Dossiê Eros e Afrodite no Romance Antigo

Afrodite em prosa e verso: ecos do imaginário erótico arcaico em Quéreas e Calírroe

Aphrodite, prose and poetry: Chaereas and Callirhoe and the echoes of archaic erotic imagery

Giuliana Ragusa
Universidade de São Paulo, Brasil

Afrodite em prosa e verso: ecos do imaginário erótico arcaico em Quéreas e Calírroe

Classica - Revista Brasileira de Estudos Clássicos, vol. 35, núm. 2, pp. 1-18, 2022

Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos

Recepción: 26 Abril 2022

Aprobación: 01 Julio 2022

Resumo: Centra-se este artigo nos inescapáveis ecos do imaginário erótico arcaico que ouvimos no romance Quéreas e Calírroe, de Cáriton de Afrodísias (século I d.C.?), e no modo como nele se desenham a deusa Afrodite e o próprio desejo. Pretende sublinhar como o olhar para a poesia grega em que se elabora aquele imaginário tradicional é um referente enriquecedor para a leitura da prosa tardia de Cáriton, tanto pelas similitudes quanto pelas diferenças que, particularmente estas, expressam uma concepção distinta de érōs.

Palavras-chave: Afrodite, desejo, poesia arcaica, romance grego.

Abstract: This article studies the noticeable echoes of archaic erotic imagery we hear in Chaereas and Callirhoe, written by Chariton of Aphrodisias (mid-1st century CE?), as it considers the way by which the novel presents the goddess Aphrodite and desire itself. It aims at emphasizing that the attention to the poetry in which that traditional imagery is found allows for a productive and richer reading of Chariton’s late prose, for the similarities that will not go unnoticed, and nor will the differences through which a different conception of érōs is expressed.

Keywords: Aphrodite, desire, archaic poetry, Greek novel.

Uma nova forma, um novo gênero emerge com Quéreas e Calírroe, o romance grego de Cáriton de Afrodísias (Ásia Menor), talvez datado do século I d.C., que se constrói em torno do páthos erōtikón, do sofrimento amoroso do jovem casal do título, e, portanto, sob o signo de Afrodite. Em meio à novidade, reconhecemos na dicção e na deusa os ecos do imaginário arcaico grego – motivos, linguagem, imagens tradicionais com que os poetas cantaram érōs, o desejo, a experiência erótica, e Afrodite, aquela que rege o mundo do sexo, da beleza, da sedução, do erotismo.

Ouvir esses ecos e realçar elementos da antiga e tradicional dicção poética erótica logo na abertura, os quais serão recorrentes na narrativa, é a tarefa a que me volto. Ecos de similitudes que não apagam, mas se articulam às diferenças, uma vez que, no romance grego, idealização, sentimento, durabilidade e correspondência são as marcas do mundo de Afrodite, à diferença do que se dá na poesia arcaica, em que érōs é puro desejo físico premente, que demanda a satisfação pela subjugação de quem é desejado, em chave de assimetria, e que se esvai tão logo é saciado, pois paradoxalmente só existe na falta.

Assim é que o termo se verifica pela primeira vez, na Ilíada (I, 469), na expressão formular de fim de banquete: “Após apaziguarem o desejo [éron] por comida e bebida”.1 Em Eros, the bittersweet, Anne Carson (1998, p. 10) anota: “O amador quer o que não tem. É por definição impossível a ele ter o que quer, uma vez que, assim que obtém aquilo que quer, isto não mais lhe falta”. Eis o dilema intrínseco que, na poesia grega arcaica, torna sempre tormentosa a experiência erótica, sempre incompleta, sempre frustrante. Eis a natureza obsessiva e impermanente de érōs que não só se exaure quando saciado, mas emudece os poetas arcaicos que só o cantam enquanto é falta – enquanto existe.

Afrodite e Calírroe: beleza, maravilhamento, virgindade

Começo pelo modo como a heroína entra em cena no romance, citando o relato do narrador, e nele destacando os elementos mais relevantes, sempre na tradução de Adriane Duarte (2020):2

Ἑρμοκράτης ὁ Συρακοσίων στρατηγός, οὗτος ὁ νικήσας Ἀθηναίους, εἶχε θυγατέρα Καλλιρόην τοὔνομα, θαυμαστόν τι χρῆμα παρθένου καὶ ἄγαλμα τῆς ὅλης Σικελίας. (2) ἦν γὰρ τὸ κάλλος οὐκ ἀνθρώπινον ἀλλὰ θεῖον, οὐδὲ Νηρηΐδος ἢ Νύμφης τῶν ὀρειῶν ἀλλ’ αὐτῆς Ἀφροδίτης [παρθένου]. φήμη δὲ τοῦ παραδόξου θεάματος πανταχοῦ διέτρεχε καὶ μνηστῆρες κατέρρεον εἰς Συρακούσας (...) (Cáriton. Quéreas e Calírroe, 1, 1, 1-2)3

Hermócrates, o general siracusano, o mesmo que derrotou os atenienses, tinha uma filha chamada Calírroe, um espanto de donzela e estátua idolatrada em toda a Sicília. Sua beleza não era humana, mas antes divina e, ainda assim, nem de nereida, nem de ninfa montesa, mas da própria Afrodite donzela. O rumor dessa visão extraordinária corria o mundo e pretendentes afluíam a Siracusa (...) (p. 17)

Do ponto de vista de seu status, a heroína é designada parthénos, o que define sua condição de moça púbere, mas não casada, logo, não iniciada no mundo do sexo.4 Isso é muito importante, ressalta Duarte, em “Afrodite parthénos e outras questões textuais em Quéreas e Calírroe, de Cáriton” (2018, p. 88):

Um dos traços característicos dos heróis do romance grego antigo é a sua castidade, quando não a perseverança mesma na virgindade, que se estende mesmo para as personagens masculinas. O apego à castidade pode ser atestado pela resistência das personagens às ameaças a sua violação, quer oriundas de terceiros, quer das armadilhas do desejo, seja o deles próprios, seja o de seus parceiros. A vida sexual, ao menos para os protagonistas, está associada ao casamento e a uma união consagrada por Eros, que normalmente só se celebra no final do romance.

Na expressão thaumastòn (...) parthénou, usada no romance, o substantivo recebe o adjetivo ligado à noção de thaûma, misto de admiração, maravilhamento, espanto gerado pela visão de algo extraordinário. Combina-se a ela a projeção de Calírroe como ágalma (“estátua”), termo que faz pensar em dons e no luxo, ideias que marcam seu uso corrente para nomear a artística estátua que aos deuses se oferta, sobretudo do século VII a.C. em diante (Burkert, 1993, p. 193). Ora, o que leva a tais caracterizações é o que vem explicitado a seguir: a beleza (tò kállos) excepcional, “divina” (theîon) da heroína, apreendida pelo olhar. Beleza que não tem comparativo entre humanas mulheres, nem entre as deusas, salvo por uma única delas: Afrodite, a mais bela do Olimpo já na tradição arcaica. Como Calírroe, e em rebatimento de imagens, a deusa recebe o adjetivo parthénou, mas grafado entre colchetes indicativos de dificuldade textual na fonte.5

Vejamos mais de perto esses elementos, olhando para a poesia grega arcaica em seus mais antigos poemas: a Ilíada e a Odisseia (ambos de c. 750 a.C.).

No canto 8 da Odisseia, ao fim da canção sobre o adultério de Ares e Afrodite, esposa de Hefesto, entoada pelo aedo Demódoco no palácio dos feácios, ouvimos a descrição da toilette de Afrodite, cena típica, após o enlace com o amante, flagrado pelo marido e exposto aos deuses olímpios (v. 326-66):6



ἡ δ’ ἄρα Κύπρον ἵκανε φιλομμειδὴς Ἀφροδίτη,
ἐς Πάφον, ἔνθα τέ οἱ τέμενος βωμός τε θυήεις.
ἔνθα δέ μιν Χάριτες λοῦσαν καὶ χρῖσαν ἐλαίῳ,
ἀμβρότῳ, οἷα θεοὺς ἐπενήνοθεν αἰὲν ἐόντας,
ἀμφὶ δὲ εἵματα ἕσσαν ἐπήρατα, θαῦμα ἰδέσθαι.

(...) e ela alcançou Chipre, Afrodite ama-sorriso,
rumo a Pafos, onde tinha santuário e altar fragrante.
Lá as Graças [Cárites] banharam-na e untaram com óleo
imortal, o que cobre os deuses sempre-vivos,
e vestiram-na com vestes desejáveis, assombro à visão.

A sedutora seduzida, que tem no sorriso um de seus traços exclusivos – destaco o epíteto philommeidḕs (v. 362) – e um dos componentes de suas prerrogativas, de acordo com a Teogonia (v. 205) de Hesíodo (ativo em c. 700 a.C.), emerge com sua extraordinária beleza renovada na cuidadosa toilette, feita em sua cara terra – dos seus mais importantes locais de culto –, auxiliada pelas próprias deusas da kháris, o charme que conquista o favor, a reciprocidade, que seduz. Findos os passos da cena, o resultado é que Afrodite provoca, em quem a contempla, aquele misto de maravilhamento, espanto e admiração: thaûma (v. 366), reação à visão do excepcional, como sublinha sua articulação ao infinitivo verbal idésthai (“de se ver”), em expressão formular.7

Significativa, inclusive em reforço aos elementos vistos na epopeia, é a cena de toilette da deidade no Hino homérico a Afrodite (c. 650 a.C.), o mais épico dos chamados Hinos homéricos. Castigada por Zeus pela leviandade com que exerce seu poder, humilhando deuses e deusas, a quem faz deitar com mortais, deles gerando prole, ela é tomada de desejo pelo troiano Anquises, a quem irá manipular para que a seduza – ela, a grande enganadora, calculando todos os passos e movendo todas as peças. A cena, embora anteceda a sedução, é muito similar à da Odisseia, mas bem mais detalhada (v. 58-67):8



ἐς Κύπρον δ’ ἐλθοῦσα θυώδεα νηὸν ἔδυνεν
ἐς Πάφον· ἔνθα δέ οἱ τέμενος βωμός τε θυώδης·
ἔνθ’ ἥ γ’ εἰσελθοῦσα θύρας ἐπέθηκε φαεινάς.
ἔνθα δέ μιν Χάριτες λοῦσαν καὶ χρῖσαν ἐλαίῳ
ἀμβρότῳ, οἷα θεοὺς ἐπενήνοθεν αἰὲν ἐόντας,
ἀμβροσίῳ ἑδανῷ, τό ῥά οἱ τεθυωμένον ἦεν.
ἑσσαμένη δ’ εὖ πάντα περὶ χροῒ εἵματα καλὰ
χρυσῷ κοσμηθεῖσα φιλομμειδὴς Ἀφροδίτη
σεύατ’ ἐπὶ Τροίης προλιποῦσ’ εὐώδεα Κύπρον
ὕψι μετὰ νέφεσιν ῥίμφα πρήσσουσα κέλευθον.

Para Chipre tendo ido, ela adentrou o templo fragrante –
para Pafos, onde estão seu recinto sacro e seu altar fragrante.
Lá, tendo entrado, as portas luzentes cerrou;
lá, as Cárites a banharam e ungiram com óleo
imortal, do tipo que cobre os deuses que sempre são –
doce óleo imortal, era para ela pleno de fragrâncias.
Bem vestida, em redor do corpo, com todas as belas vestes,
e com ouro adornada, a amante dos sorrisos, Afrodite,
apressou-se para Troia, deixando a fragrante Chipre,
pelos ares, no alto, entre as nuvens, viajando veloz.

Depois, diante de um Anquises que logo sucumbe, ela assim se apresenta (v. 86-90):



στῆ δ’ αὐτοῦ προπάροιθε Διὸς θυγάτηρ Ἀφροδίτη
παρθένῳ ἀδμήτῃ μέγεθος καὶ εἶδος ὁμοίη,
μή μιν ταρβήσειεν ἐν ὀφθαλμοῖσι νοήσας.
Ἀγχίσης δ’ ὁρόων ἐφράζετο θαύμαινέν τε
εἶδός τε μέγεθος καὶ εἵματα σιγαλόεντα.
πέπλον μὲν γὰρ ἕεστο φαεινότερον πυρὸς αὐγῆς,
εἶχε δ’ ἐπιγναμπτὰς ἕλικας κάλυκάς τε φαεινάς,
ὅρμοι δ’ ἀμφ’ ἁπαλῇ δειρῇ περικαλλέες ἦσαν
καλοὶ χρύσειοι παμποίκιλοι· ὡς δὲ σελήνη
στήθεσιν ἀμφ’ ἁπαλοῖσιν ἐλάμπετο, θαῦμα ἰδέσθαι.
E postou-se diante dele a filha de Zeus, Afrodite,
a virgem indômita símil, em altura e forma igualmente,
para que ele não temesse ao percebê-la com os olhos.
E Anquises, olhando-a, notou-a bem e admirou-lhe
a forma e altura e também as vestes cintilantes.
Pois um manto vestia, mais luzente que a luz do fogo,
e portava broches retorcidos e brincos flóreos luzentes,
e em torno do macio pescoço colares belíssimos havia –
belos, áureos, todo-faiscantes; e, como a lua,
sobre seus seios macios brilhavam – maravilha de se ver.

No primeiro excerto, saltam aos olhos a similaridade dos elementos da toilette para com a cena odisseica, com ênfase para o brilho e os perfumes ainda maior. No segundo, do primeiro encontro de Afrodite – disfarçada de parthénos (v. 87) – com Anquises, o maravilhamento, a admiração, a estupefação que arrebata tanto o troiano – o que é expresso na forma verbal thaúmainen (v. 84) –, ao ver Afrodite, quanto qualquer um que o faça, diz a expressão formular usada na Odisseia (8, 366) e acima (thaûma idésthai, v. 90).

Como mostra a pequena amostra, o uso de thaumastòn na descrição inicial de Calírroe, tem longa tradição que remonta à imagem da deusa que é, no romance, a única à qual pode ser comparada a beleza da heroína. Do mesmo modo, a ideia tradicionalmente elaborada da parthénos como objeto de fascinação aos olhos de quem as contempla, que bem se constata tanto no romance que projeta Calírroe como um objeto de beleza plástica para a visão, quanto no passo do Hino que narra o encontro primeiro de Afrodite e Anquises. Dado que “os homens achavam sexualmente fascinante a jovem que ainda não fosse domada”, conforme ressalta Ellen D. Reeder, em “Women and men in classical Greece” (1995, p. 20), é significativo que no Hino Afrodite se apresente como parthénōi admḗtēi (v. 82), o adjetivo reiterando o status, ao denotar a condição de “indomada”, em seu sentido básico, e, portanto, no mundo do sexo, “inexperiente, inexperta; solteira, virgem”. Recorde-se, ainda, a propósito do fascínio da parthénos, que a Teogonia dá como a primeira das prerrogativas da deusa justamente os sussurros (oárous, v. 205) sedutores das parthénoi, como destaco abaixo (v. 205-6):9



παρθενίους τ’ ὀάρους μειδήματά τ’ ἐξαπάτας τε
τέρψίν τε γλυκερὴν φιλότητά τε μειλιχίην τε.
as conversas de moças, os sorrisos, os enganos,
o doce gozo, o amor e a meiguice.

Se atentarmos para a referida fascinação no imaginário arcaico, entendemos as múltiplas camadas do termo parthénos na atribuição a Calírroe, para além da questão de seu status e da antes sublinhada e tão importante castidade das heroínas do romance grego, e podemos compreender sua atribuição a Afrodite como meio de projetar sua sempre vicejante e máxima sensualidade, ela cuja imagem é refletida na moça. Não por acaso a narrativa de seu nascimento na Teogonia (v. 190-5), após a castração de Urano, dirá que a deusa se forma como koúrē (“menina, moça, virgem”, v. 191) na espuma da água misturada ao esperma que jorra do membro lançado ao mar do qual sai para a terra firme, em Chipre, como kalḕ theós (“bela deusa”, v. 194).10

O que pareceria “puro nonsense”, como diz Duarte (2018, p. 89), está, todavia, longe de sê-lo, e faz, na verdade, todo sentido, se pensarmos na imagem sempre fascinante da parthénos, como em seu uso no Hino, primeiro na irônica apresentação da sedutora deidade pela voz do narrador, e depois, acrescente-se, na falsa autocaracterização da deusa para enganar o objeto de seu desejo, Anquises, para convencê-lo, que teme deitar-se com deusa, a levá-la ao leito: ela se diz uma princesa frígia, admḗtēn (...) apeirḗtēn philótētos (“indômita e inexperiente no enlace sexual”, v. 132).11 Como afirma Andrew Faulkner, na edição The Homeric hymn to Aphrodite (2008, p. 163), “nada há de mais contrário à natureza verdadeira de Afrodite do que esse disfarce”, e aduziria, nada há de mais irônico do que ouvir tal qualificação da boca da deusa do sexo, insuperável e ardilosa sedutora. Daniel H. Garrison, em Sexual culture in ancient Greece (2000, p. 40), bem o afirma: “Os gregos viam os seus deuses todos como enganadores – nenhum deles mais do que Afrodite”, uma vez que ela é, podemos acrescer, a deusa da sedução que consiste, sempre, em manipulação de aparência e de discurso para enredar a vítima. Não por acaso, no cinto que reúne seus poderes a Ilíada (XIV, 217) insere a párphasis, que significa a fala enganadora,12 e a Teogonia (v. 205) insere os “enganos” (exapátas) no conjunto de prerrogativas da deusa.

O poder de sedução da imagem da parthénos, bela e sensual, está na base do jogo da deusa à qual, não raro, virgens são comparadas, como vemos nos poemas homéricos (Ilíada IX, 389; XXIV, 699; Odisseia 4, 14), como lembra Duarte (2018, p. 91). Creio que Cáriton, ao conferir a Calírroe e a Afrodite a mesma condição de parthénos, reforça o espelhamento entre elas no que tange àquele poder pela beleza de suas figuras – a da heroína só sendo comparável, mesmo se vista entre as deusas, a mais bela delas – e pela desejabilidade delas. Desejabilidade que, como a beleza, é fundamental ao enredo em torno de Calírroe, em suas ditas e desditas. E o espelhamento só se intensifica nas páginas do romance, em que a heroína é por diversas vezes qualificada pelos que a veem como a própria deusa. Esta sugestão embasada nos elementos da tradição do erotismo na poesia grega arcaica e nas representações da deusa em seus poetas já se acha em Duarte (2018, p. 93; p. 97), e não é demais reiterá-la aqui.

Igualmente, no que tange ao status adequado para a boda, o uso de parthénos é crucial à heroína e faz-se significativo para a deusa, se pensarmos em sua relevância no contexto do gámos (“sexo, casamento”), evidenciado de vários modos na tradição mítico-poética e cultual, desde a Ilíada, que dá como presente de Afrodite a Andrômaca, no dia de sua boda, a peça mais importante do vestuário da noiva e da esposa: o véu (krḗdemnon, v. 470). Note-se, ademais, que se não se acha listado entre os epítetos de culto o de Parthénos, Afrodite é Nymphía, nupcial, como ressalta o detalhado estudo de Vinciane Pirenne-Delforge, L’Aphrodite grecque (1994, p. 513); e ela observa que, como tal, a deusa é protetora da nýmphē, a noiva, “a jovem no momento de sua passagem do status de adolescente àquele de jovem casada” (p. 422). Como tal veremos Calírroe, que por duas vezes se casa no romance – na segunda, “grávida do primeiro marido, mas passando-se por uma parthénos, de modo que o filho que espera desse seja tido por legítimo pelo segundo cônjuge” (Duarte, 2018, p. 91).

Uma palavra ainda sobre a beleza. A de Afrodite reflete sua própria natureza de deusa do sexo, da sedução, do erotismo no imaginário arcaico, é de sua essência, como é da essência de Eros – “o mais belo” (kállistos, v. 120), dos deuses na Teogonia. Que Cáriton a ela espelhe sua heroína não deve causar espécie. Sem comparar Helena diretamente à deusa, como no romance, mas destacando-a como a mais bela mortal, Homero a introduz pela primeira vez aos nossos olhos na Ilíada (canto III), numa cena que começa com a heroína ao tear, e logo a desloca aos muros de Troia, onde os anciãos reunidos, contemplando-a dizem, uns aos outros (v. 156-8):



“οὐ νέμεσις Τρῶας καὶ ἐϋκνήμιδας Ἀχαιοὺς
τοιῇδ’ ἀμφὶ γυναικὶ πολὺν χρόνον ἄλγεα πάσχειν·
αἰνῶς ἀθανάτῃσι θεῇς εἰς ὦπα ἔοικεν·”
“Não causa indignação que troianos e aqueus de belas grevas
sofram aflições tanto tempo por causa de tal mulher:
é terrível como se assemelha a deusas imortais (...)”

Não há ruína que impeça o reconhecimento da beleza superlativa da heroína, nem constrangimento que possa resistir à de Afrodite, como bem mostra o diálogo entre Apolo e Hermes diante do casal pego em flagrante delito e preso em teia que a todos os expõe, na já referida canção do adultério de Ares e da bela e impudente Afrodite, como a caracteriza o ultrajado marido Hefesto a Zeus, seu sogro (v. 320-1), no canto 8 da Odisseia. Indagado por Apolo se levaria Afrodite ao leito, Hermes responde, sem pestanejar (v. 339-42):



“αἲ γὰρ τοῦτο γένοιτο, ἄναξ ἑκατηβόλ’ Ἄπολλον.
δεσμοὶ μὲν τρὶς τόσσοι ἀπείρονες ἀμφὶς ἔχοιεν,
ὑμεῖς δ’ εἰσορόῳτε θεοὶ πᾶσαί τε θέαιναι,
αὐτὰρ ἐγὼν εὕδοιμι παρὰ χρυσῇ Ἀφροδίτῃ.”
“Tomara isso ocorresse, senhor Apolo alveja-de-longe.
Que três vezes mais laços, invencíveis, me detivessem,
e vós me observásseis, deuses e todas as deusas,
mas eu deitaria junto à dourada Afrodite”.

O destacado epíteto que Homero dedica apenas à deidade em seus poemas, khrysē̂i (v. 341), diz tudo: metal algum é mais valioso, mais brilhante, mais incorruptível em sua beleza. Nada supera o ouro – ninguém supera Afrodite. E todos que circulam em seu universo têm na beleza um traço fundamental, a começar por Páris. Voltando ao canto III da Ilíada, na censura pública que recebe de Heitor, pela covardia diante da investida de Menelau – as tropas reunidas na planície, frente a frente –, o herói ouve do irmão – que antes mencionara sua “bela figura” (kalòn eîdos, v. 44-5) – que, se travasse combate com um herói como o marido de Helena, de nada lhe serviram os elementos de sua sedutora figura (v. 55-6):



“οὐκ ἄν τοι χραίσμῃ κίθαρις τά τε δῶρ’ Ἀφροδίτης
ἥ τε κόμη τό τε εἶδος ὅτ’ ἐν κονίῃσι μιγείης”.
“(...) não te ajudariam a cítara e os dons de Afrodite,
em teus cachos e formosura, ao te unires à poeira”.

A própria Afrodite, sob o disfarce de uma velha senhora, depois de ter salvo Páris do duelo com Menelau, vai a Helena para levá-la ao herói, elogiando a beleza dele, de modo a atrair o desejo dela (v. 390-8):



“δεῦρ’ ἴθ’· Ἀλέξανδρός σε καλεῖ οἶκον δὲ νέεσθαι.
κεῖνος ὅ γ’ ἐν θαλάμῳ καὶ δινωτοῖσι λέχεσσι
κάλλεΐ τε στίλβων καὶ εἵμασιν· οὐδέ κε φαίης
ἀνδρὶ μαχεσσάμενον τόν γ’ ἐλθεῖν, ἀλλὰ χορὸν δὲ
ἔρχεσθ’, ἠὲ χοροῖο νέον λήγοντα καθίζειν.”
Ὣς φάτο, τῇ δ’ ἄρα θυμὸν ἐνὶ στήθεσσιν ὄρινε·
καί ῥ’ ὡς οὖν ἐνόησε θεᾶς περικαλλέα δειρὴν
στήθεά θ’ ἱμερόεντα καὶ ὄμματα μαρμαίροντα,
θάμβησέν τ’ ἄρ’ ἔπειτα ἔπος τ’ ἔφατ’ ἔκ τ’ ὀνόμαζε·
“Vem comigo; Alexandre pede que voltes para casa.
Lá está, no quarto, sobre o leito bem-acabado,
fulgurante em beleza e nas vestes; não pensarias
ter ele chegado após combater um varão, mas à dança
Estar indo ou ter-se sentado após parar de dançar”.
Sua fala agitou o ânimo de Helena no peito;
assim que percebeu o belíssimo pescoço da deusa,
seu colo atraente e os olhos cintilantes,
Espantou-se e então nomeou-a e disse:

Note-se que não só é belo Páris, como o é a deusa que não o pode disfarçar – e o narrador vale-se dos destacados termos correlatos para ambos (kálleï, v. 392; perikalléa, v. 396) – aos olhos de Helena, a mais bela mortal, em que sua visão produz thámbos, destaca a forma verbal thámbēsen (v. 398), esse correlato de thaûma que de novo coloca em cena a reação do olhar que apreende a extraordinária beleza – a mesma que produz a beleza superlativa de Calírroe em todos.

Eros, jugo e boda

Apresentada a heroína e louvado o impacto de sua beleza divina por toda a gente, que arrasta muitos pretendentes à Siracusa em que vive, o narrador afirma que o deus tinha já seus objetivos, em termos da boda da moça:



ὁ δὲ Ἔρως ζεῦγος ἴδιον ἠθέλησε συλλέξαι. (1, 1, 2)
Eros, contudo, quis compor a sua própria parelha. (p. 17)

A ideia que associa o deus ao jugo (zeûgos) acima realçado, e que fará de Quéreas e Calírroea parelha do romance de Cáriton, merece pausa, pelos ecos do imaginário arcaico que ressoa. Na sua base estão as ideias do casamento (gámos) – “uma instituição por meio da qual os homens ganham controle sobre as mulheres” (Redfield, 1982, p. 186) – como zygós, e da moça como indomado cavalo. Do qualificativo (admḗtē), já tratei; da parthénos como cavalo ou potra, muito se pode falar: “a imagem implicava que, como um cavalo, a nobreza e beleza de uma mulher não se esvaem com a domesticação” – leia-se, a boda – “mas por meio desta seriam habilitadas a florescer e a servir aos outros (...)” (Reeder, 1995, p. 26). As parthénoi, portanto, “eram consideradas parcialmente selvagens, somente tornando-se de todo civilizadas com o casamento” (Clark, 1996, p. 145).

Um dos maiores destaques, nas ocorrências da referida comparação entre moças e cavalos ou potras, é a mais longa canção de Álcman (ativo em c. 620 a.C.), o Fragmento 1 (Davies), cujo trecho pertinente cito. São versos (v. 45-59) em que as moças do coro elogiam a líder, Hagesícora, e Agidó, a segunda coreuta proeminente, e isso numa composição remanescente de um partênio, espécie de mélica cantada por coro de parthénoi, que tem como um de seus componentes a autodramatização da performance das jovens no festival público cívico-cultual em que a apresentam:



(...)· δοκεῖ γὰρ ἤμεν αὔτα
ἐκπρεπὴς τὼς ὥπερ αἴτις
ἐν βοτοῖς στάσειεν ἵππον
παγὸν ἀεθλοφόρον καναχάποδα
τῶν ὑποπετριδίων ὀνείρων·
ἦ οὐχ ὁρῆις; ὁ μὲν κέλης
Ἐνετικός·ἁ δὲ χαίτα
τᾶς ἐμᾶς ἀνεψιᾶς
Ἁγησιχόρας ἐπανθεῖ
χρυσὸς [ὡ]ς ἀκήρατος·
τό τ’ ἀργύριον πρόσωπον,
διαφάδαν τί τοι λέγω;
Ἁγησιχόρα μὲν αὕτα·
ἁ δὲ δευτέρα πεδ’ Ἀγιδὼ τὸ ϝεῖδος
ἵππος Ἰβηνῶι Κολαξαῖος δραμήται·
(...); pois ela mesma parece ser
proeminente, assim como se alguém,
entre o rebanho, pusesse um cavalo
firme, vencedor, de cascos sonantes –
dos de sonhos jacentes sob pedras.
Então não vês? O corcel é
enético; mas a sedosa melena
da minha prima
Hagesícora brilhifloresce
como ouro imaculado;
e a argêntea face –
por que abertamente te falo?
Hagesícora: esta.
Mas a segunda depois de Agidó em porte
qual cavalo coláxeo contra ibênio correrá; (...)13

Impressiona a concentrada elaboração de símiles das moças como cavalos ou corcéis, nos termos destacados (híppos, v. 47; v. 59; kélēs, v. 50) – o cabelo da líder inclusive nomeado por termo (khaíta, v. 51) usado também para a crina do animal cuja beleza, agilidade, nobreza e vitalidade sensual permeiam os versos.

Outro dos destaques eloquentes é o da tragédia Hipólito, de Eurípides (c. 480-406 a.C.), especificamente, o trecho da “Ode a Eros” (v. 545-54) que fala da parthénos Iole, a princesa que Héracles, desejoso, tomou para si:14



τὰν μὲν Οἰχαλίαι
πῶλον ἄζυγα λέκτρων,
ἄνανδρον τὸ πρὶν καὶ ἄνυμφον, οἴκων
ζεύξασ’ ἀπ’ Εὐρυτίων
δρομάδα ναΐδ’ ὅπως τε βάκ- 550
χαν σὺν αἵματι, σὺν καπνῶι,
φονίοισι νυμφείοις
Ἀλκμήνας τόκωι Κύπρις ἐξέδωκεν· ὦ
τλάμων ὑμεναίων.
A potra da Ecália,
disjungida de leito,
ainda intacta e inupta,
Cípride levou sob jugo, da casa de Êurito,
como náiade em fuga ou bacante,
entre sangue e fumo,
em núpcias cruentas,
ao filho de Alcmena a deu,
desgraçada por esse matrimônio!

Os termos realçados combinam a imagem da parthénos como potra (pō̂lon, v. 546) – logo, indomada –, à imagem do gámos como zygós, por meio de ázyga (v. 546), que fala da privação do jugo, de que goza a jovem. Mas isso muda com a intervenção de Afrodite (Cípris), que atrela, que põe sob jugo (zeúxasa, v. 549), atuando como deusa da boda (nympeíois, v. 552; hymenaíōn, v. 554). Ao fazê-lo, muda dois outros qualificativos de Iole construídos pelo alfa privativo: ánandron e ánynphon no verso 547 – literalmente, “sem-homem” e “sem-núpcia”.

A linguagem intensamente erótica da ode da tragédia marca a dimensão básica do próprio termo gámos – o “sexo” e, por extensão, a “boda” que se consuma no leito dos noivos. Daí a participação de Afrodite nesse mundo que na Ilíada (canto V) é seu território por excelência, como vemos nesta fala de Zeus à deidade (v. 426-30):



Ὣς φάτο, μείδησεν δὲ πατὴρ ἀνδρῶν τε θεῶν τε,
καί ῥα καλεσσάμενος προσέφη χρυσῆν Ἀφροδίτην·
“οὔ τοι τέκνον ἐμὸν δέδοται πολεμήϊα ἔργα,
ἀλλὰ σύ γ’ ἱμερόεντα μετέρχεο ἔργα γάμοιο,
ταῦτα δ’ Ἄρηϊ θοῷ καὶ Ἀθήνῃ πάντα μελήσει.”
Falou, e sorriu o pai dos varões e deuses;
chamou a dourada Afrodite e lhe disse:
“Não te foram dados feitos bélicos, minha filha;
tu, porém, vai atrás dos adoráveis feitos nupciais,
pois o veloz Ares e Atena daqueles se ocupam”.

A imagem do romance de Cáriton, do zygós de Eros, ecoa uma antiga e forte tradição na linguagem erótica-nupcial e nas imagens de Afrodite e do deus que a acompanha, sempre inferior a ela na hierarquia olímpica.

O olhar, o desejo, a dor – sob Afrodite e Eros

Ἀφροδίτης ἑορτὴ δημοτελής, καὶ πᾶσαι σχεδὸν αἱ γυναῖκες ἀπῆλθον εἰς τὸν νεών. (5) τέως δὲ μὴ προϊοῦσαν τὴν Καλλιρόην προήγαγεν ἡ μήτηρ, <.....> κελεύσαντος προσκυνῆσαι τὴν θεόν. τότε δὲ Χαιρέας ἀπὸ τῶν γυμνασίων ἐβάδιζεν οἴκαδε στίλβων ὥσπερ ἀστήρ· ἐπήνθει γὰρ αὐτοῦ τῷ λαμπρῷ τοῦ προσώπου τὸ ἐρύθημα τῆς παλαίστρας ὥσπερ ἀργύρῳ χρυσός. (6) ἐκ τύχης οὖν περί τινα καμπὴν στενοτέραν συναντῶντες περιέπεσον ἀλλήλοις, τοῦ θεοῦ πολιτευσαμένου τήνδε τὴν <........> ἵνα ἑκά<..........> ὀφθῇ. ταχέως οὖν πάθος ἐρωτικὸν ἀντέδωκαν ἀλλήλοις <.......> τοῦ κάλλους<...> γενει συνελθόντος. (1, 1, 4-6)

Havia um festival público em honra a Afrodite, e quase todas as mulheres foram ao templo. Até então Calírroe não havia saído à rua, mas como [o pai] ordenara que ela se inclinasse diante da deusa, sua mãe a conduziu para lá. Então, Quéreas vinha do ginásio para casa, luzente como uma estrela. O rubor da atividade física destacava o brilho do próprio rosto, como o ouro sobre a prata. Quis a sorte que, vindo em sentido contrário, topassem um com o outro em uma curva estreita do caminho. Assim o deus traçou essa rota: para que se avistassem [ophthēi]. A paixão amorosa foi logo correspondida, pois a beleza vai de par com a nobreza. (p. 18)15

Significativamente, o encontro de Quéreas e Calírroe, dá-se em festival de Afrodite. Projetada de início como ágalma adorada, “estátuta/ simulacro da deusa, Calírroe é parte integrante da procissão, abrilhanta-a e acresce prestígio político ao pai” (Duarte, 2018, p. 103). Quéreas, radiantemente belo – o brilho é índice de beleza na tradição da linguagem erótica –, vai acompanhá-la, saído do ginásio. Os dois se cruzam pelos caminhos – os olhares se cruzam, e a “paixão amorosa” (páthos erōtikón) de pronto arrebata a ambos.

A concepção dos olhos como instrumentais à chegada da paixão é das mais caras à poesia grega antiga, que recorrentemente canta a relação de anterioridade entre ver e ser tomado por premente e súbito desejo, e que projeta érōs a escorrer dos olhos. Basta lembrarmos a cena da sedução e engano de Zeus na Ilíada (canto XIV), protagonizada por uma Hera que só vai ao deus depois de riquíssima toilette e de emprestar sob falso pretexto a faixa-talismã de Afrodite, com todos os seus poderes. Ao postar-se diante de Zeus, assim estratégica e dolosamente preparada, leva-o a sucumbir (v. 293-6):



Ἥρη δὲ κραιπνῶς προσεβήσετο Γάργαρον ἄκρον
Ἴδης ὑψη ὡς δ’ ἴδεν, ὥς μιν ἔρως πυκινὰς φρένας ἀμφεκάλυψεν,
οἷον ὅτε πρῶτόν περ ἐμισγέσθην φιλότητι
εἰς εὐνὴν φοιτῶντε, φίλους λήθοντε τοκῆας.
Hera rápido subiu até o Gárgaron, pico
do elevado Ida, e Zeus junta-nuvens a viu.
Assim que a viu, desejo encobriu seu juízo cerrado
como no dia em que primeiro se uniram em amor,
correndo ao leito às ocultas dos caros pais.

E para lembrar novamente o Hino homérico a Afrodite, também ali o arrebatamento de Afrodite por Anquises precede a visão do herói pela deusa (v. 56-7), tal o dele por ela (v. 91). E assim em inúmeras ocorrências se elabora este motivo dos olhos como a porta de entrada do desejo. Entre elas, recordo ainda, para a cena do romance, dois fragmentos mélicos. No primeiro deles, Afrodite e Eros se combinam, como no emparelhamento de Quéreas e Calírroe, o deus mais diretamente ativo do que a deusa. Refiro-me ao Fragmento 287 (Davies), de Íbico (ativo em c. 550 a.C.),16 que como nenhum outro da era arcaica mostra os dois deuses em ação coordenada para prender a vítima em suas tramas – Eros, usando o poder mágico de seu olhar contínuo e fixo com que captura a persona:



Ἔρος αὖτέ με κυανέοισιν ὑπὸ
βλεφάροις τακέρ’ ὄμμασι δερκόμενος
κηλήμασι παντοδαποῖς ἐς ἄπει-
ρα δίκτυα Κύπριδος ἐσβάλλει·
ἦ μὰν τρομέω νιν ἐπερχόμενον,
ὥστε φερέζυγος ἵππος ἀεθλοφόρος ποτὶ γήραι
ἀέκων σὺν ὄχεσφι θοοῖς ἐς ἅμιλλαν ἔβα.
Eros, de novo, de sob escuras
pálpebras, com olhos me fitando derretidamente
com encantos de toda sorte, às
inextricáveis redes de Cípris me atira.
Sim, tremo quando ele ataca,
tal qual atrelado cavalo vencedor, perto da velhice,
contrariado vai para a corrida com carros velozes.

No segundo, acompanhamos o modo como o olhar da persona que contempla a interação de duas personagens – um homem e uma jovem – de repente enfoca exclusivamente uma delas – a moça – que lhe arrebata corpo e mente, uma vez capturada pelo olhar que abre as portas ao desejo. Falo do Fragmento 31 (Voigt), de Safo ativo em (c. 630-580 a.C.),17 preservado no tratado Do sublime (10. 1-3), de ‘Longino’ (século I d.C.?) como o mais sublime exemplo da descrição dos “sofrimentos da loucura erótica” (erotikaîs maníais pathémata):



Φαίνεταί μοι κῆνος ἴσος θέοισιν
ἔμμεν’ ὤνηρ, ὄττις ἐνάντιός τοι
ἰσδάνει καὶ πλάσιον ἆδυ φωνεί-
σας ὐπακούει
καὶ γελαίσας ἰμέροεν, τό μ’ ἦ μὰν
καρδίαν ἐν στήθεσιν ἐπτόαισεν·
ὠς γὰρ <ἔς> σ’ ἴδω βρόχε’ ὤς με φώναι-
σ’ οὐδὲν ἔτ’ εἴκει,
ἀλλα †καμ† μὲν γλῶσσα †ἔαγε†, λέπτον
δ’ αὔτικα χρῶι πῦρ ὐπαδεδρόμηκεν,
ὀππάτεσσι δ’ οὐδὲν ὄρημμ’, ἐπιβρόμ-
μεισι δ’ ἄκουαι,
†έκαδε† μ’ ἴδρως ψῦχρος κακχέεται, τρόμος δὲ
παῖσαν ἄγρει, χλωροτέρα δὲ ποίας
ἔμμι, τεθνάκην δ’ ὀλίγω ’πιδεύης
φαίνομ’ ἔμ’ αὔτ[̣αι.
ἀλλὰ πὰν τόλματον, ἐπεὶ †καὶ πένητα†
Parece-me ser par dos deuses ele,
o homem, que oposto a ti
senta e de perto tua doce
fala escuta,
e tua risada atraente. Isso, certo,
no peito atordoa meu coração;
pois quando te vejo por um instante, então
falar não posso mais,
mas se quebra minha língua, e ligeiro
fogo de pronto corre sob minha pele,
e nada veem meus olhos, e
zumbem meus ouvidos,
e água escorre de mim, e um tremor
de todo me toma, e mais verde que a relva
estou, e bem perto de estar morta
pareço eu mesma.
Mas tudo é suportável, se mesmo um pobre homem ...

O romance ressoa não apenas a tradição do olhar como instrumental ao arrebatamento pelo desejo, mas o efeito desse arrebatamento no sujeito, que vemos em detalhe impressionante na canção de Safo, que conjuga os elementos já dados na tradição, da paixão como intenso sofrimento, uma quase morte. Assim em poeta que a precedeu, Arquíloco (c. 680-640 a.C.), em fragmento jâmbico brevíssimo (193, West):18



δύστηνος ἔγκειμαι πόθωι,
ἄψυχος, χαλεπῆισι θεῶν ὀδύνηισιν ἕκητι
πεπαρμένος δι’ ὀστέων.
mísero estou, com desejo,
sem vida, com dores atrozes, por vontade divina,
trespassado até os ossos.

Duras dores e, no adjetivo ápsykhos, a privação da psykhḗ, o “sopro vital” que nos anima e que nos abandona na morte, deixando inerte o corpo, e descendo ao Hades: eis o que provoca o desejo (póthos), quando atinge o sujeito, tão violento e devastador quanto a lança que trespassa pele, carne, músculos, tendões e vai aos ossos. Eis aqui mais um elemento da tradição do imaginário erótico e de sua linguagem e imagens, na “associação do amor com a morte e do amante com o guerreiro”, diz Paula Corrêa em “Arquíloco 191 e 193 IEG” (2016, p. 57), antes de destrinchar minuciosamente a trinca de versos e os fios da trama do poeta.

Impossível não ouvir essas canções arcaicas e o modo como configuram o desejo na fala do narrador do romance, ao contar o que se passa logo após o encontro de Quéreas e Calírroe. Tome-se a imagem do jovem como “um nobre guerreiro mortalmente ferido na batalha”19 (τις <ἀρισ>τεὺς ἐν πολέμῳ τρωθεὶς καιρίαν, 1, 1, 7), que mal tem forças para alcançar sua casa. E o sofrimento de ambos na noite em que são consumidos pelo fogo (τὸ γὰρ πῦρ ἐξεκάετο, 1, 1, 8). O corpo-cadáver – assim é usado o termo sō̂ma em Homero, de que se vale Cáriton (sōmatos), na frase que fala de seu perecer (τοῦ σώματος αὐτῷ φθίνοντος, id.) que o leva a romper o silêncio – ao contrário de Calírroe, que por modéstia cabível à mulher o mantém – e revelar sua paixão aos pais. Incapacitado pela paixão, o jovem nem mesmo consegue prosseguir com suas atividades: tornou-se impotente pela força do desejo. Desejo que é uma doença (nósou), destaco abaixo, e potencialmente fatal, como bem vimos em Safo:

ἐπόθει δὲ τὸ γυμνάσιον Χαιρέαν καὶ ὥσπερ ἔρημον ἦν. ἐφίλει γὰρ αὐτὸν ἡ νεολαία. πολυπραγμονοῦντες δὲ τὴν αἰτίαν ἔμαθον τῆς νόσου, καὶ ἔλεος πάντας εἰσῄει μειρακίου καλοῦ κινδυνεύοντος ἀπολέσθαι διὰ πάθος ψυχῆς εὐφυοῦς. (1, 1, 10)

O ginásio sentia sua falta e estava como que deserto, já que os jovens o adoravam. Bisbilhotando, descobriram a causa da doença, e a todos tocou a compaixão pelo rapaz que corria risco de perder a vida em virtude de uma nobre paixão. (p. 19)

Desejo contra o qual nada podem os mortais, cantava Safo no Fragmento 130:



Ἔρος δηὖτέ μ’ ὀ λυσιμέλης δόνει,
γλυκύπικρον ἀμάχανον ὄρπετον
... Eros de novo – deslassa-membros – me agita,
dulciamara inelutável criatura ...

Desejo que, como doença (nósos), foi cantado de forma lapidar por Safo, na mélica, e por Eurípides, na tragédia já mencionada, Hipólito, na qual a própria deusa que o rege assim o qualifica, ao falar da paixão de Fedra pelo herói que dá título à peça, o filho bastardo de Teseu. Ela, desde que o viu e o desejo a arrebatou, por querer de Afrodite (v. 38-40),20



ἐνταῦθα δὴ στένουσα κἀκπεπληγμένη
κέντροις ἔρωτος ἡ τάλαιν’ ἀπόλλυται
σιγῆι, ξύνοιδε δ’ οὔτις οἰκετῶν νόσον.
desde então, lamentosa e vulnerada
pelos dardos do amor, definha a mísera
quieta: nenhum dos seus conhece o morbo.

O tragediógrafo ecoa Arquíloco, Safo, e outros tantos, e ressoa em Cáriton, trançando os motivos do desejo como patologia, do trespassar de seus aguilhões, na imagem mais literal da sequência kakpeplēnménē / kéntrois érōtos (v. 38-9), do definhar ou arruinar-se – e para uma personagem feminina como ela e, depois, Calírroe, o silêncio próprio ao decoro feminino.

Detendo-me logo nos primeiros momentos do romance, realcei os ecos do passado na narrativa do amor de Quéreas e Calírroe, centrando-me nas semelhanças. Para o futuro, deixo o estudo das diferenças. Ressalto por fim que o efeito devastador que a beleza de Calírroe exercerá sobre quem a contemplar não se esgota em Quéreas, mas se estende a outras personagens, como aquela que será a do seu segundo marido – ela crendo aquele jovem rapaz morto. Pois se é ela a própria imagem rebatida de Afrodite, quem haverá de resistir à sua visão? Assim de pronto no romance, assim ao longo de suas páginas, das quais destaco, nesse sentido, uma última cena. Nela, Calírroe, que sonhara com a deusa, a ela alça preces, ajoelhada diante de sua imagem no seu templo. Ali a vê por primeiro Dionísio:

καὶ ἡ μὲν ἑστῶσα ηὔχετο, Διονύσιος δὲ ἀποπηδήσας ἀπὸ τοῦ ἵππου πρῶτος εἰσῆλθεν εἰς τὸν νεών. ψόφου δὲ ποδῶν αἰσθομένη Καλλιρόη πρὸς αὐτὸν ἐπεστράφη. (2, 3, 6) θεασάμενος οὖν ὁ Διονύσιος ἀνεβόησεν “ἵλεως εἴης, ὦ Ἀφροδίτη, καὶ ἐπ’ ἀγαθῷ μοι φανείης.”

Quando estava parada e rezava, Dionísio, o primeiro a saltar do cavalo, entrou no templo. Ao perceber o ruído de passos, Calírroe voltou-se na sua direção. Assim que a viu, Dionísio exclamou:

– Seja favorável, Afrodite, e que sua presença resulte no meu bem! (p. 47).

Olhar para Calírroe é como olhar para a própria Afrodite: impossível não sucumbir ao desejo diante de tanta beleza! Impossível evitar o sofrimento erótico que logo virá! Afinal, no tradicional imaginário erótico que a tragédia euripideana há pouco citada (v. 348) resume em fala da Ama a Fedra, destrinchando o epíteto composto que Safo atribui ao deus no Fr. 130 acima reproduzido, glykýpikros, o desejo é hḗdiston (ἥδιστον), o que há de mais doce, mas também é algeinón (ἀλγεινόν), o que há de mais doloroso.

Referências

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Notas

1 αὐτὰρ ἐπεὶ πόσιος καὶ ἐδητύος ἐξ ἔρον ἕντο – tradução sempre de Werner, e texto grego extraído do TLG (http://stephanus.tlg.uci.edu/), na edição de T. W. Allen, Homeri Ilias, vols. 2-3 (1931).
2 Indico sempre as páginas da tradução, ao citá-la.
3 Texto grego extraído do TLG (http://stephanus.tlg.uci.edu/), na edição de B. P. Reardon (Charitonis Aphrodisiensis de Callirhoe narrationes amatoriae, 2004).
4 Para esse termo técnico e o conceito no mundo grego, ver o importante estudo de Sissa (1990).
5 Para o problema, ver estudo de Duarte (2018, p. 88-97).
6 O texto grego, extraído do TLG (http://stephanus.tlg.uci.edu/), é de P. von Mühll, Homeri Odyssea (1962). A tradução é sempre de Werner (2018a).
7 Estudei anteriormente a cena e os elementos sumarizados aqui (Ragusa, 2005, p. 103-10; 278-82).
8 Edição sempre de Faulkner (2008). Tradução sempre minha.
9 Tradução Torrano (2003), à qual sempre recorro, baseada na edição de F. Solmsen, Hesiodi Theogonia, Opera et dies, Scutum (1966).
10 ὣς φέρετ’ ἂμ πέλαγος πουλὺν χρόνον, ἀμφὶ δὲ λευκὸς (190) / ἀφρὸς ἀπ’ ἀθανάτου χροὸς ὤρνυτο· τῷ δ’ ἔνι κούρη / ἐθρέφθη· πρῶτον δὲ Κυθήροισι ζαθέοισιν / ἔπλητ’, ἔνθεν ἔπειτα περίρρυτον ἵκετο Κύπρον. / ἐκ δ’ ἔβη αἰδοίη καλὴθεός, ἀμφὶ δὲ ποίη / ποσσὶν ὕπο ῥαδινοῖσιν ἀέξετο· (“aí muito boiou na planície, ao redor branca (190) / espuma da imortal carne ejaculava-se, dela / uma virgem criou-se. Primeiro Citera divina / atingiu, depois foi à circunfluída Chipre / e saiu veneranda bela Deusa, ao redor relva / crescia sob esbeltos pés. Tradução e texto grego indicados à nota 10.
11 ἀδμήτην (...) καὶ ἀπειρήτην φιλότητος.
12 Ver Luca (1981, p. 187; 2001, p. 39) e o comentário à Ilíada de Janko (1999, p. 185).
13 Tradução Ragusa (2013, p. 40-50), com comentário e notas que sintetizam o estudo prévio detalhado (id., 2010, p. 101-207).
14 Tradução Oliveira (2007), em volume bilíngue que adota a edição de W. S. Barrett, Euripides Hippolytos (1964).
15 Para as dificuldades do texto grego e a argumentação que embasa sua tradução, ver Duarte (2018, p. 98-103).
16 Tradução Ragusa (2013, p. 167-9), com comentário e notas que sintetizam o estudo prévio detalhado (id., 2010, p. 480-507), sempre com base na edição de Davies (1991).
17 Sempre na tradução de Ragusa (2021, p. 145-7), em volume bilíngue que adota a edição de Voigt (1971).
18 Tradução Corrêa (2016, p. 56), seguindo a edição de West (1998).
19 Duarte (2020, p. 19).
20 Em estudo anterior, analisei em detalhe o monólogo de Afrodite na tragédia (Ragusa, 2002/2003, p. 79-98).
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