 2, o verbo possui um sentido negativo, pois aqui se trata de uma imersão da alma no corpo.
γνῶσις: gnose; conhecimento; é possível que a gnose seja um equivalente grego ao termo egípcio rḫ; a versão copta da Oração de Ação de Graças (NHC VI 7 64.6-8) expõe a relação entre γνῶσις, λόγος e νοῦς, ligando esses termos ao estágio final da iniciação hermética; a devoção em companhia com a gnose é a única via que leva ao belo (CH VI 5); existe somente esta salvação ao homem: a gnose de Deus (CH X 15); o homem foi criado para a gnose das obras divinas (CH III 3).
δημιουργός: demiurgo; o intelecto que é Deus, sendo hermafrodita (ἀρρενόθηλυς), existente como vida (ζωὴ) e luz (φῶς), pariu com uma palavra um outro intelecto demiurgo (ἕτερον Νοῦν δημιουργόν) (CH I 9). O demiurgo é irmão do homem primordial.
δωρεά: dom; CH IV trata do dom divino do intelecto.
ἐνέργεια: energia; atividade; as ἐνεργείας são incorpóreas, mas somente funcionam em corpos (S.H. IV 6); diferentemente das almas, as ἐνεργείας não podem ser independentes dos corpos (S.H. IV 6); dessa maneira, todos os eventos no cosmos se sustentam em ἐνεργείας eternas e imortais; as ἐνεργείας que trabalham nas almas, nos corpos, nos corpos eternos, nas madeiras e nas pedras, são atividades (S.H. IV 8); a ἐνέργεια é qualquer coisa trazida ao ser (S.H. IV 12); força cósmica (Lira, 2021, p. 19).
ἐπιστήμη: ciência; a episteme.
καρδία: coração; poderia estar relacionado ao termo egípcio jb (coração); o termo καρδία é frequentemente sinonimizado a νοῦς (intelecto).
κήρυγμα: anúncio; proclamação.
κῆρυξ: arauto.
κόσμος: ornamento, ordem universal ou mundial, universo, cosmo, mundo (Lira, 2021, p. 23).
κρατήρ: tigela; vaso de mistura; copo, taça, cavidade.
λογικοί: lógicos; homens que possuem a razão (λόγος), mas não o intelecto (νοῦς) (CH IV 4).
λόγος: razão; palavra; discurso; lição; razão discursiva; o homem se distingue dos outros seres por meio da palavra, porquanto os outros seres possuem somente a voz (CH XII 13); a razão é imagem (εἰκὼν) e intelecto de deus (CH XII 14); isso pode significar que o logos é tanto a capacidade do homem de se distinguir dos outros seres, quanto de obter a consciência de Deus; poderia ser sugerida a vinculação entre λόγος e o vocábulo egípcio ḥw (enunciado; comando).
μονάς: mônada.
νοῦς: intelecto; de um ponto de vista teocêntrico, o intelecto deriva da essência de Deus (τῆς τοῦ θεοῦ οὐσίας) (CH XII 1); num referencial antropocêntrico, o intelecto constitui a conexão do ser humano com o divino, ou seja, refere-se à dimensão espiritual do homem.
σῶμα: corpo; corpo enquanto túnica (χιτῶνα), tecido da ignorância (τὸ τῆς ἀγνωσίας ὕφασμα), suporte da maldade (τὸτῆςκακίαςστήριγμα), vínculo da corrupção (τὸν τῆς φθορᾶς δεσμόν), invólucro obscuro (τὸνσκοτεινὸνπερίβολον), morte vivente (τὸν ζῶντα θάνατον), cadáver sensível (τὸν αισθητὸν νεκρόν), sepultura (τάφον); ladrão (λῃστής) (CH VII 2).
τέλειος: perfeito; os que participam na gnose se tornam homens perfeitos (τέλειοι ἄνθρωποι) (CH IV 4).
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Notas