Dossiê Eros e Afrodite no Romance Antigo

Eros e Himeros: o impulso erótico no Romance Grego Antigo

Eros and Himeros: the erotic drive in the Ancient Greek Novel

Adriane da Silva Duarte
Universidade de São Paulo, Brasil

Eros e Himeros: o impulso erótico no Romance Grego Antigo

Classica - Revista Brasileira de Estudos Clássicos, vol. 35, núm. 2, pp. 1-10, 2022

Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos

Recepción: 26 Abril 2022

Aprobación: 01 Julio 2022

Resumo: A temática amorosa ocupa importante lugar na delimitação do gênero romance na Antiguidade, uma vez que os seus mais antigos exemplares trazem em seu centro a idealização da relação amorosa. Outro conjunto de obras que compõem o corpus do romance antigo, os romances cômico realistas, dão tratamento diverso ao impulso erótico, muitas vezes deslocado para um plano secundário da narrativa e abordado de forma não idealizada. Através da análise da representação de eros em dois romances, Efesíacas, de Xenofonte de Éfeso, da vertente amorosa, e Lúcio ou o asno, de (Pseudo-)Luciano, da cômico realista, vou buscar estabelecer formas distintivas de tratar a matéria amorosa nesse gênero.

Palavras-chave: Romance grego antigo, Lúcio ou o asno, Xenofonte de Éfeso, (Pseudo-)Luciano.

Abstract: The love motive plays an important role in the definition of the novel as a genre in Antiquity since some of its oldest instances are intimately attached to the idealization of love relationships. Another class of works that also take part in the corpus of the Ancient Novel, the realistic comic novels, deal differently with the erotic drive, often displacing it to a secondary level of the narrative, therefore approaching love in a non-idealized way. Through the analysis of the representation of eros in two novels, An Ephesian Tale, by Xenophon of Ephesus, an example of the idealized fashion, and The ass, by Pseudo-Lucian, on the realistic comic side, I will seek to establish distinctive ways of dealing with the love matter in this genre.

Keywords: Ancient Greek Novel, An EphesianTale, The ass, Xenophon of Ephesus, Pseudo-Lucian.

A abordagem do romance antigo costuma esbarrar nas divisões em que os estudiosos normalmente o classificam. Assim, coloca-se de um lado o romance grego, de outro, o latino; de um lado os romances de amor idealizado (ideal love novels), de outro, os da vertente cômico realista. Quem examina uma categoria, muitas vezes passa ao largo da outra. Disso resulta uma visão bastante fragmentária do gênero, cujo corpus, ressalte-se, é pequeno.

Conforme pontua Morales (2009), dada a própria marginalidade do romance no sistema literário antigo, um gênero sem denominação ou teorização, que surge tardiamente na cena literária, no período imperial, quando as poéticas já estavam compostas sem que se previsse um lugar para ele, soa despropositado buscar reduzir o corpus em vez de alargá-lo, como também o aprisionar em categorias estanques e incomunicáveis. A promoção de leituras cruzadas entre obras assemelhadas traz a vantagem de pôr em destaque conexões e convergências iluminadoras, benéficas para a compreensão dos textos que, assim, seriam lidos não em contraposição uns aos outros, mas relacionalmente.1 É esse exercício que quero propor, através do exame do impulso erótico em duas obras pertencentes a espécies diversas: as Efesíacas, romance da vertente amorosa, e Lúcio ou o Asno, da cômico realista.

De fato, há vários pontos de aproximação entre elas, a começar pela autoria pouco determinada, embora isso não seja excepcional no romance antigo, em que a maioria dos romancistas não é para nós mais que uma assinatura sem biografia. Sobre Xenofonte, só se sabe o que registra o verbete da SUDA, bastante sucinto e, ao que parece, deduzido de elementos presentes no romance, como o fato de o autor ser de Éfeso, cidade natal dos protagonistas, ou de ter escrito obras históricas, o que pode se dever ao fato de compartilhar o mesmo nome do célebre historiador ateniense, sugerindo um pseudônimo, ou ainda pelo título (Ephesiaka) remeter a esse gênero narrativo. Já Lúcio ou o asno, embora atribuído a um autor ilustre, Luciano, tem autoria controversa, sendo o principal argumento a existência de discrepâncias estilísticas com o restante da produção luciânica. Também temos o testemunho do bispo bizantino Fócio que, na sua Biblioteca, relata ter lido dois livros gregos que desenvolvem esse mesmo enredo, atribuídos a Luciano e a um obscuro Lúcio de Patras.2

A falta de ornamentação e a estrutura episódica, com repetição de motivos (a mocinha que é seguidamente capturada por bandidos, nas Efesíacas, ou o asno que é várias vezes vendido ou roubado, em Lúcio ou o asno, por exemplo) leva à percepção de que são mais pobres estilisticamente que as demais obras do cânone. Essa mesma característica, somada a uma menor extensão em comparação a outras obras, levou à suspeição de que se tratasse de epítomes, ou seja, uma versão abreviada de um texto mais desenvolvido, composto, não necessariamente, pelo autor original. Essa hipótese está praticamente descartada para Efesíacas, após alguns autores, especialmente O’Sullivan, o editor da obra para a Teubner, terem atribuído suas características a uma influência da narrativa oral.3 Quanto ao Asno, muito dessa ideia deriva da comparação com o Asno de Ouro, de Apuleio, cuja trama é a mesma, mas que conta com maior extensão em vista, sobretudo, dos relatos interpostos à narrativa principal. Quanto à datação, embora incerta, é possível afirmar que ambas são contemporâneas, tendo sido compostas no século II d.C.

A matéria é distinta, já que Efesíacas tem por tema a paixão amorosa de um jovem casal e suas desventuras, e o Asno, as provações do narrador, Lúcio, e as observações que faz durante suas andanças quando metamorfoseado em asno. O amor é central à primeira e lateral à segunda, mas se faz presente em ambas. Interessa-me examinar a particularidade na representação das relações eróticas aqui e ali.

A primeira diferença está na concepção divina do amor, presente em Efesíacas. Nesse romance cabe a Eros pôr em movimento a trama a partir de uma disputa que se instala entre o deus e o protagonista do romance, Habrocomes, que nega a possibilidade de que a divindade exerça sobre ele seu poder, chegando a questionar sua existência (Xenofonte I.2):4

Irou-se Eros diante disso, já que o deus tem ânimo belicoso e é implacável com os arrogantes. Buscava, então, um ardil contra o rapaz, pois até mesmo para o deus ele parecia ser presa difícil. Após vestir armas e municiar-se com toda uma carga de poções de amor, declarou guerra a Habrocomes.

Μηνίει πρὸς ταῦτα ὁ Ἔρως: φιλόνεικος γὰρ ὁ θεὸς καὶ ὑπερηφάνοις ἀπαραίτητος: ἐζήτει δὲ τέχνην κατὰ τοῦ μειρακίου: καὶ γὰρ καὶ τῷ θεῷ δυσάλωτος ἐφαίνετο. Ἐξοπλίσας οὖν ἑαυτὸν καὶ πᾶσαν δύναμιν ἐρωτικῶν φαρμάκων περιβαλόμενος ἐστράτευεν ἐφ̓ Ἁβροκόμην.

Xenofonte o concebe como um deus cioso de sua honra que, uma vez ultrajado, busca vingar a ofensa. Ofendido por Habrocomes, é tomado de ira (μηνίει), consequência de seu ânimo belicoso (φιλόνεικος) e sua natureza implacável (ἀπαραίτητος), que não se deixa dobrar pelas súplicas dos arrogantes (ὑπερηφάνοις), dentre os quais claramente se encontra Habrocomes. O rapaz, no entanto, se mostra um adversário à altura, de difícil captura (δυσάλωτος), termo empregado em referência à caça. Assim, o jovem amante das caçadas e devoto de Ártemis, torna-se presa de Eros, que contra ele concebe ardis (ἐζήτει δὲ τέχνην). Eros se mostra, assim, astucioso, característica afim a sua mãe, Afrodite, denominada “tecelã de ardis” (δολόπλοκε) por Safo,5 com quem também compartilha da ira, como bem o demonstram duas passagens emblemáticas, o ríspido diálogo com Helena em Ilíada III.414-7 e o prólogo do Hipólito, de Eurípides, certamente um intertexto em Efesíacas.6

Não somente o imaginário da caça se apresenta na caracterização de Eros, mas também o da guerra. Xenofonte descreve o deus como um hoplita, que armado (ἐξοπλίσας), combate (ἐστράτευεν) Habrocomes com suas armas características, os phármakoi, as poções do amor. Não se alude, portanto, literalmente à guerra, mas se trata de uma figura de linguagem, adequada por certo ao deus que em certas tradições é filho de Afrodite e Ares, a divindade que rege as batalhas.7 A própria Afrodite é invocada no fr. 1 de Safo como “companheira de lutas” (sýmmakhos, v. 28), menção que, como aponta Ragusa (2013, p. 101), “combina as ideias de aliança e combate, guerra (makhé), e estabelece a relação entre a arena da sedução e a da luta armada”. E isso nos traz de volta ao adjetivo, philóneikos (φιλόνεικος), que traduzi por belicoso.8 Segundo o Liddel & Scott, o termo pode ter acepção pejorativa ou positiva, o que se constata na sua primeira atribuição, em Píndaro, onde se lê a recomendação: “nem dado a disputas, nem belicoso (ou competitivo) demais”,9 em que se depreende que um certo grau dessas qualidades é desejável, mas não em excesso.

Não tarda ao deus prevalecer sobre o jovem, castigando-o com a paixão fulminante por uma moça local, Ântia, que corresponde. Uma vez afetados, os jovens são tomados por sofrimento atroz, já que a paixão é incontrolável e irresistível, como Habrocomes descobre ao tentar, em vão, refutá-la. Incapazes de realizá-la, definham a olhos vistos, seguindo o padrão já bem conhecido e descrito na mélica grega arcaica, particularmente por Safo, mas também na tragédia grega, como no Hipólito, em que Fedra padece a olhos vistos por sua paixão recolhida. Em resumo, Eros é caracterizado enquanto uma força externa ao sujeito e avassaladora, que o subjugará independentemente de sua vontade. É perceptível que a caracterização do deus deve à tradição mito-poética, produzindo por si só um efeito de idealização do sentimento amoroso.

Segundo a convenção do romance grego de amor, a paixão é correspondida e, após breve período de provação, os jovens se casam. A idealização da paixão que os une se faz patente na descrição da noite de núpcias do casal. Examinemos inicialmente a instalação dos noivos no tálamo (Xenofonte, I.8):

Então, quando chegou o dia do casamento, celebravam-se festas noturnas e sacrificavam-se inúmeras vítimas para a deusa. E uma vez encerradas as cerimônias, quando a noite sobreveio (Habrocomes e Ântia viam demora em tudo), conduziram a menina até o quarto nupcial à luz de tochas, entoando o himeneu, proferindo votos de felicidade e, uma vez lá dentro, reclinaram-na no leito. O quarto estava preparado para eles: um leito de ouro estava coberto com lençóis tingidos com púrpura e acima do leito havia um dossel babilônio ricamente bordado: Amores brincando; uns, servindo Afrodite (havia também uma representação de Afrodite); outros, cavaleiros montando em pardais; outros, entrelaçando coroas; outros, carregando flores. Era assim em metade do dossel. Na outra, estava Ares, não em armas, mas como que enfeitado para a amada Afrodite, portando coroas, usando uma clâmide. Eros guiava-o, segurando uma tocha acessa. Sob esse dossel reclinaram Ântia, após conduzi-la até Habocromes, e fecharam a porta.

Ὡς οὖν ἐφέστηκεν ὁ τῶν γάμων καιρός, καὶ παννυχίδες ἤγοντο καὶ ἱερεῖα πολλὰ ἐθύετο τῇ θεῷ. Καὶ ἐπειδὴ ταῦτα ἐξετετέλεστο, ἡκούσης τῆς νυκτὸς ῾βραδύνειν δὲ πάντα ἐδόκει Ἁβροκόμῃ καὶ Ἀνθείᾀ ἦγον τὴν κόρην εἰς τὸν θάλαμον μετὰ λαμπάδων, τὸν ὑμέναιον ᾄδοντες, ἐπευφημοῦντες, καὶ εἰσαγαγόντες κατέκλιναν. [2] Ἦν δ̓ αὐτοῖς ὁ θάλαμος οὕτως πεποιημένος: κλίνη χρυσῆ στρώμασιν ἔστρωτο πορφυροῖς καὶ ἐπὶ τῆς κλίνης Βαβυλωνία ἐπεποίκιλτο σκηνή: παίζοντες Ἔρωτες, οἱ μὲν Ἀφροδίτην θεραπεύοντες ῾ἦν δὲ καὶ Ἀφροδίτης εἰκών̓, οἱ δὲ ἱππεύοντες ἀναβάται στρουθοῖς, οἱ δὲ στεφάνους πλέκοντες, οἱ δὲ ἄνθη φέροντες: [3] ταῦτα ἐν τῷ ἑτέρῳ μέρει τῆς σκηνῆς: ἐν δὲ τῷ ἑτέρῳ Ἄρης ἦν οὐχ ὡπλισμένος, ἀλλ̓ ὡς πρὸς ἐρωμένην τὴν Ἀφροδίτην κεκοσμημένος, ἐστεφανωμένος, χλανίδα ἔχων: Ἔρως αὐτὸν ὡδήγει, λαμπάδα ἔχων ἡμμένην. Ὑπ̓ αὐτῇ τῇ σκηνῇ κατέκλιναν τὴν Ἄνθειαν, ἀγαγόντες πρὸς τὸν Ἁβροκόμην, ἐπέκλεισάν τε τὰς θύρας.

Chamo atenção primeiro para a descrição do dossel que recobre o leito, em que está bordada a imagem de Afrodite cercada por Amores, Érotes, entregues às mais diversas atividades, quase todas visando a propiciar a fertilidade (trançar coroas de flores, em que se alude ao nome da noiva, montar pardais, etc.). Na outra metade da peça, está representado Ares, não como guerreiro, mas como noivo, conduzido por Eros para o leito de sua amada. Essa mini-écfrase sugere, ao menos, duas chaves de leitura. Uma, a mais recorrente na crítica,10 aproxima-a do tema cantado por Demódoco na Odisseia (VIII.266-366), em que Ares e Afrodite são surpreendidos no leito por Hefesto e têm seu adultério exposto aos deuses olímpios; outra, a que favoreço, explora a evocação do casal divino como um topos do epitalâmio, a saber, o elogio dos noivos equiparados a deuses.

No primeiro caso, a escolha dos deuses representados na peça causaria estranhamento uma vez que estão envolvidos em uma relação ilegítima, exposta pelo marido traído, Hefesto. Parece pouco apropriado escolhê-los como emblema de uma noite de núpcias, que celebra uma união sancionada pela família e pela sociedade. Mas é preciso lembrar que a relação entre os deuses não é necessariamente ilegítima, sendo Ares apresentado como marido de Afrodite em Píndaro (Pítica 4.87-8) e na iconografia. Também se deve cuidar de não contaminar as relações divinas com os hábitos que regem as famílias burguesas, já que os deuses chamados a testemunhar o flagrante em Homero antes se divertem do que se escandalizam.

Mais importante, contudo, é que a referência a Odisseia não parece ser necessária para interpretar a passagem. Note-se que Ares, coroado de flores, é conduzido por Eros, que porta tochas, até sua amada, numa menção clara ao rito nupcial – esse Eros que aqui se apresenta está longe da divindade “belicosa” que investe implacavelmente contra seus antagonistas no início do romance, mas, ao contrário, celebra seu poder sobre “deuses e homens”, como já aponta Hesíodo em Teogonia,11 conduzindo o noivo, igualmente belicoso, mas desarmado, ao leito matrimonial. O dossel traz antes a representação de uma cena de casamento, e não de adultério, emulando a procissão epitalâmica, ou seja, de instalação do noivo no leito da noiva. Essa procissão se faz acompanhar de cantos que celebram as bodas, em que é de praxe o elogio dos noivos, não raro comparados a deuses. Um dos fragmentos de epitalâmio de Safo (fr. 111 Voigt, com tradução de Ragusa, 2021, p. 179-80), compara o noivo justamente a Ares: “Ao alto o teto – / Himeneu! – / levantai, vós, varões carpinteiros! – / Himeneu! – / o noivo chega, qual Ares – / Himeneu! – / muito maior que um varão grande – Himeneu!”. A ideia é ressaltar o vigor e a beleza do jovem, que no dia do casamento “parece ser par dos deuses” (cf. Safo, fr. 31). Assim, defendo que a écfrase é mais um elemento que contribui para a idealização do par amoroso que Eros forma no romance, inserindo-o na tradição da lírica arcaica.

Passemos agora para a consumação da união (Xenofonte, I. 9):

A mesma emoção dominou cada um deles. Não conseguiam nem se falar, nem se olhar diretamente nos olhos, mas jaziam relaxados pelo prazer, tímidos, temerosos, sem ar. Tremiam seus corpos e fremia-lhes o ânimo. Por fim refeito, Habrocomes abraçou Ântia, e ela vertia lágrimas, índice de seu ânimo derrubado pelo desejo. [...] Deitaram-se abraçados e desfrutaram pela primeira vez dos trabalhos de Afrodite, competiram toda a noite um com o outro, disputando quem aparentava estar mais apaixonado.

Τοῖς δὲ ἑκατέροις πάθος συνέβη ταὐτόν, καὶ οὔτε προσειπεῖν ἔτι ἀλλήλους ἠδύναντο οὔτε ἀντιβλέψαι τοῖς ὀφθαλμοῖς, ἔκειντο δὲ ὑφ̓ ἡδονῆς παρειμένοι, αἰδούμενοι, φοβούμενοι, πνευστιῶντες: ἐπάλλετο δὲ αὐτοῖς τὰ σώματα καὶ ἐκραδαίνοντο αὐτοῖς αἱ ψυχαί. [2] Ὀψὲ δὲ ὁ Ἁβροκόμης ἀνενεγκὼν περιέλαβε τὴν Ἄνθειαν: ἡ δὲ ἐδάκρυε τῆς ψυχῆς αὐτῆς σύμβολα προπεμπούσης τῆς ἐπιθυμίας τὰ δάκρυα. [...] [9] Ταῦτα εἶπε, καὶ περιφύντες ἀνεπαύοντο καὶ τὰ πρῶτα τῶν Ἀφροδίτης ἀπέλαυον: ἐφιλονείκουν δὲ δἰ ὅλης τῆς νυκτὸς πρὸς ἀλλήλους, φιλοτιμούμενοι τίς φανεῖται μᾶλλον ἐρῶν.

Fechada a porta do quarto, os noivos se entregam aos “trabalhos de Afrodite” (τὰ πρῶτα τῶν Ἀφροδίτης) e, embora ansiassem pelo momento do desfrute da paixão, pelo qual muito esperaram, reservam um momento para as preliminares, em que toda a emoção (cf. linha 1, pathos/ πάθος) vem à tona. Há lágrimas, carícias, beijos e juras. Só depois de esgotado esse arroubo de paixão, entregam-se ao sexo, cujos detalhes não são descritos, mantendo-se o decoro. Predomina aqui novamente a idealização da paixão, da qual o gozo físico é parte, mas não exclusiva, já que o sentimento que experimentam é antes metafísico, patrocinado por Eros, de modo a reunir corpo e alma. Nesse ponto, discordo da interpretação de Tagliabue (2017, p. 21-52), para quem o momento inicial da relação de Ântia e Habrocomes é marcado pela atração física, adquirindo ao final da trama um caráter mais espiritualizado. Defendo que esse elemento já se faz presente desde o início.

Passemos agora a Lúcio ou o asno, em que predomina o amor desidealizado, instrumen-talizado e restrito aos prazeres carnais, bem diferente do que se vê em Efesíacas. Embora o relacionamento do protagonista homônimo com a criada Palestra (Luciano, 5-11), ocupe parte significativa dessa breve narrativa, nela há, sobretudo, a descrição dos tórridos embates amorosos entre os amantes. Mas, ao contrário do que se observa em Efesíacas, os deuses estão de todo ausentes e a atração não se explica pela ação de uma força divina.

Palestra, escrava na casa em que Lúcio se hospeda, é-lhe a princípio indiferente e o mesmo pode-se afirmar com relação a ele. Ao bater à porta da casa de Milon, a jovem atende e a relação entre eles é protocolar, regida pelo lugar que cada um ocupa na sociedade: senhor e escravo. Aqui, já se nota outra diferença na caracterização deste casal para com os romances de amor, sendo ele pertencente à elite educada, e ela, à classe servil, numa assimetria inexistente naquelas obras. Já bastaria esses elementos (ausência de simetria e de amor à primeira vista) para mostrar que não se pretende aqui uma paródia do amor idealizado, como há no Satíricon, de Petrônio, mas é de algo diferente que se trata.

A indiferença cede quando o rapaz escuta falar que a mulher de seu anfitrião é renomada feiticeira, terrível e lasciva, contra a qual deve precaver-se. A advertência, contudo, serve apenas para atiçar sua curiosidade, de modo que decide encontrar um expediente para presenciar um ritual de magia (Luciano, 5, tradução de C. Magueijo):

“Vamos, meu velho! Ora tu, que não paras de manifestar o desejo de presenciar um destes fenómenos estranhos, acorda, trata de arranjar um plano artificioso para conseguires o que tanto desejas: ‘despe-te’ e atira-te à criada... à... Palestra (pois, quanto à mulher do teu hospedeiro e amigo, há que manter as distâncias); e se te ‘enrolares’ com ela, se praticares umas ‘jogadas’, enfim, se a filares com um ‘golpe de cintura’, fica certo de que será fácil saber o que pretendes: sim, que os criados é que conhecem as virtudes e os podres [dos seus amos].”

Ἄγε δὴ σὺ ὁ φάσκων ἐπιθυμεῖν ταύτης τῆς παραδόξου θέας, ἔγειρέ μοι σεαυτὸν καὶ τέχνην εὕρισκε σοφήν, ᾗ τεύξῃ τούτων ὧν ἐρᾷς, καὶ ἐπὶ τὴν θεράπαιναν τὴν Παλαίστραν ἤδη ἀποδύου – τῆς γὰρ γυναικὸς τοῦ ξένου καὶ φίλου πόρρω ἵστασο – κἀπὶ ταύτης κυλιόμενος καὶ γυμναζόμενος καὶ ταύτῃ συμπλεκόμενος εὖ ἴσθι ὡς ῥᾳδίως γνώσῃ: δοῦλοι γὰρ τὰ δεσποτῶν ἐπίστανται καὶ καλὰ καὶ αἰσχρά.

Essa reflexão é bem interessante para que compreendamos melhor o personagem e onde jaz o seu desejo. Os verbos desejar e ansiar com paixão (ἐπιθυμεῖν, ἐρᾷς) são empregados por Lúcio não em relação à mulher amada, mas aos “fenômenos estranhos” (τῆς παραδόξου) que quer testemunhar. Para alcançar seu intuito, deve conceber um plano astucioso, que envolve uma trama de natureza erótica com a criada da casa. O relacionamento projetado é todo descrito em linguagem figurada, aludindo-se aos exercícios praticados na palestra, ou seja, o lugar destinado a essas atividades na Grécia e, também, como vimos, o nome da moça. Ao interpretar literalmente o nome, consuma-se a sua instrumentalização. Os jogos eróticos que vão se estabelecer entre hóspede e escrava não são minimamente inspirados por Eros, enquanto força sobrenatural, metafísica (a pensar em Platão, que tem grande influência sobre esses autores do romance), já que o desejo de Lúcio está em outra parte, mas são apenas um meio para se obter o fim almejado. Nada mais diferente do que a concepção da relação amorosa presente no romance de Xenofonte.

A partir da sessão 6 tem início os jogos de sedução, em que Lúcio e Palestra provocam-se mutuamente com indiretas picantes até consumarem sua união (Luciano, 8). Palestra ensaia um certo cenário romântico, espalhando coroas e pétalas de rosas no leito, dispondo vinho e água em uma mesa, à maneira de um simpósio, mas assim que fruem do vinho e dos beijos, entregam-se ao sexo, em que o nome da moça é novamente o mote para descrever diversas posições sexuais que incansavelmente praticam (Luciano, 8-10), numa espécie de Kama Sutra a la grega, fornecendo ao leitor (masculino, por óbvio) uma experiência escópica. Sim, porque há algo de voyeurístico aqui que convida o leitor a espiar pelo buraco da fechadura (como de resto fará o protagonista ao contemplar o ritual mágico de sua anfitriã) – note-se que é o oposto do que acontece na obra de Xenofonte, em que a porta do quarto dos noivos se fecha e o leitor é convidado a se retirar. Nada há além da comunhão dos corpos, que o narrador tanto explora como forma de conferir comicidade ao seu relato, numa espécie da paródia da Odisseia em que Odisseu se deixa ficar ao lado de Circe e Calipso, esquecendo-se do dia do retorno. Também Lúcio, entregue ao prazer, esquece-se de tudo (Luciano, 11):

Nestes prazeres e jogos “atléticos”, continuámos [por vários dias] a travar “combates” nocturnos, com coroações [e tudo] – o que fazíamos com requintes de sensualidade, a ponto de me esquecer completamente da viagem a Larissa.

Ἐν τοιαύταις ἡδοναῖς καὶ παιδιαῖς παλαισμάτων ἀγωνιζόμενοι νυκτερινοὺς ἀγῶνας ἐστεφανούμεθα, καὶ ἦν πολλὴ μὲν ἐν τούτῳ τρυφή: ὥστε τῆς εἰς τὴν Λάρισσαν ὁδοῦ παντάπασιν ἐπιλελήσμην.

Mais do que da sequência de sua viagem, um pretexto, como ele mesmo já confessara, o jovem adia o prazer maior, que “estava na origem dessas competições” (11: τὸ μαθεῖν ὧν ἕνεκα ἤθλουν), assistir a metamorfose da feiticeira. Saciado, é chegado o momento de pedir a Palestra o favor, que lhe mostre sua patroa no exercício de suas artes.

O resto, já se sabe. Após assistir o ritual, Lúcio, por descuido de Palestra, transforma-se em asno. Ela se lamenta por seu erro, ele pragueja contra ela. Veem os ladrões e levam o animal com eles, marcando a separação do casal, tópica do romance de amor idealizado. Aqui, no entanto, não é traumática. Lúcio segue sua jornada e enfrenta suas provações, mas no horizonte não está o reencontro com a amante, que sequer será mais evocada. Palestra desaparece de vez do romance após ter cumprido sua função.

A experiência erótica, idealizada em Efesíacas e motor da trama, é em Lúcio ou o asno pretexto para testemunhar os “fenômenos estranhos”, ou paradoxais, de que se alimenta o relato, e que têm seu ponto culminante na metamorfose pela qual passa o rapaz. Ainda que ambos os textos tratem do impulso amoroso, a leitura cruzada contribui para estabelecer de forma mais clara o tratamento dado à matéria narrativa por cada espécie do romance antigo. Na fissura entre o ideal e o real, a paixão se manifesta de forma diversa na ficção de prosa grega. São muitas as faces de Eros e o tratamento a ele dispensado no romance antigo.

Referências

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Notas

1 Vide também Brandão (2005, p. 89): “O que mais desafia o estudioso do romance grego é perceber como os textos dialogam uns com os outros, ainda que, na insuficiência de informações sobre a exata dimensão do corpus, sobre a sua cronologia e difusão, tenha-se que admitir que esse diálogo se dê entre espécies e não entre textos isolados”.
2 Cf. Fócio (Biblioteca, 129).
3 O’Sullivan (2014, p. 50): “Eu argumentei [em outra parte] que [as Efesíacas] deveriam ser consideradas como um texto transicional, uma obra ainda fortemente ligada à sua origem oral, mas que foi composta por escrito e que é até mesmo capaz de incorporar – embora eu não veja isso de maneira tão clara em Xenofonte – características literárias e, inclusive, intertextuais”.
4 As traduções de Efesíacas são de minha autoria.
5 Cf. Safo fr. 1 Voigt, tradução de Ragusa (2021, p. 72-7).
6 Na passagem referida da Ilíada a deusa ameaça duramente sua protegida Helena que ousa contrariá-la: “Não me provoques, tinhosa, que com raiva (χωσαμένη) não te deixe/ e passe a te odiar (ἀπεχθήρω) tanto quanto agora te amo demais” (tradução de Christian Werner). Nos versos de abertura do Hipólito (1-57), Afrodite discorre sobre a vingança que armou contra o rapaz que ousou desprezá-la.
7 Cf. o fr. 575 Page de Simônides, traduzido por Ragusa (2013, p. 210), em que não só se ressalta a natureza astuciosa de mãe e filho, mas aponta-se a paternidade por Ares: “... ó cruel criança da ardilosa (δολομήδεος) Afrodite, / que de Ares, artífice de ardis (δολομηχάνωι), ela gerou...”.
8 O adjetivo φιλόνεικος também é atribuído a Eros em Quéreas e Calírroe, romance de Cáriton de Afrodísias (cf. I.1.4 e VI.4.5). Lá, traduzi por “que gosta de desafios/ de ser desafiado”; aqui, o contexto de hostilidade sugere algo mais que o mero gosto pela disputa.
9 Cf. Píndaro, Olímpica VI: οὔτε δύσηρις ἐὼν οὔτ᾽ ὦν φιλόνικος ἄγαν. Note-se que as palavras são quase sinônimas; φιλόνικος e φιλόνεικος são tidos como termos alternativos e sendo usados de forma indistinta frequentemente, segundo o Liddel & Scott, embora um possa ser vinculado a niké, vitória, e outro a neîkos, disputa, combate.
10 Carson (2015, p. 80), Cueva (2004), Tagliabue (2017, p. 26; 34).
11 Há também o Eros primordial, “... o mais belo entre os deuses imortais, / solta-membros dos deuses todos e dos homens todos/ ele doma no peito o espírito e a prudente vontade” (Teogonia, 120-2, na tradução de Jaa Torrano), anunciado por Hesíodo, que juntamente com Caos, Terra e Tártaro, deu origem ao universo.
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