Dossiê Eros e Afrodite no Romance Antigo

Eros marcial em Leucipe e Clitofonte, de Aquiles Tácio

Martial Eros in Leucippe and Clitophon by Achilles Tatius

Lucia Sano
Universidade Federal de São Paulo, Brasil

Eros marcial em Leucipe e Clitofonte, de Aquiles Tácio

Classica - Revista Brasileira de Estudos Clássicos, vol. 35, núm. 2, pp. 1-11, 2022

Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos

Recepción: 26 Abril 2022

Aprobación: 01 Julio 2022

Resumo: Único dos cinco romances de amor narrado em primeira pessoa, Leucipe e Clitofonte de Aquiles Tácio apresenta um desenvolvimento ímpar da tópica do gênero, que diversas vezes beira a subversão ou a paródia dos seus lugares-comuns. Na boca dos personagens, Eros e Afrodite, figuras divinas tão importantes em outros romances, são pouco mais do que alegorias de emoções e desejos. Nesse contexto, com sofisticada alusão literária, Aquiles Tácio explora imagens da militia amoris, tomando-as da elegia erótica e tornando-as romanescas. Este artigo procura analisar a representação de Eros no romance, especificamente a caracterização marcial do deus em algumas passagens da narrativa, que enfatiza a representação do próprio herói Clitofonte como algo paródica do protagonista masculino dos romances de amor.

Palavras-chave: Romance grego, Aquiles Tácio, Eros.

Abstract: Leucippe and Clitotophon by Achilles Tatius is the only one of the five Greek ideal novels narrated in first person, and it presents a unique development of the topic of the genre. As a result, it often borders on subversion or parody of its commonplaces. In the characters’ speech, Eros and Aphrodite, divine figures who play a capital role in the other novels, become little more than allegories of emotions and desires. In this context, with sophisticated literary allusion, Achilles Tatius explores images of the erotic elegy’s militiaamoris, turning them into elements of his novelistic narrative. This article seeks to analyze his representation of Eros, specifically the god’s martial characterization in some passages, which emphasizes the representation of the hero Clitophon himself as somewhat parodic of the male protagonist of the Greek ideal novel.

Keywords: Greek novel, Achilles Tatius, Eros, militia amoris.

Este artigo procura analisar a representação marcial de Eros no romance de Aquiles Tácio (século II d.C.), tendo em vista seu uso para enfatizar a caracterização do próprio Clitofonte como algo paródica do protagonista masculino dos romances de amor.1 Nesse sentido, o contraste com outros heróis do gênero, sobretudo com Quéreas, principal personagem masculino da obra de Cáriton de Afrodísias, será algumas vezes introduzido ao longo do artigo de forma a evidenciar essa distinção.2 Entendo que é na comparação com outros heróis dos romances de amor e com personagens secundários que mais claramente entendemos as complexidades na representação dos protagonistas desse gênero, que muitas vezes contraria as expectativas de heroicidade dos leitores modernos e foi por muito tempo vista como excessivamente convencional.

Do grupo de cinco textos que hoje chamamos de romances gregos de amor, Leucipe e Clitofonte destaca-se por diversos motivos. Um deles é ser o único exemplar quase inteiramente narrado em primeira pessoa por um dos personagens da história, o próprio Clitofonte. Muitas são as consequências dessa escolha para o entendimento da narrativa, que tem início em Sídon, onde um anônimo primeiro narrador do romance relata ter conhecido por acaso o herói, enquanto os dois observavam um quadro, ocasião em que este lhe conta ter sofrido por causa de Eros (I.1-2). Diante da curiosidade desse primeiro narrador, Clitofonte passa a contar a sua história para ele – e igualmente para os leitores (a partir de I.3). Quando a história se encerra, nos deparamos com um fim convencional, ou seja, a celebração de um casamento entre ele e a heroína Leucipe em Bizâncio, cidade onde vivia a família dela, e jamais somos informados sobre o motivo que havia levado Clitofonte a deixar essa cidade e chegar a Sídon, muito menos por que razão ele estava infeliz. Isso gerou uma série de especulações, entre elas a de que Aquiles Tácio, brincando com as convenções do romance, não poupa sequer a maior delas e chega a sugerir que no seu romance não há final feliz para o casal.3

Esse não é o único caso em que é notória a exploração que o autor faz dos limites do gênero. Trata-se de um procedimento narrativo evidente desde o início, pois o herói se empenha em seduzir a heroína e eles chegam perto de praticar o sexo antes do casamento, sendo impedidos pela mãe de Leucipe graças a um sonho que a alerta sobre o perigo e faz com que ela entre no quarto da filha quando Clitofonte já estava na sua cama (II.23). É logo na sequência que os dois decidem fugir em um navio que partia da cidade, dando início à viagem, outra (quase) obrigatoriedade do gênero. Clitofonte, muito diferente dos devotados, se bem que não todos castos, heróis dos outros romances, declara em determinado momento que já havia tido experiências sexuais com prostitutas (III.37), ao participar de um debate a respeito dos prazeres dos amores hetero e homossexual, que costumava ser excluído nas traduções mais pudicas. Mais tarde, em Éfeso, ele cede aos avanços de uma pretendente obstinada, Melite, ainda que a essa altura já soubesse que não só o marido dela, Tersandro, como também Leucipe estavam vivos, diferentemente do que a princípio eles supunham. Após ter relações com Melite em uma cela de prisão (V.27), Clitofonte consegue fugir de lá vestido com as roupas da mulher (VI.1-2). Na sequência, o leitor observa Melite escapar da punição pelo adultério ao jurar que não traiu o marido quando ele estava desaparecido (VIII.11.3). A ironia é que a traição ocorre quando ele já havia retornado à cidade e a esposa estava bastante ciente do fato.

A questão de se Aquiles Tácio quer dar tratamento paródico ao gênero, porém, é complexa.4 O autor parece, na verdade, esticar até o limite as variações possíveis do romance grego sem, no entanto, transformar a sua narrativa em paródia ou pastiche. Com efeito, Chew (2000) sugere que em Leucipe e Clitofonte a paródia deve ser entendida apenas no que tange a moral convencional do romance, em particular à representação da sophrosyne, ou seja, da intenção dos protagonistas em preservar sua castidade, retratando-se a busca da satisfação sexual como o seu objetivo, não o casamento. No fim das contas, porém, os elementos estruturais mais importantes do romance de amor grego acabam por ser observados, como a viagem, a fidelidade da heroína, o reencontro e o casamento, ainda que a castidade de Leucipe seja observada apenas a partir de uma imposição divina, não de um valor pessoal, como ocorre em outros romances.

Ainda mais interessante do que os jogos que Aquiles Tácio cria a partir das expectativas do gênero literário, porém, é o fato de que depende do leitor a forma como a narrativa será lida e onde se perceberá ou não ironia, já que são sugeridas uma variedade de possibilidades a partir do que Whitmarsh (2003) define como subversão da autoridade do narrador, o que se dá por meio da sugestão de leituras contrárias ao que ele inicialmente informa. Assim, os leitores, ao longo da história, “nunca têm muita certeza a respeito do quanto ele sabe” (p. 196).5 O exemplo mais paradigmático dessa ambivalência de pontos de vista na narrativa talvez seja a identificação dos personagens do quadro descrito logo no início do romance, aquele que Clitofonte e o anônimo ouvinte da sua história observam.

Na descrição do primeiro narrador, a figura imponente do deus Eros é introduzida, prenunciando-se como fundamental para narrativa, e era a ele que esse homem dirigia seu olhar (I.1.13): “Eros conduzia o touro. Eros, um menino pequenino, de asas abertas, aljava a tiracolo, empunhava uma tocha; virava-se para Zeus e sorria maliciosamente, como que a troçar dele, pois fora por sua causa que se tinha transformado em touro”.6 Nessa descrição inicial, em que impera Eros, somos apresentados à imagem como uma representação do rapto de Europa por Zeus.

Sugere-se na sequência, todavia, que o próprio Clitofonte via Selene e não Europa nesse quadro, porque pouco depois ele compara sua primeira visão de Leucipe a uma pintura que havia visto na qual ela era representada montada num touro (I.4);7 assim, que o quadro desperte suas lembranças quanto ao que sofreu em razão do seu amor por Leucipe não é algo que se justifica apenas pela figuração da natureza altiva de Eros. Já se demonstrou que a ekphrasis dessa pintura prenuncia os eventos que vão se desenrolar entre Clitofonte e Leucipe,8 mas ele também alerta o leitor de que a narrativa às vezes vai lhe apresentar mais de uma possibilidade de leitura e caberá a ele decidir qual escolher.

Essa forma peculiar de retratar os eventos no romance se estende, naturalmente, ao modo em que os deuses nele são figurados. Aquiles Tácio alteraria inclusive a própria estrutura padrão dos romances, observável nos exemplares de Cáriton de Afrodísias e Xenofonte de Éfeso, em que o deus Eros dá início à trama, enquanto a Tyche impede a reunião dos amantes, algo que só acaba sendo resolvido no fim da narrativa. Em Leucipe e Clitofonte, pelo contrário, teríamos uma Tyche que “não apenas coloca as coisas em movimento, mas também oferece oportunidades para o deleite” (Chew, 2012, p. 76).

É fato que Ártemis e seu culto garantem o final feliz dos acontecimentos, com a deusa intervindo por meio de sonhos e epifanias para proteger e salvar os protagonistas, que com isso também ganham distinção dos demais mortais.9 A presença de Ártemis e sua influência nos eventos é sentida sobretudo na segunda metade da narrativa e é essencial para preservação da vida dos amantes. Por outro lado, quando do relato dos dois sonhos que motivam a decisão de Leucipe e de Clitofonte de – finalmente – preservarem a castidade da heroína até depois do casamento, ao leitor é dado mais uma vez decidir o que significa o sonho de Clitofonte; nele, Afrodite aparece para lhe dizer que ele não podia entrar no seu templo, mas que depois seria feito “sacerdote da deusa”. O próprio Clitofonte pensa que deve, portanto, esperar para se deitar com Leucipe após o casamento, mas mais à frente na narrativa também se tornará possível entender que o sonho prenunciava o sexo que o herói viria a praticar com Melite (Bartsch, 1989, p. 90ss).

Além disso, na boca dos personagens os deuses são pouco mais do que alegorias e manifestação de seus desejos. Nesse caso, me parece paradigmática a cena em que Melite tenta seduzir Clitofonte no navio que os levava para Éfeso, pedindo que eles se iniciem “nos sagrados mistérios de Afrodite” (V.15-16). Diante da recusa do herói, que argumenta que ali não era o local apropriado, Melite declara que não há lugar mais propício para os ritos de Eros e Afrodite, já que esta é filha do mar. Clitofonte retruca que “há as leis do mar” e que com frequência ouvira velhos marinheiros afirmarem a necessidade de manter os barcos puros dos prazeres de Afrodite, algo que a tradição parece corroborar.10 Essa dupla argumentação, em que a deusa figura ora favoravelmente a uma, ora a outra perspectiva, me parece representativa de um tratamento peculiar que Aquiles Tácio reserva às divindades no seu romance, consoante o que faz com quase todo o resto da narrativa.

Até este ponto, procurei chamar a atenção para dois aspectos de Leucipe e Clitofonte, o fato de que a autoridade do narrador é colocada em dúvida sistematicamente, inclusive na representação da influência dos deuses na trama, e que os personagens fazem uso retórico dessas figuras, senão de forma sacrílega, certamente desprovida de reverência; isso é algo que pode ser observado também do tratamento reservado ao deus Eros. O seu nome é tão frequente nos dois primeiros livros, em que se associa a Tyche para ajudar no desenrolar dos eventos, que causa ao tradutor a dificuldade de decidir se usa o substantivo próprio ou o comum. Há alguns momentos na história, porém, em que Eros é caracterizado como deus marcial e em duas passagens isso ocorre de forma mais desenvolvida. A primeira delas está no início da narrativa, quando Clitofonte ainda se debate entre sua paixão por Leucipe e a sua obrigação de desposar Calígone, sua meia-irmã. Sátiro, seu servo, o incentiva a seduzir a prima e lhe declara que “Eros não permite covardias”, que “toda sua aparência é marcial”, pois ele carrega armas e é “todo viril e pleno de audácia” (II.4), transformado a sedução em ato de coragem.

Na sequência, a sós, Clitofonte dá início a um dos lugares-comuns do romance, que é o monólogo em que se apresenta um conflito emocional, perguntado a si mesmo se ele é um “soldado vil a serviço de um deus muito viril” e, ainda em dúvida entre ceder ao desejo e manter o compromisso de se casar com Calígone, afirma que Eros lhe respondeu “ah, sim, seu insolente! Com que então é contra mim que lutas? Queres bater-te comigo? Eu sei voar, lanço flechas e ateio fogo”. Essa cena também é desenvolvida por Aquiles Tácio com um quê de subversão das convenções do romance, algo demonstrável se a compararmos com as passagens em que Dionísio e o Grande Rei em Quéreas e Calírroe entram num embate consigo próprios (II.4 e VI.1) porque ambos os homens procuravam resistir ao seu desejo pela heroína, considerando-o inapropriado.11 Eros é retratado no romance de amor grego como força irresistível, o que em Aquiles Tácio ganha forma na sua caracterização marcial, e disso resulta que os três homens acabam subjugados por ele. Contudo, a ação corajosa exigida pelo Eros imaginário de Clitofonte é oposta àquela idealizada por Dionísio e o Grande Rei, sendo, como já dissemos, pouco mais do que expressão do seu próprio desejo.

Na sequência, a ideia de que o amor é uma espécie de guerra em que os amantes são soldados é novamente utilizada quando Clitofonte descreve seu primeiro avanço sobre Leucipe, que figura como inimigo vencido (II.10): “lancei-me resolutamente ao ataque, animado com a minha primeira investida, qual soldado que já ganhou a batalha e despreza a guerra. Havia nessa altura muitas armas que me encorajavam: vinho, amor, esperança, solidão”. No período em que provavelmente foi escrito Leucipe e Clitofonte, a tópica da militia amoris já havia sido bastante desenvolvida na elegia erótica latina e temos motivos para acreditar que o autor estava familiarizado com o gênero.12

Nesse sentido, a exortação a uma ação corajosa, digno de um deus viril, ganha ainda outra camada de ironia. No tipo de elegia em que se via os lugares-comuns da militia amoris, as imagens marciais em uma poesia que tematizava o amor não eram apenas exploradas para retratar a natureza violenta da própria relação erótica, mas serviam igualmente para colocar em questão atitudes fundamentais da esfera pública romana.13 Ela foi utilizada pelos poetas elegíacos com o objetivo de se dissociarem da guerra, retratando a si mesmos como soldados de Cupido a fim de “realizar um contraste com e uma rejeição da carreira pública no exército Romano, algo que seria esperado deles pela sociedade” (Mckeown, 1995, p. 297). Por outro lado, no que toca às relações literárias, a tópica era utilizada para anunciar uma recusa da seriedade da épica em favor de uma poesia leve. Assim, como bem observou Jones (2012, p. 168ss), Clitofonte procura projetar uma ideia de virilidade em Eros e se vincular a ela por meio de sua “coragem” de ceder ao desejo, o que por si só é irônico quando se pensa nos demais heróis dos romances, mas que se torna ainda mais quando ele se vale de imagens já tradicionalmente associadas justamente à recusa da atuação pública esperada de um homem nesse contexto. Uma consequência disso é que o termo grego andreios e seus cognatos são empregados por Aquiles Tácio para tratar de uma virilidade meramente sexual.

Se o herói romanesco foi desde sempre acusado de pusilanimidade e inação, em muito de forma questionável por decorrer de expectativas que o leitor moderno transferiu para o romance antigo, é verdade que Clitofonte pode, ainda assim, ser visto como um desvio nessa representação – novamente, em uma observância de uma convenção do gênero que chega ao limite de não se concretizar. Assim, em Quéreas e Calírroe, a guerra oferece não só um contexto de aprendizagem e amadurecimento para o jovem herói Quéreas, mas também possibilita a exibição das capacidades militares dos pretendentes de Calírroe (tanto Dionísio quanto Quéreas se saem vitoriosos), ao passo que o episódio bélico no romance de Aquiles Tácio, da forma como é narrado em primeira pessoa por Clitofonte, ressalta a sua própria falta de qualidades heroicas e transforma a guerra em um espetáculo – do qual esse herói permanece o tempo todo um observador e que a ele possibilita apenas esbanjar sua habilidade enquanto narrador dos eventos.

Logo depois que Leucipe e Clitofonte se tornam prisioneiros dos boukoloi, um grupo de bandoleiros que agia perto do delta do rio Nilo, os bandidos declaram sua intenção de sacrificar uma virgem aos deuses; Leucipe é então levada, sem que Clitofonte esboce qualquer esforço para dificultar sua partida involuntária. Imediatamente depois, ele encontra uma oportunidade de escapar e não a desperdiça (III.13): deparando-se com um regimento de cinquenta soldados e percebendo que os bandidos levavam a pior no confronto, todos os prisioneiros dos boukoloi fogem, inclusive Clitofonte, que deixa para trás a sua (não tão?) amada Leucipe. Na sequência, conduzido à presença do general Cármides, que promete lhe dar armas e informa sua estratégia para derrotar os bandidos, sugerindo esperar que Clitofonte tome parte do combate ao seu lado, o herói logo demonstra ter tido treinamento adequado para um homem de seu status social (III.14):

Ἐγὼ δὲ ἵππον ᾔτουν, σφόδρα γὰρ ἤμην ἱππεύειν γεγυμνασμένος. Ὡς δέ τις παρῆν, περιάγων τὸν ἵππον ἐπεδεικνύμην ἐν ῥυθμῷ τὰ τῶν πολεμούντων σχήματα, ὥστε καὶ τὸν στρατηγὸν σφόδρα ἐπαινέσαι. Ποιεῖται δή με ἐκείνην τὴν ἡμέραν ὁμοτράπεζον καὶ παρὰ τὸ δεῖπνον ἐπυνθάνετο τἀμὰ καὶ ἀκούων ἠλέει.

Pedi-lhe um cavalo porque tinha praticado equitação e sabia montar com destreza. Trouxeram-me um e, descrevendo várias voltas, executei, em cadência, uma graciosa demonstração das diferentes figuras de combate equestre, de modo que até o próprio comandante me elogiou efusivamente. Então, nesse dia, convidou-me para sua mesa e, durante o jantar, quis conhecer a minha história, que ouviu compadecido.

Hilton (2005, p. 73) entende que essa passagem representa Clitofonte como um guerreiro habilidoso e interessado nas questões militares. Isso resultaria em uma descrição dos eventos relativos à guerra mais detalhada do que se encontra em outros romances, com pormenores acerca da estrutura do comando e da formação das tropas.14 Por outro lado, me parece bastante claro que Clitofonte solicita o cavalo com o objetivo de exibir sua habilidade e cair nas graças do general, mas na sequência a expectativa que se cria de uma atuação sua no embate contra os boukoloi não se concretiza e, ao longo da narrativa, nunca veremos o herói realizar nenhum feito de guerra, ainda que a oportunidade se apresentasse.15 A habilidade que ele de fato põe em prática, portanto, longe de ser marcial, é retórica.

Após a primeira “morte aparente” da heroína (III.15), naquilo que posteriormente acaba por se revelar uma mera encenação do sacrifício de uma virgem, efetuada junto aos bandidos boukoloi, ela aparece viva no acampamento, e então é o próprio general Cármides que se apaixona por ela (IV.2). Nesse contexto, temos o segundo retrato marcial de Eros mais desenvolvido no romance, nas palavras do próprio Cármides (IV.7):

Ἐν πολέμῳ δὲ τίς ἐπιθυμίαν ἀναβάλλεται; στρατιώτης δὲ ἐν χερσὶν ἔχων μάχην οἶδεν εἰ ζήσεται; [...] Ἐπὶ πόλεμον νῦν ἐξελεύσομαι βουκόλων· ἔνδον μου τῆς ψυχῆς ἄλλος πόλεμος κάθηται· στρατιώτης με πορθεῖ τόξον ἔχων, βέλος ἔχων· νενίκημαι, πεπλήρωμαι βελῶν. Κάλεσον, ἄνθρωπε, ταχὺ τὸν ἰώμενον· ἐπείγει τὸ τραῦμα. Ἅψω πῦρ ἐπὶ τοὺς πολεμίους· ἄλλας δᾷδας ὁ ἔρως ἀνῆψε κατ̓ ἐμοῦ.

Quando se está em guerra, quem é que pode esperar para realizar um desejo? Como é que um soldado, que tem um combate entre mãos, sabe se vai viver? [...] Por agora, estou envolvido numa guerra contra os boieiros, mas dentro da minha alma trava-se uma outra guerra. Há um guerreiro que me devasta, armado de arco e flechas. Estou vencido, estou crivado de frechas, chama, meu amigo, chama depressa o médico que a ferida é grave. Vou atear este fogo contra o inimigo, mas Eros já ateou as suas tochas contra mim.

Aqui a função desempenhada pela caracterização marcial de Eros não pode ser a mesma que o autor atribuía a ela quando saída da boca do herói Clitofonte, porque quem declara essas palavras é um general, ou seja, um homem do exército que está no extremo oposto da representação masculina desviante do herói. Ambos imaginam um Eros guerreiro, que força os homens a ceder ao desejo, porque nenhum dos dois quer respeitar a castidade de Leucipe e nisso Clitofonte se aproxima dos predadores da heroína. Dentre os vários pretendentes indesejados que Leucipe vai atraindo ao longo da história, não me parece por acaso que quem se valha das imagens militares para falar do próprio desejo seja apenas o general Cármides, pois a escolha ajuda a acentuar a postura de Clitofonte que, diferentemente do general, não tem qualquer interesse em se engajar em guerras de verdade. Uma vez que o conflito com os bandoleiros boukoloi se acentua na sequência da narrativa, Cármides se volta para as suas obrigações militares – suas “tarefas de homem” – e seu assédio a Leucipe deixa de ser uma questão, o que é algo semelhante ao que vemos acontecer com o Grande Rei no romance de Cáriton quando eclode a revolta egípcia contra o domínio persa. Ou seja, a fala de Cármides também nos ajuda a reavaliar a suposta “virilidade” de Clitofonte.

Acho que a esta altura já está demonstrada a habilidade desse narrador em tanto apresentar mais de uma perspectiva sobre aquilo que ele próprio narra, quanto em demonstrar seu conhecimento das convenções do gênero romance de amor e sua habilidade em brincar com as expectativas que elas criam. Para concluir, eu gostaria, porém, de chamar a atenção para outro personagem masculino: Calístenes.

Em uma inversão típica de Aquiles Tácio, diferentemente de outros romances em que a guerra configura um obstáculo para a reunião dos amantes, o conflito bélico entre a Trácia e Bizâncio, onde vivia a família de Leucipe, é justamente o que permite o seu encontro no início da narrativa. Sóstrato, o pai da heroína e ele próprio general nessa guerra, havia decidido refugiar a filha e a esposa em Tiro, onde vivia seu irmão, pai de Clitofonte. Paralelamente às aventuras dos protagonistas, esse conflito continua a se desenrolar, até que, por ele estar à frente de uma embaixada a Éfeso, pai e filha se reencontram na cidade a que os protagonistas haviam chegado em suas aventuras. É nesse momento também que o leitor revê Calístenes. Ora, esse rapaz é apresentado de forma bastante negativa, ainda durante o relato dos eventos iniciais da trama, como um jovem abastado e um tanto frívolo que se apaixona ao ouvir falar da beleza de Leucipe e, rejeitado como pretendente pelo pai dela, decide raptá-la, levando, por engano, no entanto, Calígone, a noiva e meia-irmã a quem Clitofonte estava prometido (II.13; 16-18).16

Sóstrato, pai de Leucipe, conta, após o seu reencontro, o que se havia passado desde que a sua fuga ao lado de Clitofonte e o início de suas aventuras a barco pelo Mediterrâneo os haviam afastado de suas famílias, relatando, entre outras coisas, como o amor havia nascido entre Calístenes e Calígone. Para isso, ele ressalta sua mudança de comportamento. Sóstrato afirma que o jovem (VIII.17):

... καὶ τῶν εἰς πόλεμον γυμνασίων οὐκ ἠμέλει, ἀλλὰ καὶ πάνυ ἐρρωμένως ἐν ταῖς ἱππασίαις διέπρεπεν. Ἦν μὲν οὖν καὶ παρὰ τὸν τῆς ἀσωτίας χρόνον τούτοις χαίρων καὶ χρώμενος, ἀλλ̓ ὡς ἐν τρυφῇ καὶ παιδιᾷ τέλεον δὲ ἦν αὐτῷ τὸ ἔργον πρὸς τὸ καρτερῶς καὶ ποικίλως διαπρέπειν ἐν τοῖς πολεμικοῖς. [...] Κἀκεῖνον ἅμα ἐμοὶ στρατηγὸν προεβάλοντο.

... não descurava os exercícios militares, mas acima de tudo distinguia-se nas manobras de cavalaria. É que mesmo durante sua vida desregrada, nunca deixara de apreciar esse tipo de exercícios e praticava-os, mas só por mero luxo ou passatempo. O resultado foi o de se distinguir corajosamente, e em diversas ocasiões, nas artes da guerra. [...] E os seus concidadãos propuseram-no para general ao mesmo tempo que eu.

O desempenho exemplar em guerra, na qual chega à posição de general, é um dos principais fatores que possibilita ao personagem Calístenes redimir-se do crime de ter raptado Calígone e ser recebido pela família como digno de sua mão (VIII.17.9-10). Isso demonstra que, no pano de fundo do romance, a atuação dos homens na guerra é algo esperado e necessário e que o valor marcial é um importante aspecto na apreciação do seu caráter. A especificidade da informação apresentada na passagem citada, porém, faz o leitor se lembrar das manobras do próprio Clitofonte sobre um cavalo para impressionar Cármides e que, como vimos, não levam a qualquer ação na guerra que ali estava sendo travada, diferentemente do que ocorre com Calístenes, que acaba por se tornar não só um general, como um general vencedor.

Não é apenas o comportamento de Clitofonte que pode ser reavaliado a partir do relato das ações de Calístenes, mas igualmente o do general Cármides. Uma vez vencida a guerra, Sóstrato relata que Calístenes se justificou pelo rapto de Calígone: “O que fiz, pai, – disse ele –, fi-lo devido à fogosidade natural da minha juventude mas o que fiz depois, foi por uma escolha deliberada: guardei virgem a rapariga até hoje, mesmo na guerra, quando ninguém está disposto a adiar os seus prazeres” (VIII.18.2). A alusão ao que havia declarado Cármides quando pretendia se deitar com Leucipe é clara. Nessa guerra contra o desejo, mesmo que travada em meio a uma guerra contra homens, Calístenes demonstra que o poderoso deus Eros pode, sim, ser derrotado.

Ou será que não? Repath (2007) já sugeriu que esse relato de Sóstrato pode ser o de um homem ludibriado por uma série de mentiras e que, caso único em todos os cinco romances, em que não se vê repetição de nomes entre personagens, o fato de que outro Calístenes é mencionado brevemente na história como mercador de escravos sugere ao leitor que se trata do mesmo homem (V.17). Essa é certamente uma das grandes bifurcações com a qual o leitor se depara ao ler Aquiles Tácio: há um ou dois Calístenes? Eu prefiro acreditar no relato de Sóstrato sobre a regeneração do jovem abastado porque ela nos permite observar, uma vez mais, como o narrador demonstra seu conhecimento dos limites do romance de amor e joga com eles. Nesse sentido, Calístenes, como raptor de Calígone, assim como Clitofonte o é de Leucipe, seria um duplo do herói romanesco, mas um duplo disposto a atender as convenções: respeitoso da virgindade do seu par romântico, amadurecendo e assumindo o papel social dele esperado, regenerando-se aos olhos da comunidade por sua atuação na guerra. Uma vez que essa trajetória edificante é dada a um personagem secundário, a Clitofonte é possível ser o mais peculiar dos protagonistas do romance grego, um a quem não interessa se redimir por ser como é.

Referências

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Notas

1 Minha tese de doutorado, defendida em 2013 na Universidade de São Paulo sob orientação da Profa. Dra. Adriane Duarte, teve como objeto a representação do tema da guerra e da sua relação com o tratamento dado aos protagonistas masculinos nos romances de Cáriton de Afrodísias (Quéreas e Calírroe), Longo (Dáfnis e Cloé) e Heliodoro (As Etiópicas). Ainda que Aquiles Tácio não fizesse parte do corpus principal investigado na tese, boa parte da reflexão apresentada neste artigo tomou forma durante a pesquisa para o doutorado, parcialmente financiada pela Fapesp (processo 08/57783-9). Agradeço a Adriane por toda a parceria desde a iniciação científica e à banca pelos comentários – Profs. Drs. Breno Sebastiani, Cláudio Aquati, Christian Werner e Jacyntho Brandão.
2 Tilg (2010) defende que Quéreas e Calírroe é de fato o primeiro exemplar do gênero; certo ou não, sua argumentação acerca de como essa narrativa ajuda a orientar a produção romanesca que se segue permite também perceber a grande variedade que existe em uma forma literária que durante muito tempo se considerou repetitiva, pois, ainda que sirvam como norte, os padrões narrativos estabelecidos por Cáriton são tratados de formas diversas.
3 Cf. Repath (2005).
4 Durham (1938) foi quem primeiro sugeriu uma interpretação do romance de Aquiles Tácio como paródia, apresentando como contraponto em especial As Etiópicas, de Heliodoro, mas seus argumentos se revelaram infundados quando se entendeu que esta obra era, na verdade, posterior, datando possivelmente do século IV d.C.
5 Whitmarsh (2003, p. 192): “I do not mean simply that readers make meanings, that interpretations are subjective, that there are potentially infinite ways of approaching this text […]. What I want to argue is that Achilles specifically and artfully subverts the authority of the narrator by proposing contrary readings”.
6 Os trechos de Aquiles Tácio citados em português citados neste artigo são da tradução de Abel Pena (2005).
7 Cf. Selden (1994) e Morales (2004, p. 41ss).
8 Cf. Bartsch (1989, p. 48-55); Morales (2004, p. 37-48).
9 Para uma análise da representação de Ártemis, Afrodite e Eros no romance de Aquiles Tácio, cf. Bouffartigue (2001).
10 Cf. Pena (2005, n. 27, p. 133) em sua tradução do romance de Aquiles Tácio.
11 Como demonstrou Montiglio (2010), há elementos textuais na narrativa de Aquiles Tácio que nos permitem conjecturar uma intenção do autor de chamar atenção para relação entre o seu romance e o de Cáriton de Afrodísias.
12 Cf. Christenson (2009).
13 Cf. Cahoon (1988), Mckeown (1995), Lyne (2002).
14 Hilton (2005, p. 74) na sequência observa, contudo, que Clitofonte “está mais interessado na autopreservação do que em influenciar o desenrolar dos eventos”.
15 Clitofonte acaba sendo vítima de surras de Tersandro (V.23 e VIII.1) e de Sóstrato, pai de Leucipe (VII.14). Ele não procura se defender, pelo contrário, sua passividade é exagerada ao ponto que Haynes (2002, p. 89) chamou de grotesco.
16 Assim Calístenes é apresentado ao leitor (II.13): “Havia em Bizâncio um jovem chamado Calístenes. Era órfão e muito rico, mas libertino e gastador. Ouvindo dizer que a filha de Sóstrato era bonita, apesar de nunca a ter visto, quis que ela se tornasse sua mulher. Enfim, estava apaixonado por ouvir-dizer, pois a insolência dos homens depravados é tal que se deixam perder de amores por intermédio dos ouvidos”.
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